segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Edmauro Pereira Santos entrevista Evaldo Vieira sobre o livro A REPÚBLICA BRASILEIRA - 1951-2010 - DE GETÚLIO A LULA

Edmauro Pereira Santos entrevistou, para o jornal CONTATO, o renomado advogado, doutor em ciência política pela USP e escritor Evaldo Amaro Vieira, sobre seu recente livro A REPÚBLICA BRASILEIRA - 1951-2010 - DE GETÚLIO A LULA, que já esteve exposto na Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Publicado em setembro de 2015, em breve terá lançamento em São Paulo e em outras cidades. 

Edmauro: Qual a razão de ter escrito o livro A REPÚBLICA BRASILEIRA - 1951-2010 - DE GETÚLIO A LULA?

Evaldo: A principal razão desse livro, cuja redação e pesquisa se alongaram por mais de 7 anos, foi a constante e a progressiva piora das condições de vida no Brasil, desde que pude fazer uma observação crítica da nossa existência aqui. Portanto, a questão básica era saber se de fato vivemos numa república.

Edmauro: O que falta nessa República Brasileira?

Evaldo: Em tese, uma república implica na existência de cidadãos, ou seja, de pessoas com direitos inalienáveis e deveres para com a sociedade e o estado. O que acaba acontecendo, no entanto, é que entre nós praticamente a maioria vive como súdito, isto é, paga impostos e obedece. Poucos são aqueles capazes de garantir uma vida de cidadão. Há então uma cidadania restrita, ou uma república de poucos e de interesse deles.  

Edmauro: O que aconteceu com as condições de vida no Brasil, de Getúlio em 1951 a Lula em 2010?

Evaldo: A melhor frase, capaz de esclarecer o ocorrido com as condições de vida, pode ser uma citação que coloquei no livro. Afirma o príncipe de Lampedusa. no romance O LEOPARDO: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude". Sobre educação, saúde pública, alimentação, previdência e assistência social, habitação popular, criança e adolescente, apesar das reiteradas promessas de cada governo, há crescente piora com o passar dos anos e com o aumento descontrolado da população brasileira.

Edmauro: De 1951 a 2010, como reagiu a maioria dos brasileiros ante suas dificuldades econômicas, sociais e culturais?

Evaldo: No período abarcado pelo livro, a sociedade brasileira tem buscado melhores condições de vida econômica, social e cultural, mas não houve governo responsável pela maioria de suas  promessas, tanto durante a ditadura quanto ao longo da "nova república", quando se agravou a imoralidade  e os desmandos, porque os governantes não reprimiram as suas próprias ambições, não sendo exemplos para ninguém. Assim, a cada eleição os eleitores tentam de novo e depois se desapontam e se revoltam desorganizadamente.

Edmauro: Nas mais de 800 páginas do livro, foram desenvolvidas alternativas e sugestões para construir uma república digna desse nome?

Evaldo: A questão política fundamental no presente momento do Brasil concentra-se em torno da representação responsável, do mandato revogável e indenizável, e do funcionamento rigoroso do poder judiciário. É claro que tais mudanças não acontecerão, sem eliminar o presidencialismo de coalizão de partidos quase sempre cartoriais, e também o foro privilegiado dos políticos e demais funcionários públicos. 




 

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Lançamento do livro "A república brasileira - de Getúlio a Lula - 1951-2010", por Evaldo Vieira




Capa do livro "A República Brasileira - 1951-2010 - de Getúlio a Lula", de autoria de Evaldo Vieira



Evaldo Vieira não tem a pretensão de escrever uma história da república brasileira ou mesmo de completar a visão contemporânea desta república, durante os anos de 1951 a 2010.
Esta obra quer ser a exposição da longa resistência da população brasileira na construção de uma república, ao longo de tais anos.
Trata-se, portanto, de mostrar a cada momento histórico, com os pormenores possíveis, o ato de resistir dos brasileiros na colocação dos tijolos do edifício republicano, vertendo e revertendo suas esperanças e propostas, submetendo-se e revoltando-se contra o reino das barbaridades e especialmente contra a ignorância da vida real.
A obra retrata acima de tudo a busca de informações e a análise de fatos primários sobre a resistência brasileira, levantando, explorando e analisando documentos múltiplos pertencentes a mais de seis décadas. Para escrevê-la foram consultadas numerosas fontes de diferentes épocas, sempre tendo em conta que existem textos e arquivos secretos no país.
Pode-se, no entanto, assegurar que o livro não se baseia na repetição e na confirmação de interpretações consagradas pelo tempo ou sustentadas por autoridade de qualquer tipo. Pretende-se que apenas possibilidades indicadas pelas fontes consultadas tenham criado os alicerces dos comentários.
Foram-se mais de sete anos de pesquisa, de redações e de revisões, transformando a escrita do livro em exercício de esclarecimento dos fatos e das situações. A exposição assinala as grandes linhas de desenvolvimento histórico e os detalhes (estruturas e conjunturas), visando dentro do alcance do autor a evidenciar o ato de resistir dos brasileiros na implantação da república.
O livro A república brasileira (1951-2010) inicia-se e conclui-se com o exame das condições de vida da população, apostando na racionalidade do ser humano e evitando manifestações de irracionalismo, tão ordinário em nossa época, como o elogio da morte em suas infinitas modalidades da existência social.
A primeira parte de A república brasileira percorre do segundo governo de Getúlio Vargas (1951) ao governo do general Ernesto Geisel (1978), a quarta gestão sob a ditadura militar, iniciada então há catorze anos.
Fiel ao seu desígnio de caracterizar o ato de resistência da população do Brasil em sua obra republicana, além das citadas o leitor ainda poderá refletir sobre outras administrações. Nessa parte inicial poderá o leitor acompanhar a evolução das administrações de Juscelino Kubitschek, de Jânio Quadros, de João Goulart, e dos marechais e generais ditadores Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e dos membros da Junta Militar de 1969 (Aurélio de Lyra Tavares, Márcio de Souza e Mello, Augusto Hamann Rademaker Grünewald).
A segunda  parte de A república brasileira incumbe-se de narrar fatos e situações concernentes ao governo do general João Baptista Figueiredo (encerrando as formalidades da ditadura militar), e também dos de Tancredo Neves, de José Sarney, de Fernando Collor de Mello, de Itamar Franco, de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva.
Ambas as partes resultam em conclusões, vistas como indicações relativas às condições de vida dos brasileiros, às políticas econômicas e às políticas sociais.
Certamente, uma das principais questões da república no Brasil está na representação política e social, desde o passado remoto. A representação política e social existe no país, na prática sem responsabilidade política e social.
Mais do que isso, a obra de Evaldo Vieira versa sobre as lutas políticas, os partidos políticos, as eleições, as tentativas de golpe de Estado, a consumação de golpe de Estado, os chefes militares, os discursos presidenciais ou ministeriais, as medidas econômicas, os planejamentos, as consequências de suas aplicações e as reações a eles.
No que diz respeito às condições de vida da população, no texto existem  observações a respeito da educação brasileira, da saúde pública, da alimentação, das crianças e dos adolescentes, da previdência e assistência social e da habitação popular, etc..
O leitor encontrará em A república brasileira (1951-2010) demasiadas experiências de conciliação política, social e econômica, bem como os malefícios irremediáveis do “presidencialismo de coalizão”, de qualquer mandato exercido de forma irresponsável e intocável, do “foro privilegiado” e da insegurança causada pela ilegalidade e pela ilegitimidade. Do mesmo modo encontrará os caminhos democráticos da ação republicana.
Na obra, porém, sobressai a resistência dos brasileiros na busca de uma república capaz de garantir-lhes os direitos individuais e sociais, sem o que não haverá tranquilidade.




quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Política Social: Democracia e desafios da participação (entrevista)

Entrevista para a Revista Ser Social (UnB)Entrevistado: Evaldo Amaro Vieira 
Ângela Vieira Neves[1]Reginaldo Guiraldelli[2]
1        - No campo da teoria social há concepções distintas acerca da relação entre democracia e socialismo. Na sua análise, a democracia seria um caminho necessário para a realização e construção do socialismo?
RESPOSTA: Acho que sim, a democracia é um caminho necessário para a construção do socialismo e, sem democracia, o que historicamente existiu foram ditadura e capitalismo de Estado. Resta saber qual democracia, porque nem tudo aquilo que tem sido denominado de democracia conduz ao socialismo. A mera democracia formal (Estado de Direito), como se fosse uma etapa eleitoral, apenas baseada numa lei interpretada por juízes indicados e vitalícios, não leva à superação das condições de classe e à coletivização da propriedade. Somente a democracia capaz de superar as grandes diferenças entre as classes e de extinguir os privilégios, torna possível o socialismo.
2        - Na sua análise, é possível, a partir da disputa de hegemonia, construir uma forma de sociabilidade verdadeiramente emancipada “por dentro” do Estado capitalista? O aprofundamento da democracia pode contribuir para o redimensionamento do Estado, o fortalecimento das políticas sociais e a efetivação dos direitos sociais?

RESPOSTA: Nunca fui adepto da falsa “teoria de conquista de espaço” no interior das instituições, principalmente do Estado. Nunca considerei séria a disputa de hegemonia apenas no interior da burocracia estatal, porque me parece constituir antes ingenuidade ou ambição pequeno-burguesas, como se a burocracia capitalista não enquadrasse o coração e a mente das pessoas, que afinal estão submetidas aos valores e às práticas da sociedade capitalista. Além disto, a “teoria da conquista de espaço” quase sempre adota a implantação do socialismo de cima para baixo. Sem a maioria da população trabalhadora, que caminhe para o socialismo (ou que nome receba), ele não surgirá. Assisti aos resultados dessa teoria, em todas as profissões, inclusive entre assistentes sociais. Na aula, estive com um aluno dedicado às crianças e aos jovens abandonados, militante de longa data; no aeroporto me deparei com o mesmo aluno vestido e comportando-se como burocrata muito bem posto na vida, dizendo que tudo estava muito difícil, como se não fosse. É juízo superficial chamar isso de oportunismo, é adesão sincera à ideologia da ascensão social, tipicamente da pequena-burguesia. Nunca agirá de acordo com o socialismo, que lhe tiraria os privilégios sociais e econômicos.

3        - É possível se falar em democracia em uma sociedade baseada na divisão de classes, na sustentação da propriedade privada e na exploração do trabalho?

RESPOSTA: Sim, pode-se falar em democracia neste tipo de sociedade, já que no caso se destacam o formalismo jurídico e o cumprimento da maioria das garantias fundamentais do indivíduo, com políticas sociais bastante restritivas, como no caso dos Estados Unidos da América, nos moldes do liberalismo conservador ou da democracia liberal. O funcionamento real das garantias fundamentais do indivíduo pode oferecer segurança pessoal e algum desenvolvimento social, embora a opressão permaneça ou até cresça em função do mercado econômico. Essa mera democracia formal não se destina ao socialismo, porque a economia de mercado alarga a desigualdade social, dentre outras desigualdades.
4        - No Brasil, são observados avanços no campo dos direitos de cidadania após o processo de redemocratização ocorrido no final dos anos 1980 e ao mesmo tempo são implementadas medidas neoliberais que incidem na contramão da garantia destes direitos. Como você analisa esse quadro na atualidade?

RESPOSTA: O quadro no Brasil é muito diferente em diversos aspectos. Ocorreu de fato o processo de redemocratização? Ocorreu abertura política com certas garantias jurídicas e sociais. Mas a dita redemocratização não mudou o aparelho de Estado. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não passaram por transformações essenciais, e a legitimidade política, social e econômica está reduzida à simples eleição. Não foram mudados a organização e o funcionamento das polícias e das forças armadas, e não se suprimiu sequer a Justiça Militar, assegurando as justiças especiais e corporativas, foro especial para determinadas pessoas nos tribunais superiores, restando à maior parte dos brasileiros a justiça comum, a qual deveria abranger todos. Os principais meios de informação, como televisão, rádio, jornal, revista, etc., compõem monopólios que, durante a ditadura militar, compartilhavam em muitas ocasiões seus interesses com os ditadores, porém agora confundem seus objetivos com as liberdades públicas. Foram alteradas inúmeras vezes a Constituição Federal de 1988 sem nenhuma consulta à população, a gosto de cada um dos governos, da promulgação constitucional para cá. É possível constatar que os direitos de cidadania, ou mesmo a concretização deles (realidades diferentes), transformam-se em direitos essenciais. A transformação de direitos de cidadania em direitos essenciais sucede quando os movimentos sociais atuam com maior força e influência na sociedade e no Estado, impondo suas necessidades e objetivos, alargando as exigências populares no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Em caso contrário, com movimentos sociais debilitados por qualquer motivo, sem reclamos objetivos ou com reclamos simplesmente moralistas, os direitos sociais ficam limitados àquilo chamado, com muito favor, de “políticas sociais neoliberais”, pois são na verdade certa assistência aos miseráveis. É imprescindível lembrar que há movimentos sociais de cunho nazifascista, ocupando o espaço perdido pelas ações populares. A dominação social, a desigualdade e a penúria são inclementes no Brasil.
5 - Na conjuntura sociopolítica brasileira atual, há possibilidade de uma coexistência da democracia representativa e da democracia participativa?

RESPOSTA: Nos dias atuais no Brasil, a coexistência da democracia representativa com a democracia participativa é demasiadamente precária. Excetuando o descontrole da violência brasileira, que exagera em excesso, a democracia participativa no mundo consiste em fator preocupante para os governos, levando-os a modernizar mais a polícia do que setores fundamentais da política social, como a educação e a saúde. Como afirmava em palestras desde o princípio dos anos 1980, a derrocada do Partido dos Trabalhadores desmontou grande parcela dos movimentos sociais defensores de direitos sociais, desmontou grande parcela da esquerda ou até aqueles que esperavam alguma melhoria de vida no país. E desmontou por quê? Lutou pelo predomínio de seu programa, afastando sectariamente, cegamente, inúmeras propostas alternativas até mais libertárias, servindo-se de milhares de militantes idealistas, sem ter condições de fazer o que prometia, em nome da direção partidária sindicalista e aventureira em muitas ocasiões. No momento, coexistem no Brasil uma imperfeita democracia representativa (com enormes deformações de representatividade, basta ver a composição por Estados) e o predomínio de movimento social de caráter golpista, extremista de direita e ilegal.
6- Como você analisa as manifestações que vem ocorrendo no cenário sociopolítico brasileiro nos últimos anos, especialmente a partir de 2013?

No meu entendimento, presenciamos em meados de 2013 um movimento popular em São Paulo principalmente, com alguma organização sem burocracia, voltado para a conquista do “passe livre”. Tal movimento popular foi sabotado por muitos partidos existentes, pelos governos e pela imprensa patronal, que à maneira getulista o reconheceram, aceitaram-lhe e desmobilizaram-no. Depois, se seguiram frequentes arruaças irracionalistas, violentas e heterogêneas, lembrando às vezes as iniciais movimentações pré-nazistas na Alemanha ou pré-fascistas na Espanha. Como comentou um jornalista, se os membros dessas movimentações vissem mesmo a massa da população, eles correriam para seus apartamentos e chamariam a polícia.

7        - A Política Nacional de Participação Social (PNPS) foi duramente criticada por vários segmentos da sociedade brasileira e considerada como um golpe à democracia. Qual sua análise acerca desse processo?

RESPOSTA: A Política Nacional de Participação Social (PNPS) representa uma necessidade num país do tamanho e da população do Brasil, com contradições e necessidades múltiplas. Porém como ser aceita uma PNPS em país onde existem foro privilegiado na Justiça, presidencialismo de coalizão, cargos vitalícios e efetivos, mandatos irrevogáveis, etc.. Não existem mandatos revogáveis em qualquer instância política, nem responsabilidade por indenizá-los em caso de mau uso; nem Justiça com cargos temporários para julgar com rapidez. Distantes da população e garantidos, os Poderes da República podem vislumbrar a PNPS como um golpe ao maltratado Estado de Direito do Brasil atual.
EVALDO VIEIRA estudou direito, ciências sociais e letras; é doutor em ciência política pela USP e professor titular da FEUSP. Foi professor titular na UNICAMP e na PUC-SP; é tradutor, colaborador em jornais, em revistas, em obras coletivas e autor de vários livros, sendo o último deles denominado “A república brasileira – de Getúlio a Lula (1951-2010)”.



[1] Assistente social, mestre em Serviço Social pela PUC-Rio e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB).
[2] Assistente social, mestre e doutor em Serviço Social pela Unesp. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB).

O BOM LADRÃO


No segundo ano da colonização do Brasil, em 1655, o Padre Antônio Vieira (que infelizmente não foi meu parente) pregou o Sermão do Bom Ladrão, na presença do rei de Portugal. O Padre Antônio Vieira, como é do conhecimento público, representa uma das mais significativas figuras do século XVII, na história e na cultura luso-brasileira. Talvez seja culturalmente, com relação ao Brasil, a mais completa personagem da colonização portuguesa. Desempenhou-se como orador, conselheiro político da Restauração portuguesa, diplomata, missionário, defensor dos índios, jesuíta e teólogo, catequizador no Pará e no Maranhão. Não faltaram em sua biografia alguns anos de prisão, acusado pela Santa Inquisição Católica de prática de heresia, ao acreditar no Sebastianismo, nas profecias de Bandarra e em defender os judeus, mas morreu no Brasil.

O Padre Antônio Vieira afirma no Sermão do Bom Ladrão: “Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. ...O que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”.
Ninguém nasce ladrão e ninguém nasce rei. Os homens é que constroem um e outro. Existem no homem o rei e o ladrão. Um carrega o outro, tanto ao paraíso quanto ao inferno e diz Vieira: “...O que vemos praticar em todos os reinos do mundo ...os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”. E por quê? Nem todos os homens controlam sua ambição!
Se a maioria dos homens não fiscaliza e não cerceia a própria ambição, não fiscaliza e não cerceia o forte desejo de poder ou de riquezas, de honras ou de glórias, torna-se escravo da cupidez. Contrai então doença incurável: converte-se em invejoso, em desgostoso devido à prosperidade alheia, vivendo a vida do outro, espionando as compras, as vendas, os sucessos, as perdas, as tragédias de outrem. Abandona a existência para viver a existência alheia: se ganha certo conforto, isto não lhe basta, é preciso ter mais, o conforto do outro. O invejoso mortifica-se com o desejo irrefreável de possuir as coisas de outrem, de construir casa mais rica que a do vizinho, de comprar carro maior e mais caro que o do vizinho, de vestir-se com mais sofisticação que a mulher do vizinho... De fato, os invejosos não têm paz.
A inveja figura a mãe da ambição, da cobiça e de certa maneira de ver o sucesso. Muitas escolas e universidades nos dias de hoje prometem aos alunos o sucesso e não o conhecimento, como se a função de CEO das empresas ou a lista dos mais ricos tivessem lugar para 204, 5 milhões, que é hoje, por exemplo, a população do Brasil.
Ora, segundo o Padre Antônio Vieira, a ambição do ladrão acaba vencendo a honestidade no rei, e daí o larápio triunfante no coração real o conduz ao inferno, ao sofrimento e à desgraça. Dentro das pessoas, o desejo do ladrão geralmente prevalece à sua honradez. Acrescenta Vieira, pensando como Sêneca: “Põe o ladrão e o pirata no mesmo lugar do rei que tiver as características do ladrão e do pirata. Se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar e merecem o mesmo nome”.
Conforme Vieira, não adianta pôr culpa no outro, em cada um de nós estão presentes o demônio e a bem-aventurança, basta ter coragem de vencer o ladrão dentro de nós, a fim de não incorporar o Dr. Fausto. 

sábado, 23 de maio de 2015

O relógio de ouro e o juiz

Corri o dia todo, e ao cair do sol me recordei de que deveria ir de São Paulo a Taubaté, a fim de proferir conferência sobre um dos aniversários da Constituição Federal de 1988.
Apesar de saturado de expor minhas ideias sobre ela, aparecera a primeira oportunidade de falar em Taubaté e no Vale do Paraíba, embora tivesse quase encerrando a carreira de conferencista universitário pelo mundo.
Estava intranquilo depois de assistir à abertura da Constituinte de 1987. Famílias e famílias de constituintes, de várias gerações, posando para o fotógrafo, bem no estilo casa-grande, em ambiente festivo. Nas fotografias felizmente só faltaram os negros de abano, como no Império. Saí com sentimento nefasto, lutuoso mesmo, de quem se lembra do trecho do romance "O leopardo", do príncipe de Lampedusa: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. Fui claro".

O artigo 5 da Constituição Federal de 1988 bastaria para funcionar como Constituição brasileira. Desde o primeiro presidente da República, o fantástico Marechal Manoel Deodoro da Fonseca até os contemporâneos, quase ninguém governou com a constituição que lhe foi legada. Houve reformas e mais reformas, sempre para adequá-la às pretensões dos poderosos do dia. 

Ao contrário da Constituição de uma República, com cidadãos iguais perante a Lei, no Brasil possuímos os cidadãos usufruidores de "foro privilegiado", exatamente aqueles que por princípio ético e jurídico deveriam gozar de maior exposição de direitos iguais aos do brasileiro comum, ou seja, serem julgados na primeira instância dos Foros.

Na viagem a Taubaté, para discorrer sobre a Constituição de 1988, estacionei em Jacareí e dirigi-me à sala dos advogados do Foro. Nem bem iniciei a organização da conferência, uma distinta senhora solicitou-me que comparecesse à sala de audiência do juiz, pois inexistia àquela hora outro advogado para funcionar como defensor "ad hoc" de um réu. Cumprimentei o meritíssimo juiz e o ilustre promotor de justiça e, em seguida, ingressou o réu na sala de audiência. O juiz qualificou-o e esclareceu-o a respeito da causa e do depoimento dele. Era um senhor de maltratados 50 e poucos anos, vestido com roupas de trabalho um tanto gastas e calçado com botina "de carregar pela boca". Evidenciava homem da roça. 

Em seguida, o meritíssimo juiz perguntou se ele havia furtado um "relógio de ouro" pertencente a sua ex-mulher. O réu não vacilou: disse que era chacareiro e explicou que na separação de sua ex-esposa em Taubaté onde morara, incumbiu-se de cuidar da filha do casal e trabalhava para sustentar ambos. E com aquela simplicidade das pessoas puras, sem nunca ter sido caviloso, estendeu seus braços ao juiz mostrando-lhe as palmas das mãos, perguntando-lhe: "estas mãos podem ter usado relógio de ouro?, estas mãos ganharam dinheiro para ter relógio de ouro?" Só havia calos de enxada e de enxadão. Nada mais se disse nem foi perguntado.

Ficamos na sala os três, o defensor, o promotor de justiça e o juiz, a procurar o motivo para tal disparate. Noite, promotor e juiz ainda trabalhavam. O motivo não é coisa do outro mundo, como descobrir a América: formalismo que envergonha juristas de escol, com Hans Kelsen. Mas tem mais: jovens, brilhantes e experientes funcionários da Justiça perdem seu tempo com a miséria humana no Brasil, porque o "foro  privilegiado" das autoridades não deixa que eles se ocupem destas autoridades. 

terça-feira, 3 de março de 2015

O método na interpretação das criações culturais

Existem distintas maneiras de fazer-se a interpretação das criações culturais, seja obra baseada no senso comum, seja obra baseada no bom senso, de maior coerência interna, na ciência ou na arte, nesta última tida como obra-prima ou obra de arte. 
O senso comum e o bom senso mostram que o homem produz sua criação cultural, qualquer que seja ela, em dois planos, como afirma Vasco de Magalhães Vilhena:

"...um constitui o chamado conhecimento espontâneo; é aquela forma de saber vulgar que resulta quase sem esforço, não-intencionalmente, da experiência humana de todos os dias (por isso se lhe chama também conhecimento empírico - da palavra grega empeiria, que significa experiência). A outra atividade, que já é fruto de uma concentração particular da atenção e que resulta de um esforço mais ou menos pronunciado, despendido em vista de um fim determinado, cabe o nome de conhecimento reflexivo ou saber crítico. (...) Uma primeira diligência fundamental do espírito é a superação do saber espontâneo". 

Porém não há obra gerada pelo ser humano, concluída ou não, capaz de ser inteligível à razão ou pela sensibilidade, a qual não seja interpretada, por meio do método, por meio de um antimétodo, e de acordo com alguma ideologia. 

Veja-se o exemplo da Sociologia da Literatura

Esse campo de interpretação da obra literária possui muitos estudos representativos, de autores diferentes como G. Lukács, L. Goldmann, J. Leenhardt, U. Eco, M. Waltz, T.W. Adorno, M. Horkheimer, W. Benjamin, etc.. Nesses estudos, e em outros, não se pode desconhecer as questões metodológicas e ideológicas, de maneira a não considerar iguais obras e interpretações desiguais.

As ideologias são visões de mundo; maneiras de sentir, agir e pensar o homem e o mundo, construídos por sujeitos plurais, como grupos sociais ou classes. Assim entendidas, as ideologias atuam como principais criadoras dos métodos de interpretação. 
Como caminhos teóricos de interpretação, construções racionais da realidade, os métodos distinguem-se pela sua unidade (excluindo elementos fundamentais de outros métodos, logo excluindo o ecletismo), pela visão de mundo e pelo seu grau de explicação, porque os métodos não são iguais na explicação, nem explicam tudo. 
Apesar de repelir os métodos, o antimétodo também expõe visões de mundo: o ceticismo; a negação de explicar o homem e o mundo; quase sempre recusa a realidade real; a vida humana e a vida natural acham-se em fragmentos e em pedaços. Para o antimétodo, as ideologias reduzem-se a simulacros e disfarces. 

Verifiquem-se nas palavras de Jean Baudrillard a rejeição da "realidade real" e a fragmentação do mundo:

Se a realidade existe, a gente não precisa acreditar nela. Pois, se assim fizermos, ela se torna objeto de credo.
Ou então:

Assim como se pode dizer `estamos na chuva´, pode-se dizer `estamos na pós-modernidade´. Trata-se de um conceito lata de lixo, onde podemos colocar tudo, principalmente os vestígios que restam das antigas ideologias e valores. O pós-modernismo é uma zona vaga onde se encontram esses restos errantes dos quais não sabemos nos livrar. 

A Sociologia da Literatura  compreende investigações diversas, tanto do tipo literatura como produto do consumo como do tipo literatura como criação social. Existe uma longa série de tendências interpretativas da obra literária desde o século XIX, originadas de métodos filosóficos mais distintos. Os escritos de Georgy Lukács demonstram bem a utilização de métodos diferentes: no início se serviu do método neokantiano e posteriormente do método hegeliano-marxista. Tal deslocamento metodológico não ocorreu simplesmente por mero arbítrio e sim pelas alterações ocorridas no mundo ideológico de Lukács.
Ele contribui à Sociologia da Literatura com os conceitos de forma e de estrutura significativa. Para Lukács, as formas constituem verdadeiras essências, relações intemporais entre o homem e o absoluto (o universal). L. Goldmann, um aluno de Lukács, examinou com mais pormenores as estruturas significativas. 
Ainda empregando a metodologia hegeliana-marxista, certos pesquisadores da chamada "Escola de Frankfurt", como T. W. Adorno, M. Horkheimer, W. Bejamin, H. Marcuse, buscam outras dimensões da vida social, além de questões meramente sociológicas, inda da criação das obras culturais até seu consumo público. Nascem daí os estudos sobre a "obra de arte na época da reprodução mecânica" e sobre a "indústria cultural". Dentro desses limites é possível integrar o livro Mimesis, de E. Auerbach. 
Lucien Goldmann inspira-se nas contribuições metodológicas do jovem Georgy Lukács, embora dentro do universo da língua e da Sociologia francesas, distinto dos autores da Sociologia de língua alemã, acima mencionados. Mediante a análise interna do texto (um conjunto de significações), Goldmann pretende explicá-lo, e isto somente é possível para ele por meio da inserção deste conjunto em um conjunto significativo mais abrangente: - o grupo social
Como se pode verificar, a Sociologia da Literatura investiga seu problema inicial: que relações mantêm a literatura e a sociedade?
As pesquisas contribuem para a ampliação destes problemas, qualquer que seja a perspectiva de análise. O estudo microssociológico de grupos tem justificado importantes análises de visão de mundo, onde o objeto empírico são as mediações entre o grupo e o escritor. Este objeto empírico normalmente exige dupla análise: a sociológicas e a psicológica, mesmo que não se deva fragmentar a realidade estudada entre Sociologia e Psicologia, como se fosse cabível desvincular inteiramente uma e outra. 
O pensamento não opera no "vago" e no "abstrato", ou no espaço "isolado" e "transcendente". 
A Filosofia sempre deu atenção à noção de totalidade, isto é, a unidade e a multiplicidade indissoluvelmente ligadas, resultando num conjunto ou num todo. A começar de G. F. Hegel, a totalidade  implica que "o caminho do conhecimento vai do fenômeno à lei, da manifestação ou aparência superficial à essência escondida". A essência ou a lei estão contidas no fenômeno ou na aparência, independente do nome dado a elas. 
Deste maneira, segundo Hegel,


tudo é um todo - e tudo está no todo,


- ou segundo K. Marx - ...o homem apropria-se do seu ser universal de maneira universal, portanto como homem total [Manuscritos de 1844].


Há ainda pesquisas em sentido diverso: visa-se a leitura minuciosa do texto. Mas estas pesquisas não ultrapassam o significado interior e isolado da obra analisada. Neste sentido, as técnicas da Semiologia da Literatura poderão fornecer à Sociologia da Literatura seu principal auxílio, pois elas levantam as estruturas profundas do texto. Os recursos da Semiologia e da Sociologia da Literatura poderão conceber pesquisas mais precisas, porque as hipóteses passarão por verificações tanto nas estruturas profundas do texto quanto na inserção do texto na realidade dos grupos, das estruturas mentais ou das visões do mundo. 
Não se pode admitir, portanto, que os estudos de Sociologia da Literatura sejam confundidos com as análises impressionistas realizadas na área. Ao contrário, os escritos sociológicos procuram o máximo possível de rigor metodológico, e se este rigor só é alcançado na significação geral da obra (incluindo grupos e classes sociais), nem por isto o grau de explicação é menor. 


Método e Sociologia da Literatura


Dentre os livros de Sociologia da Literatura, a obra de L. Goldmann obtém maior coerência por ter produzido uma multiplicidade de conceitos mirando a capacidade operativa de seu método estruturalista genético. Esta capacidade operativa é evidente, basta ler as várias análises feitas por ele. Outras abordagens metodológicas existem e, mesmo no estruturalismo genético, surgem pressupostos importantes.
O estruturalismo genérico apresenta proposições fundamentais. O princípio de que os fatos empíricos isolados e abstratos consistem no ponto de partida da investigação, é tão fundamental quanto o princípio de que o valor de um método deve ser depreendido da capacidade de compreender os fatos e de fixar suas leis e sua significação
Para Goldmann, o elemento básico do pensamento está em que não se atinge pontos definitivos de partida e de chegada, acontecendo consequentemente verdades relativas por intermédio de reflexões nada lineares. A relatividade das conclusões obriga o reconhecimento de que os temas são inesgotáveis em sua totalidade e em seus componentes. É esta totalidade que reveste de significação os componentes, do mesmo modo que o grau de conhecimento destes fornece o grau de conhecimento do todo. 
O estruturalismo genético aceita que o pensamento apenas representa uma parcela da realidade (a consciência possível). Levando-se em conta este fato, é que se considera alcançada a real significação da obra quando ela é integrada no conjunto de uma vida e de um comportamento, entendendo-se aqui comportamento de um grupo ou de uma classe social. 
Os escritos de um autor formam apenas parte de seu comportamento, sendo necessário o conhecimento de sua estrutura psicológicas e de suas relações com o meio social e natural. Neste caso, a biografia do autor poderia auxiliar a pesquisa no entendimento, em parte, de sua obra, caso isto seja possível. O que se obtém nas biografia é a visão arbitrário e fragmentada do autor, exigindo assim amplo controle metodológico e pouco valor dado às suas informações. 
É preciso lembrar também que a relação entre a vida de um autor e sua imaginação criadora é extremamente mediatizada. Existem inúmeras mediações entre as pretensões do autor e sua obra, motivo por que L. Goldmann distingue significação subjetiva de significação objetiva. A separação entre significação subjetiva e significação objetiva localiza-se no centro da questão do significado. Admitir que a intenção do autor nem sempre coincida com o sentido conseguido pela obra ao inserir-se na totalidade da vida social, é propor que o texto atinge uma relativa autonomia, não se devendo, por conseguinte, iniciar-se do autor para realizar a análise de sua obra. O mesmo sucede com as influências sobre o autor, desprovidas de valor explicativo
No livro El Hombre y lo Absoluto (Le Dieu Caché), Goldmann assenta o ponto fundamental na fixação conceitual de estruturas significativas, assim definidas por ele:

...os fatos humanos formam sempre estruturas significativas globais cujo caráter é ao mesmo tempo prático, teórico e afetivo e (...) estas estruturas só podem ser estudadas positivamente - ou seja, ser explicadas e compreendidas - no contexto de uma perspectiva prática fundada na aceitação de determinado conjunto de valores.

Teoricamente, o conceito de estrutura em qualquer campo de pesquisa das ciências humanas, não se distingue qualitativamente do mesmo conceito em ciências naturais. Somente pela função normativa que lhe é peculiar, a estrutura poderá explicar-se, uma vez que o sujeito do estudo e o seu objeto pertencem à mesma realidade social. Nas ciência humanas qualquer análise se processa dentro da sociedade, vinculando-se à sua vida intelectual, a qual não passa de parcela da vida  social, que poderá vir a transformá-la, segundo sua importância e eficácia. 
Em ciências humanas, consequentemente, o autor da investigação parcialmente e por meio de inúmeras mediações participa do objeto analisado. O pesquisador deve esclarecer em seu trabalho o caráter significativo do comportamento humano, lembrando-se que todo comportamento significa resposta de um sujeito individual ou coletivo destinada a transformar as condições dadas, no sentido de suas aspirações. 
O principal instrumento de pesquisa de inteligibilidade desse comportamento é a estrutura significativa, que é de uma só vez realidade e norma, porque determina ao mesmo tempo o sujeito e o ponto de tendência da sociedade. As criações culturais e, claro, as criações literárias, como fatos humanos, integram-se num conjunto de estruturas significativas capazes de dar-lhes a significação objetiva. Esclarecer a estrutura significativa específica quer dizer delimitar o objeto presente na realidade social e também separar o que existe nele de essencial e de acidental. 
Em outra direção, porque se refere ao universo semântico, e resguardadas as diferenças orgânicas de cada método, A. J. Greimas estabelece o mesmo raciocínio ao tratar das vinculações entre Linguística Estrutural e Poética, como abaixo:

Admite-se que os objetos poéticos, embora possuam sua especificidade, pertencem ao domínio literário, o qual se desprende, com sua articulação própria, do universo semântico que compreende a totalidade das significações recobertas por uma língua natural

O caráter de totalidade aqui se dá quanto ao universo semântico, e do mesmo modo é possível estabelecer-se um conjunto de partes, com traços específicos e autônomos. 
No entanto, se o processo de elaboração teórica proporciona semelhança entre L. Goldmann e A. J. Greimas, nem por isto as discordâncias deixam de aparecer. 
Note-se que em Greimas a totalidade das significações forma o universo semântico (verdadeiro demiurgo), enquanto em Goldmann a totalidade das significações encontra-se no comportamento individual, e mais fortemente no comportamento de grupo ou de classe do autor, que é um sujeito singular e um sujeito plural, ao mesmo tempo
As operações teóricas de ordem metodológica em Sociologia da Literatura poderão ser enriquecidas com o estudo do universo semântico fornecido pelo texto, desde que, partindo do conjunto de significações pertencentes a uma língua natural, se estudem os valores contidos nestas significações e a gênese deles. 
O estruturalismo genético não opõe a compreensão à explicação de determinado fato humano. Aliás, ambas são processos intelectuais idênticos, mas com perspectivas diversas. 
Compreende-se certo objeto quando se descreve o mais minuciosamente possível uma estrutura significativa, imanente ao fenômenos estudado. Em seguida, a explicação ocorre à medida que se integra esta estrutura constitutiva na estrutura imediatamente abrangente. Continuando, ao se considerar como objeto de pesquisa a estrutura abrangente, o que até então era tido como explicação se torna compreensão, e proposições explicativas deverão decorrer do seu relacionamento com nova estrutura ainda mais ampla.
A estrutura significativa de caráter explicativo não necessita forçosamente de ser explorada em todos os seus pormenores. Ela precisa sim ter levantados aqueles traços componentes da gênese da obra analisada. 
Assinala L. Goldmann:

...o estudo de um objeto - texto, realidade social, etc. - só pode considerar-se suficiente quando se deslindou um estrutura que informe de modo adequado acerca de um notável número de dados empíricos, sobretudo dos que parecem apresentar importância particular, a fim de que seja, senão inconcebível, ao menos improvável que outra análise possa propor uma estrutura distinta que chegue aos resultados ou a resultados melhores.  

A compreensão do texto, com a finalidade de configurar a estrutura significativa, deve ser exaustiva e ordenada, sem que haja possibilidade de encontrar-se outra diferente no texto. A compreensão do texto busca destacar apenas os traços ligados à gênese dele. Em vista disto, a compreensão coloca-se como problema no texto, devendo surgir de dados empíricos, submetidos a processos de estruturação e de desestruturação. Tais processos  não permitem que seja realizado um estudo destes dados nas condições em que se apresentam. 
A explicação situa-se em realidade externa à obra, quando a estrutura de compreensão e a estrutura de explicação devem ter variações concomitantes ou relações funcionais. 
L. Goldmann e J. Piaget possuem noções semelhantes de estrutura, desde que se exclua a característica de processo autônomo de equilíbrio, exposta por Piaget. 
Comentando o conceito de estrutura apresentado por J. Piaget, em seus Étude d´epistemologie génétique [p.34], Goldmann concorda que ele traz componentes indispensáveis à definição, acrescentando, porém, que existem estruturas dinâmicas e não de equilíbrio. 
Por fim, é preciso dizer que os estudos metodológicos introduzem em geral questões relacionadas à ideologia, ampliando o campo de pesquisa. 



Bibliografia 


GOLDMANN, Lucien. El hombre y lo absoluto (Le Dieu caché). Barcelona: Península, 1968, p. 7.
GREIMAS, A. J. Las relaciones entre la Linguística Estructural y la Poética. In: Linguística y comunicación. Buenos Aires: Nueva Visión, 1971, p. 9. 
LAPOUGE, Gilles. Com provocações, Baudrillard anunciou o fim da "realidade real". In: Estado de S. Paulo, 11 mar. 2007, Cultura, p. D7 e D10.
LEFEBVRE, Henri. A noção de totalidade nas Ciências Sociais. In: Materialismo Dialéctico e Sociologia. Lisboa: Presença, s/d, p. 34-35, 39-41, 44, 48.
VILHENA, Vasco de Magalhães. Pequeno Manual de Filosofia. Lisboa: Sá da Costa, 1958, 2a. ed., refundida e ampliada, p. 48. 









segunda-feira, 2 de março de 2015

Roteiro para estudar Política Educacional do Brasil

A elaboração de um roteiro, ou melhor de um itinerário, para o estudo da política educacional do Brasil, forçosamente concentra determinada matéria eleita pelo seu autor. 
No presente caso, a temática selecionada jamais põe fora outros tantos elementos, tão imprescindíveis, ou mais, do que os aqui esboçados. Este roteiro se sujeita, portanto, ao destino de ser roteiro, isto é, de ter serventia para indicar situações e direções, a respeito da política educacional. 

1. Tenho asseverado em várias ocasiões que a política social manifesta estratégias governamentais, com a finalidade de interferir na correlação de forças sociais. A política social acompanha as determinações do chamado processo de desenvolvimento econômico. Neste mesmo sentido, certa vez expus essas ideias da seguinte forma: - apolítica econômica e a política social compõem uma totalidade: o econômico é social e vice-versa, ambas as políticas representam estratégias manipuladas pelos governos brasileiros, com perdão de declarar o óbvio.  Tais políticas se nutem dos interesses e dos valores da classe dirigente, que exercita o poder político. 

2. Eis, pois, um campo sem neutralidade. colocadas no papel através dos procedimentos da planificação e posterior avaliação, as estratégias governamentais são às vezes destorcidas, e de tal maneira que nem sempre a estratégia exposta significa a estratégia traçada pelos dirigentes. Há aí certo despotismo do saber legalizado, exercido pelo tecnoburocratismo. E as forças da sociedade, em especial aquelas alijadas de qualquer influência no poder político, ficam submetidas em geral a deliberações que lhes são hostis ou ao menos indiferentes, suportam e reagem contra uma e outra estratégia. Os protestos normalmente tocam as pretensões da classe dirigente e também da tecnoburocracia, convertendo-se ou não em conquistas sociais, segundo as condições do processo histórico. 

3. De modo geral, a política social, enquanto estratégia governamental, corporifica um conjunto de diretrizes, de propostas, de metas a serem alcançadas por certo governo, em algum momento. Abstratamente, e por meio de parcelamento da realidade, a política social tem servido para designar diretrizes, propostas, metas, referentes à Educação, à Saúde, à Previdência Social, às Condições de Trabalho e de Lazer, à Habitação e à Assistência Social. 
Passar por exame a política social de determinado governo, requer examinar esta globalidade, raramente homogênea, em algumas oportunidades até com incoerências flagrantes e com propósitos e objetivos irrealizáveis. Analisar a política social do Brasil tem o sentido muitas vezes de responsabilizar-se pelo estudo de algo cansativamente repetido, com mostras de vulgaridade, ainda quando se tem presente a veemência das determinações históricas. Vejam-se as coleções de planos, de mensagens e de deliberações governamentais, que são representativas para avaliar a política social. Aliás essas coleções constituem expressivas fontes ao estudo neste âmbito, de indiscutível valor histórico. 

4. A política educacional, como parte integrante da política social, passou e passa pelas contingências desta, mas traz peculiaridades evidentes. A política social somente se delineou no Brasil a partir do princípio do século XX, ao acorrer intensa urbanização em diversas cidades; vigorosa industrialização sobretudo no Rio de Janeiro (capital da República) e em São Paulo; organizado (embora restrito) movimento operário sustentado por imigrantes; e notórias conturbações econômicas provocadas pela crise na produção cafeicultora. 
Este momento histórico assistiu ao aparecimento das primeiras medidas protecionistas, por sinal muito tímidas, de uns poucos setores do operariado, cujo exemplo mais famoso delas foi a Lei Elói Chaves (1923), criando Caixas de Aposentadoria e Pensões. Apenas depois de 1930, se registrou intervenção estatal mais sistemática nas relações de trabalho, e ainda nas áreas de educação, de saúde pública, de previdência social e de habitação. As raízes históricas de tal intervenção estatal se achavam nas características próprias da formação da sociedade capitalista no Brasil. 

5. A política educacional do Brasil geralmente participou da esfera governamental, aparecendo como quase ininterrupta preocupação do Estado brasileiro, desde a Independência. Se outras áreas da política social não suscitaram empenho, a Educação suscitou até na Constituinte de 1823, a primeira havida no Brasil. Após 1930, o intervencionismo do governo fez-se por inteiro e obsessivamente, gerando a falsa impressão de que a Educação fora alçada ao universo dos ideais maiores do país. 
A sociedade escravista do Império manteve cuidadosa vigilância com relação aos diversos setores da política social, cujas necessidades irromperam nas ruas da Primeira República, em inícios do século XX. Nos anos posteriores a 1930, estas necessidades, agora ampliadas, vieram a ser fecundo material à mobilização e à desmobilização popular, no jogo de poder decorrente da crise de hegemonia que se instalou. 
A situação da Educação é distinta, ao menos no sentido de que já na Independência a opção se realizara, bastando apenas as alterações de época. Optou-se pela educação de elite e, em torno dela, as políticas educacionais revelaram os anseios da classe dirigente, os quais não variaram excessivamente em termos educacionais. Esta educação de elite tem mergulhado, no curso do tempo, nas exigências da sociedade. Atravessou os reclamos da maioria da população brasileira e emergiu de novo com aparência renovada, praticando de novo a discriminação na educação. 

6. A política educacional do Brasil ocupou-se principalmente de reformas, depreciando a avaliação de outros temas. Como já observei, as reformas educacionais não reformaram, mas desmobilizaram eventuais movimentos neste campo. As propostas de melhorias de condições de ensino e de trabalho normalmente acabaram por tornar inseguros os educadores. As reformas deixavam entrever um novo mundo na educação, onde problemas elementares e seculares, como o analfabetismo, serão solucionados a curto prazo. A realidade, passado um pouco de tempo, faz ver que pequenas melhoras, se aconteceram, estavam acompanhadas de desmedidas alterações formais, recheadas quase sempre de modismos, experimentalismo e esquematizações. Note-se, por exemplo, algumas das principais reformas educacionais, implantadas depois de 1870: reforma "Leôncio de Carvalho" (1879), reforma "Benjamim Constant" (1890), código "Epitácio Pessoa" (1901), reforma "Rivadávia" (1911), reforma "Carlos Maximiliano" (1915), reforma "Luiz Alves/Rocha Vaz" (1925), reforma "Francisco Campos" (1931), reforma "Capanema" (1942), "Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional" (substitutivo Carlos Lacerda - 1961), reforma universitária (Lei n. 5.540/68 - sob a ditadura militar) e Decreto-Lei n. 464/69 - sob a ditadura militar), reforma do ensino de 1o. e 2o. graus (Lei n. 5.692/71 - sob a ditadura militar), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.  9.393/96 - sob governo de Fernando Henrique Cardoso).
Essa profusão de reformas indica que o problema não está nelas, mas no conservadorismo dos governos, partidários da educação de elite, que se gabam de empregar ideias e novas técnicas. Em nome da atualização e da satisfação das necessidades da população, reforma-se com a finalidade de conservar a situação existente no campo educacional. 

7. O analfabetismo, ou como se costuma dizer "a luta contra o analfabetismo" ou "a erradicação do analfabetismo", ilustra bem esse quadro da educação de elite. No Primeiro Império Brasileiro, as elites escolheram o estudo particular, com preceptor em suas casas, pois a educação da maioria das pessoas não surgia como necessidade fundamental. No Segundo Império, ensinar a ler e a escrever ganhou alguma importância, apesar dos efeitos do Ato Adicional de 1834, eximindo o governo imperial de qualquer obrigação a respeito do ensino primário, e transferindo-a às províncias. Com a República, cabe lembrar que em 1920 o atendimento escolar ficava bem próximo do praticado em 1909.
Em pesquisa recente, verificou-se que todos os governos brasileiros, estabelecidos no período compreendido entre 1951 e 1985, propuseram a "erradicação da chaga do analfabetismo", lançando campanhas de alfabetização e afirmando que isto representava a vontade política nacional...

Bibliografia

VIEIRA, Evaldo. Estado e miséria social no Brasil. 4a. ed. S. Paulo: Cortez, 1987.

VIEIRA, Evaldo. A República Brasileira: 1964-1984. 4a. ed. S. Paulo: Moderna, 1987.

PAIVA, Vanilda P. Educação Popular e Educação de Adultos. S. Paulo: Loyola, 1973.

RIBEIRO, Maria Luisa S.  História da Educação Brasileira. 7a. ed.  S. Paulo: Cortez, 1987. 

Evaldo Vieira - 1988 - atualizado.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

A social-democracia, longo caminho até a terceira via


Social-democracia revela, quase sempre, muita falta de clareza em seu termos e em sua história. Na atualidade, ser social-democrata quer dizer algo comum, designação vulgar e sedutora, normalmente de pouco ou de nenhum sentido, parca em conceitos. 
Em seus princípios, a social-democracia retratava determinadas condições histórico-sociais e possuía lideranças diferentes da realidade contemporânea, hoje muito distante e distinta do século XIX. No curso do tempo, a social-democracia andou por inúmeras veredas e atalhos, sofreu inúmeras mutações a ponto de nem sempre ser reconhecida como tal. 
Assim, ao referir-se à social-democracia, a questão essencial é: de qual delas se está falando?

As primeiras mutações

As palavras iniciais do Preâmbulo dos Estatutos da Associação Internacional de Trabalhadores (A.I.T.), segundo o texto adotado pelo Congresso de Genebra de 1866, considerava:

"Que a emancipação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores; que os esforços dos trabalhadores para conquistar sua emancipação não devem tender a constituir novos privilégios, mas a estabelecer para todos os mesmos direitos e os mesmos deveres; que a sujeição do trabalhador ao capital é a fonte de toda servidão: política, moral e material; (...) Que a emancipação dos trabalhadores não é um problema simplesmente local ou nacional, que, ao contrário, esse problema interessa a todas as nações civilizadas, sua solução está necessariamente subordinada ao seu concurso teórico e prático; Que o movimento que se realiza entre os operários dos países mais industrializados da Europa, fazendo nascer novas esperanças, dá uma solene advertência para não recair nos velhos erros, e aconselha a combinar todos os esforços ainda isolados;..." (itálicos meus)

O texto definitivo dos Estatutos da Associação Internacional de Trabalhadores (A.I.T), também fixado pelo Congresso de Genebra de 1866, afiançava que:

"O Congresso considera como um dever reclamar não só para os membros da Associação os direitos de homem e de cidadão, mas ainda para quem quer que cumpra com seus deveres. Nada de deveres sem direitos, nada de direitos sem deveres". (itálicos meus)

A  simples leitura de poucas palavras inaugurais do Preâmbulo e dos Estatutos da Associação Internacional de Trabalhadores mostra claramente seus fundamentos: autonomia operária; extinção de qualquer privilégio e de qualquer subordinação dos trabalhadores ao capital; a reciprocidade para todos, entre deveres e direitos; internacionalismo do movimento trabalhista. 
A A.I.T. pretendia conquistar independência moral e intelectual para decidir livremente e buscar o fim dos privilégios e da submissão operária às leis do capital.  Para isto, a emancipação dos trabalhadores, e ainda dos seres humanos cumpridores de deveres sociais, far-se-ia pelo movimento internacional dos próprios trabalhadores. Esses fundamentos da A.I.T. agradaram várias tendências operárias, como os adeptos das Trade-Unions (sindicatos ingleses) e os continuadores dos projetos de Pierre-Joseph Proudhon, de Giuseppe Mazzini, de Karl Marx e de Friedrich Engels.
Na conferência de Londres em 1871, a Associação Internacional de Trabalhadores (A.I.T.) acabou resolvendo que era necessário fundar legalmente partidos trabalhistas nos países industrializados da Europa, visando à revolução socialista. O Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha foi fundado antes, em 1869, como primeiro partido trabalhista de caráter nacional. 
Em 1875, em Gotha, unificaram-se os dois partidos trabalhistas alemães: a União Geral de Trabalhadores Alemães (criada por Ferdinand Lassalle) e o Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha (dirigido por August Bebel e Wilhelm Liebknecht), mantendo o nome de "social-democrata". O partido unificado possuía orientação marxista e sua direção política vinha exposta em seus órgãos centrais denominados: O social-democrata (Der Sozialdemokrat), redigido por Eduard Bernstein e distribuído de forma clandestina, e Novos Tempos (Neue Zeit), publicado por Karl Kautsky, de acordo com as normas legais.  Eduard Bernstein teve seu primeiro emprego como funcionário de banco, entrou para o Partido Social-Democrata aos 22 anos, nele militando até a morte em 1932. Karl Kautsky, filho de pais tchecos, viveu muitos anos de sua vida na Alemanha e, durante o regime nazista a partir de 1933, foi para o Exterior, falecendo na Holanda. 
Em 1891, pelo programa de Erfurt, o Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha abandonou sua organização de caráter conspiratório para tornar-se um partido de massas, permitindo atuação legal aos seus sindicatos. Os êxitos alcançados pela social-democracia alemã, de 1892 a 1913, foram numerosos tanto em relação à estrutura do partido quanto à organização dos sindicatos. Ambos obtiveram elevação de salários aos trabalhadores sindicalizados, realizaram acordos coletivos de trabalho e ainda criaram cooperativas e agremiações desportivas e culturais (bibliotecas, clubes). Com estes resultados positivos, partido e sindicatos alemães passaram a funcionar como modelos para os trabalhadores de outros países europeus. É o caso da formação, em 1898, do Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Rússia

*

No entanto, dentro da social-democracia alemã grassava a disputa, a princípio teórica, sobre o desenvolvimento histórico do capitalismo. Em lugar das teorias do colapso e das crises da acumulação do capital, expostas por Karl Marx e Friedrich Engels, a muitos social-democratas abria-se nova fase da produção capitalista. 
Assim, sem ocorrer colapso da acumulação do capital, essa nova fase da produção capitalista manifestava-se numa crise originária da formação de monopólios de empresas, expressos em cartéis ou trustes, objetivando a restringir a concorrência entre elas e aumentar lucros. Não apenas Eduard Bernstein, mas outros pensadores ligados às ciências sociais, políticas e econômicas em especial na Alemanha, já vinham formulando explicações da nova sociedade capitalista em formação. Estas explicações se sustentavam, de modo geral, na filosofia de Emmanuel Kant e, mais exatamente, do Neokantismo. 
Escreveu Eduard Bernstein em 1902:

"Por mais que acreditemos que somos vigorosos materialistas, poderemos nos dar conta com rigor que raciocinamos como qualquer idealista, apenas afastamos os olhos da vida cotidiana sem incidentes, para voltá-los para os problemas mais profundos da vida. (...) Todo materialista, num palavra, só está condicionado e aproxima-se mais do modo de pensar espiritualista que o nega e não daquele que o reconhece. (...) Kant, o idealista transcendental, era de fato um realista muito mais rigoroso do que o chamado materialista físico". (itálicos meus) 

Ao publicar entre 1896 e 1898 os artigos a respeito dos Problemas do socialismo e, depois, em 1899, o livro As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia, Eduard Bernstein levantou questões relativas à teoria marxista do desenvolvimento capitalista, provocando debate até 1914, início da Primeira Guerra Mundial. Para Eduard Bernstein: 1) a taxa de lucro no capitalismo não assumiu propensão contínua para queda e a anarquia da produção (com desperdício, superprodução ou subconsumo, etc.) sujeitava-se agora à organização e à regulamentação do capital monopolista; 2) não aconteceu a concentração da propriedade e do capital, e o aparecimento dos monopólios econômicos e das sociedades anônimas desagregou empresas e empresários; 3) igualmente não ocorreu a absoluta ou a relativa pobreza da classe operária, nem a separação entre poucos burgueses de um lado e muitos trabalhadores de outro, porque estratos sociais médios irromperam no interior da burguesia e do operariado.
Tais contestações de Bernstein aos projetos marxistas indicavam o amplo panorama da crise do capitalismo nas primeiras décadas do século XX De uma parte, países de capitalismo atrasado na Europa, como a Alemanha, a Áustria e a Rússia, buscavam no movimento socialista tirar o poder político das nascentes burguesias; de outra, o exemplo do socialismo reformista na Inglaterra denunciava a impropriedade das teorias de Marx, sobre o colapso e as crises da acumulação do capital, convivendo com o capitalismo monopolista, encaminhando-se à escala mundial. 
Em 1909, Eduard Bernstein apresentou na Associação Operária de Amsterdã o informe denominado O revisionismo na social-democracia, do qual uns poucos trechos mais elucidativos são citados a seguir:


"A tradução da doutrina de Marx, tal como aqui foi desenvolvida, apareceu na prática a muitos socialistas como a renúncia ao objetivo final do socialismo, e, em certo sentido, não deixaram de ter razão. Pois, fundamentalmente, segundo minha opinião, a teoria de Marx derrubou de fato a ideia do objetivo final. Como  para uma doutrina social baseada na ideia do desenvolvimento não pode haver um objetivo final, segundo ela a sociedade humana estará continuamente submetida ao processo de desenvolvimento. Pode ter grandes linhas de orientação e objetivos, mas não um objetivo final.

(...) Tampouco se deve esquecer que quando Marx escreveu o Manifesto comunista ainda não estivera na Inglaterra, mas somente ouvira falar de longe do grande movimento de luta de então dos operários ingleses, que por momentos parecia querer derrubar com uma força elementar todo o império mundial britânico. Em O capital Marx corrigiu algumas de suas hipóteses originárias, mas também aí encontramos ainda muito superestimada e parcialmente valorizada a velocidade do desenvolvimento no sentido capitalista. Assim, toda uma série de conclusões das hipóteses, sobre as quais Marx escreveu, são corretas; outras, ao contrário, não o são ou já não o são


(...) Em resumo, o mais recente desenvolvimento criou formas das organizações da indústria e da troca econômica que Marx não conheceu nem podia conhecer. (...) A pergunta é somente: devem ou podem então os operários se encarregar das fábricas, das quais o Estado não pode se encarregar, e continuarem as explorando com resultados positivos? E depois de tudo o que vimos até agora sobre isso, chegamos necessariamente à conclusão de que os operários não vão querer nem vão poder se encarregar das fábricas. ... A ditadura industrial dos operários simplesmente não foi realizável. 

(...) Um fator básico que diferencia o revisionismo da antiga concepção da social-democracia é a grande valorização daquilo que pertence ao atual trabalho socialista. E isso se traduz na maior valorização do trabalho parlamentar, não tanto como agitação - se bem que ela tenha sua justificativa - mas muito mais como busca de resultados (itálicos meus, destaques e negritos do texto).


Por conseguinte, ecoa nestes brevíssimos fragmentos, cujo ideário pode ser verificado em outros escritos de Bernstein, um tipo de evolucionismo econômico-social, linear, formalista, sem conflitos estruturais, lembrando algo como se, paulatinamente, a história corresse em direção a fugaz felicidade sem fim. Há no revisionismo de Bernstein o impacto das alterações causadas pelo capitalismo monopolista, ainda em formação, no campo do trabalho humano, da tecnologia, do custo e do crescimento da produção, da gerência e do modo de ser proprietário. 
A complexidade, a especialização e o volume das corporações econômicas levaram Bernstein a admitir que "os operários não vão querer nem vão poder se encarregar das fábricas". Observando as novas formas organizacionais do capital financeiro e industrial, atuando como monopólios, Bernstein optou por anunciar que "a ditadura industrial dos operários simplesmente não foi possível", devendo-se então valorizar o trabalho parlamentar e a busca de resultados. 
Por esse tempo, em seu livro Os partidos políticos, Robert Michels - até aquele momento um "sindicalista revolucionário", esmerava-se em expor temas como a caracterização do chefe nas organizações democráticas, a impossibilidade de um governo diretamente exercido pelas massas, o "militantismo", a gratidão política das massas, a necessidade de veneração entre as massas, a luta pelo poder entre os chefes, o burocratismo, a identificação do partido com o chefe, a necessidade de diferenciação na classe operária, a base conservadora da organização, a democracia e a lei de ferro da oligarquia, etc.. Michels não só concentrava seu exame na figura do chefe e na afetividade das massas, como também na ferocidade da burocracia e na impiedade da lei de ferro da oligarquia para com o regime democrático. 
Em torno de 1910, Bernstein assinalava particularmente "a situação dos operários" e Michels apontava o outro lado da moeda: "as organizações", uma e outra diante do recente processo de acumulação monopolista do capital, em direção à escala mundial. O pessimismo, o irracionalismo e fim da história, fazem da análise de Michels um retrato pendurado na parede, em um local escuro. Notem-se certas asserções de Robert Michels contidas no seu mencionado livro: 

"É mais fácil dominar a massa  do que um pequeno auditório."; "Quem diz organização, diz tendência para oligarquia"; "À medida que o partido moderno evolui para uma forma de organização mais sólida, vemos acentuar-se a tendência de substituir os chefes ocasionais pelos chefes profissionais."; "Mas o surgimento de uma direção profissional marca para a democracia o começo do fim.".

De fato, desde o final do século XIX, o intitulado Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha desagregara-se em diversas facções que, para facilitar a exposição, poder-se-ia nomear de "direita", "centro" (do qual participava Max Weber) e "esquerda". A "direita" e o "centro" aos poucos se aliaram. Os grupos ilegais da "esquerda" da social-democracia alemã eram a Federação Spartakus (Spartakusbund), liderada por Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht), o Grupo dos Raios de Luz ão(Lichtstrahlengruppe) e a Política dos Trabalhadores (Arbeiterpolitik). A "esquerda" defendia que "a vitória ou a derrota na guerra eram igualmente danosas para o povo alemão" e que deveria pertencer "ao povo a decisão sobre guerra e paz".
Rosa Luxemburg, em seu livro Reforma, revisionismo e oportunismo, editado em 1899, no próprio período em que Eduard Bernstein difundiu seu programa revisionista da social-democracia, examinava-o pormenorizadamente, refutava-o de acordo com o ponto de vista do marxismo, prevendo seu tenebroso futuro. Segundo Rosa Luxemburg

"Existe para a social-democracia um laço indissolúvel entre as reformas sociais e a revolução, sendo a luta pelas reformas o meio, mas a revolução social o fim. (...) No fundo, a questão de reforma e revolução, da finalidade e do movimento, não é senão a questão do caráter pequeno-burguês ou proletário do movimento operário, numa outra forma. (...) Mas se admitirmos com Bernstein que o desenvolvimento capitalista não conduz à sua própria ruína, então o socialismo deixa de ser objetivamente necessário" (itálicos meus). 

O antagonismo entre o mero reformismo de Eduard Bernstein (e seus muitos adeptos) e o processo da revolução social de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht (com uma "esquerda" pouco extensa), motivou a dissolução do projeto original da social-democracia e indicou outra trajetória da classe operária em seus vínculos com o Estado. Ainda assim, o campo majoritário dos social-democratas alcançava 34% dos votos nas eleições legislativas de 1912 e em 1914 contava com mais de um milhão de partidários. 
Mesmo atentando ao reformismo trabalhista inglês, os efeitos da prática política do revisionismo social-democrata alemão foram bastante catastróficos ao movimento operário e aos seres humanos. No instante em que a grande maioria dos parlamentares do Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha, apoiada pela direção nacional, decidiu aprovar os créditos de guerra, em 4 de agosto de 1914, os partidos, sem exceção, davam condições para a eclosão da Primeira Guerra Mundial. Estava evidente que os líderes social-democratas e enormes setores da classe operária amarravam seus destinos às pretensões da burguesia e do Estado alemães. 
A social-democracia de origem revolucionária abraçava dessa maneira os interesses imperiais do militarismo prussiano (junker).

As segundas mutações

A Primeira Guerra Mundial terminou em 11 de novembro de 1918, com o maior número de perdas humanas ocasionadas por guerras, até então. Em números aproximados, de 68 milhões de homens recrutados pelas nações em conflito, mais de 8 milhões morreram e perto de 20 milhões ficaram feridos. Nos dias de combate, estimou-se que 5.500 soldados tombaram. Esta guerra mundial trouxe consigo a República alemã, promulgando-se a Constituição em 11 de agosto de 1919, em Weimar. 
Na chamada República de Weimar não aconteceu avanços contínuos, mas repetidas crises intensas, quando cresceram o desemprego, a corrupção e a criminalidade. De 1919 a 1924, a inflação alarmante e desemprego; de 1929 ao seu término em janeiro de 1933, com a posse do nazista Adolf Hitler, a crise econômica mundial limitou demais todas as atividades no país, chegando a ponto de desempregar 44% da população ativa, em 1932. Todavia, neste ano o total dos meios de produção pertencia, na Alemanha, a menos de 1% da população.
A capitulação alemã em novembro de 1918, a fuga do imperador para a Holanda e a queda do governo de Max de Bade, colocaram os social-democratas no poder, chefiados por Friedrich (Fritz) Ebert e Philip Scheidemann. Em 11 de fevereiro de 1919, o social-democrata Ebert, um artesão ex-seleiro, assumiu provisoriamente a presidência da República, cargo ocupado por ele até sua morte em 1925. Em razão das eleições, Ebert foi substituído na presidência pelo marechal Hindenburg. Não apenas internamente, mas externamente com Hindenburg na presidência, a República de Weimar conservou as tradições imperiais e pouco mudou a cúpula administrativa da monarquia. 
Um dos políticos responsáveis pela assinatura da rendição alemã, Matthias Erzberger, advertiu na ocasião que ele não comporia um governo só de membros do Partido Social-Democrata como sucedera, porém a solução era manter-se junto de Ebert, que garantia a eliminação do perigo comunista e a manutenção da unidade da Alemanha. Portanto, poder-se-ia deduzir que nada melhor do que a social-democracia para combater a revolução e o comunismo. A análise de Matthias Erzberger mostrou-se correta, da perspectiva histórica.
A República de Weimar, administrada por Ebert, não se livrou da velha aristocracia (que governara antes a Alemanha), não se livrou dos antigos comandantes militares e de sua oficialidade, não se livrou dos juízes e da grande parte dos chefes da burocracia civil. Na República de Weimar, estes sobreviventes do passado se aproximaram do Partido Social-Democrata e de sua base organizativa (parlamentares, sindicalistas, empregados administrativos, jornalistas, etc.) e passaram a viver do movimento trabalhista, não para ele, temendo que as massas fossem além da legalidade. 
Em certo sentido, é possível aceitar o que disse um historiador alemão:

"Terminou a revolução alemã com a reestruturação da monarquia militar numa república burguesa" (itálicos e negritos meus). 

Do final de novembro de 1918 a janeiro de 1919 (na Baviera, até maio de 1919), o governo de Friedrich Ebert travou luta terrível contra a Revolução Alemã de 1918-1919, comandada pela facção social-democrata revolucionária e independente, especialmente pela Federação Spartakus (Liga Espártaco), de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht. Falando pelo Partido Social-Democrata majoritário, em novembro de 1918, Scheidemann insistia que a população alemã não deveria atender às palavras de ordem dos revolucionários. 
Nos primeiros dias de novembro de 1918, já no poder, o grupo majoritária da social-democracia enviou Gustav Noske, antigo lenhador prussiano, para negociar com os revolucionários. Sem obter resultado nas conversações, Gustav Noske recebeu do governo social-democrata o comando militar com plenos poderes para vencer os rebeldes pelas armas. Os militares de Noske compunham-se de tropas regulares do exército imperial alemão e de unidades especiais (os corpos voluntários), formados de oficiais, suboficiais e soldados profissionais. Tais corpos voluntários eram remunerados por aristocratas e por alguns industriais e recebiam soldo superior ao das forças armadas. Consequentemente, os corpos voluntários constituíram os mais eficazes combatentes da contrarrevolução organizada pelo governo social-democrata. 
O ministro da Guerra, Gustav Noske, teria declarado na oportunidade: "É preciso de fato que um de nós faça o papel de cão sanguinário", frase que se prendeu à sua figura. Como Max de Bade anotou, o ex-lenhador prussiano, era visto como o mais capacitado para "debelar a infecção", isto é, reprimir a revolução espalhada agora por Berlim. 
Após o assassinato de Karl Liebknecht e de Rosa Luxemburg em janeiro de 1919 e de Leo Jogiches em março, a repressão matou os líderes da "esquerda" da social-democracia e puniu as greves operárias, impossibilitando a coordenação das atividades revolucionárias. 
O que restou do campo majoritário do Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha, nos estertores da República de Weimar, pôde ser resumido nos votos de aprovação da bancada social-democrata no Parlamento Alemão à "resolução de paz" de 17 de maio de 1933, apresentada por Adolf Hitler. Eles traíram desta maneira a diretoria do Partido no exílio. Ato contínuo, eles tiveram cassados seus mandatos parlamentares e o Partido Social-Democrata foi proibido de existir. 
As reformas sociais surgidas nos anos revolucionários de 1918 e 1919 foram sabotadas pelos conservadores monarquistas e republicanos. Por exemplo, eles atacaram principalmente os contratos coletivos e a jornada de trabalho de oito horas. Legalizado em 1923 o dia de trabalho de oito horas com tantas ressalvas, que a semana de trabalho na realidade atingia 48 horas, ao passo que, para os funcionários, a duração mínima de trabalho semanal ia a 54 horas, entre 1924 e 1925. Reformas da vida sindical no interior das fábricas e projetos de democratização do ensino encontraram tantos obstáculos que não se concretizaram ou dependeram de variados compromissos. 
Grande quantidade de cidades estabeleceu um tipo de trabalho obrigatório para os desempregados, utilizando-se da assistência dada a eles. Por meio do funcionamento de sistema de cotas pagas por empregadores e por empregados, os municípios podiam dar aos desempregados, nos meses em que eles recebiam abono, determinados trabalhos de utilidade pública. Logo, os desempregados tinham a obrigação, por 24 ou 16 horas semanais (se a ocupação fosse penosa), de realizar obras de terraplenagem, de derrubada de árvores e de construção de estradas, em troca de complementação do mencionado abono, oferecida pelo poder municipal. 
Às vezes, a assistência aos jovens desempregados implicava em que eles ajudassem os inválidos, as viúvas, os pensionistas de guerra. Outras vezes, estes jovens desempregados atuavam nas oficinas, empresas e escritórios, fazendo curso de doze horas semanais e concluindo a formação profissional, em troca de fornecimento de refeições e de roupas. 
A começar da última década do século XIX, o Partido Social-Democrata alemão veio praticando inúmeras ações comunitárias, como esportes, empréstimo de livros, teatro, nudismo, combate ao alcoolismo e emancipação feminina. Discriminados pelas outras classes sociais, trabalhadores, desempregados e pobres voltaram-se para a própria coletividade e para a própria solidariedade, fundando instituições autônomas que os serviam, da infância à velhice, em busca de ascensão e de respeitabilidade sociais.Funcionavam igualmente, em torno do Partido Social-Democrata, corais operários, atendimento aos acidentados no trabalho, caixas de socorro aos doentes, às viúvas, aos órfãos. As contribuições dos social-democratas sustentavam parcialmente essas obras beneficentes e a ajuda mútua.
Esse painel assistencial punha às claras a dura vida da população trabalhadora na República de Weimar, quando governada pelo Partido Social-Democrata. Uma pesquisa constatou que, de 1919 a 1929, era frequente em todas as regiões alemãs alunos irem à escola sem alimentação de manhã. Em média, um quarto das crianças estava subalimentada. 

As terceiras mutações

Na Inglaterra, enquanto a Federação Social-Democrática e a Liga Socialista tomavam posições mais radicais contra o capitalismo, a Sociedade Fabiana desde sua criação em 1883, procurou conquistar suas reformas através de ações cautelosas, sem enfrentamentos definitivos, como agiu seu patrono, o general romano Fábio Máximo. A Sociedade Fabiana não se ligou ao marxismo, acreditou na melhora progressiva das condições sócio-econômicas dos trabalhadores com auxílio de reformas e negou a miséria crescente desta classe. 
O Partido Trabalhista Independente, idealizado por Keir Hardie (um mineiro escocês) e organizado em 1893, não obedeceu à orientação marxista. De seus dirigentes, Ramsay MacDonald desempenhou papel fundamental e foi ele quem levou o Partido Trabalhista Independente a participar do aparecimento do Partido Trabalhista (Labour Party), formalmente em 15 de fevereiro de 1906, ao qual se filiou. A princípio, só associações legalmente organizadas podiam solicitar filiação ao Partido Trabalhista (Labour Party), pois a admissão de pessoas físicas deu-se bem depois. 
MacDonald dirigiu os dois primeiros gabinetes trabalhistas minoritários na Inglaterra, de janeiro a outubro de 1924 e de 1929 a 1931. Neste ano, ele compôs um gabinete de união nacional, apoiado pela maioria de conservadores, nacionalistas liberais e nacionalistas trabalhistas. Na realidade, um conservador, Stanley Baldwin, comandou tal gabinete e Ramsay MacDonald serviu de vínculo com os sindicatos. 
Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), um setor do Partido Trabalhista colaborou na mobilização a favor da guerra, promovida pelo governo inglês. Um outro setor do Partido saiu dele, por advogar o pacifismo, como Ramsay MacDonald e o Partido Trabalhista Independente (que ainda integrava o Partido Trabalhista). A partir do final da Primeira Guerra, os operários ingleses manifestaram desejo de paz, o qual não apenas exerceu influência no interior do Partido Trabalhista como também se expandiu a outros partidos. Um chefe de governo inglês, de prestígio no Partido Conservador nas décadas de 1920 e 1930, Stanley Baldwin, passou por severa crítica de Winston Churchill, antes da Segunda Guerra, devido à sua crença no pacifismo.
As Memórias da Segunda Guerra Mundial, de Winston Churchill, são fartas na descrição das muitas composições do Partido Trabalhista inglês, antes e ao longo do conflito bélico. Na Segunda Guerra Mundial, de 1940 ao término da guerra em 1945, o Partido Trabalhista (Labour Party) fez parte do gabinete de coalizão chefiado por Churchill, conservador e protetor do Império Britânico, por isto várias vezes advertido pelo presidente norte-americano, Franklin Delano Roosevelt. Na guerra, o Partido Trabalhista auxiliado por liberais começou reformas sociais. Destaquem-se, por exemplo, o Plano Beveridge (origem do Welfare State - Estado de bem-estar social), preparado em 1942 sob a orientação do ministro do Trabalho, o socialista Ernest Bevin; e ainda a reforma democrática do sistema de ensino de 1944, com a Education Bill (Carta Educacional)
Em 1945, o encerramento da Segunda Guerra e a vitória dos aliados contra o nazifascismo levaram, pelas eleições, o Partido Trabalhista à direção do governo inglês, ao obter maioria absoluta de cadeiras na Câmara dos Comuns e 48% dos votos totais apurados. O principal representante do Partido Trabalhista (Labour Party) no gabinete de coalização de guerra 1940-1945), Clement Attlee, converteu-se em primeiro-ministro na Inglaterra.
Attlee conduziu o Estado inglês, falido pela mobilização de guerra à prosperidade econômica. Para isto, contou com John Maynard Keynes e Aneurin Bevan, nas reformas sociais e econômicas.  Diversas reformas adotadas pelo governo trabalhista (1945-1950), de Clement Attlee, foram memoráveis para a social-democracia: a nacionalização do Banco da Inglaterra, das minas de carvão, do sistema de comunicações, de transporte interno, da aviação civil, do fornecimento de energia elétrica, e mais: instituiu as bases do Welfare State (Estado de bem-estar social), ampliando seus serviços sociais:  fundou o Serviço Nacional de Saúde, sem caráter de seguro, segundo resolução do ministro da Saúde, Aneurin Bevan. Este serviço público de saúde significou uma medida tão exemplar em política social, que foi reconhecido como correto por muito tempo, inclusive por médicos e conservadores. 
O governo trabalhista de Attlee tomou notáveis decisões na política externa: cooperou no estabelecimento da Organização das Nações Unidas - ONU e na reconstrução da Europa após a guerra. Sua política de descolonização permitiu a independência da Índia, da Birmânia, do Ceilão e do Paquistão. 
As eleições de 1950 mantiveram o Partido Trabalhista por curto prazo (1950-1951) no governo, sob a direção de Clement Attlee. Dentre as deliberações deste segundo governo de Attlee, assinale-se a nacionalização da indústria siderúrgica. 


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Há possibilidade de serem feitos breves apontamentos visando ao exame da "terceira via", levando-se em conta dois modelos de social-democracia: o Partido Social-Democrata de Trabalhadores da Alemanha e o Partido Trabalhista Britânico. 
Primitivamente de tendência revolucionária, utilizando-se da repressão e do massacre, os social-democratas alemães chegaram ao extremo do reformismo na República de Weimar, e até votaram em "resolução de paz" proposta por Adolf Hitler. No tempo posterior à derrota do nazismo, o Partido Social-Democrata, aliás como toda a Alemanha, recebeu considerável impacto do plano de ajuda dos Estados Unidos da América à Europa (Plano Marshall), assumido por 16 países em 1948. Acrescente-se a este impacto a presença dos Estados Unidos nos países europeus e na República Federal da Alemanha sobretudo de 1947 em diante, por causa da chamada "guerra fria" com a União Soviética, forçando cada vez mais o Partido Social-Democrata para a "direita". 
Desde 1953, a social-democracia alemã pouco fez para resistir à propaganda anticomunista, dando primazia às metas da sociedade do bem-estar, desprezando a situação de classe social daqueles que viviam do trabalho.
Do seu lado, o Partido Trabalhista na Inglaterra, quase sem tradição marxista e revolucionária, assentado na prática da reforma, conseguiu num espaço de tempo realizar certo grau de coletivização no âmbito econômico e social, empregando a intervenção do Estado. O modelo social-democrata inglês se reproduziu em outros países de seu antigo império, como a Austrália, Canadá, Nova Zelândia e África do Sul. 
Existe alguma coisa de semelhante entre a concessão do seguro-desemprego inglês na Primeira Guerra Mundial e a sugestão do Welfare State (Estado de bem-estar social), incluído no Relatório Beveridge, no curso da Segunda Guerra. 
O primeiro-ministro inglês na Primeira Guerra, Lloyd George (1916-1922), sustentou que o seguro-desemprego (maior reforma isolada até aquela ocasião) consistia na alternativa para evitar a revolução quando a guerra acabasse
Ao prosseguir a Segunda Guerra Mundial, o deputado liberal, Sir William Beveridge, recebeu em 1941 a missão de redigir relatório sobre a organização de um sistema britânico de segurança social. O Relatório Beveridge, denominado Segurança Social e Serviços Aliados, publicado em 1942, trazia exposição de motivos, do qual constava: 

Os cidadãos estarão mais dispostos a consagrar-se ao esforço de : guerra se sentirem que o seu Governo cria planos para um mundo melhor (itálicos meus). 

O Relatório Beveridge firmou o sistema de segurança social em alguns princípios: a generalização a toda população; a unificação, com uma só cota correspondendo ao conjunto de riscos; a uniformidade nos serviços, independente de rendimentos; centralização em um único serviço público. Para ele, a política de segurança social estava unida à política de pleno emprego, ou seja, à segurança de rendimento. No Relatório, o risco social era constituído de tudo o que pusesse em perigo o rendimento regular das pessoas: a doença, o acidente de trabalho, a morte, a velhice, a maternidade, o desemprego
Ultrapassada a Segunda Guerra Mundial, em certos aspectos, a social-democracia inglesa cumpriu o papel esperado pelos Estados Unidos da América. Harold Wilson, primeiro-ministro inglês de 1964 a 1970 e de 1974 a 1976, foi ministro da Economia do gabinete trabalhista de Clement Attlee em 1947. Contrário ao fim da gratuidade do sistema de saúde na Inglaterra, com a finalidade de gerar fundos para a Guerra da Coréia, Wilson se demitiu do gabinete em 1951. 
Eleito primeiro-ministro inglês em 1964, deparou-se com grave situação interna e externa, que lhe deixou poucas alternativas, optando por uma administração tipicamente da bancada trabalhista, acomodada às condições de produção então existentes, sem qualquer experimento meritório na política econômica e na política social. Quanto à política externa, rendeu-se à política externa norte-americana, prestando colaboração na função de polícia mundial do capitalismo, de opositor de qualquer tipo de revolução social no "Terceiro Mundo".  Finalmente, a passividade dos gabinetes trabalhistas de Harold Wilson, em relação à Guerra do Vietnã, ilustrou bem o retrato de seu governo, bastante fraco em ideias claras e arrojadas, em estratégias e em objetivos a concretizar. 

É a "terceira via" uma produção histórica do trabalhismo inglês ou da social-democracia?

Social-Democracia e a "Terceira Via"

Como é conhecido, especialmente de 1973 a 1975, instalaram-se a depressão cíclica e a redução expressiva da economia dos países do grande capital. Nos países chamados ricos, abaixou o crescimento econômico. Em outros países da África, da Ásia Ocidental, da América do Sul e de igual forma na Índia, no Paquistão, etc., desapareceu o crescimento da economia. Estes países empobreceram além do que se poderia imaginar, não chegaram a crescer nos anos de 1980 e os extremos ampliaram-se, em várias categorias de pobre e de rico. 
Os anos de 1990 assistiram ao apogeu do erroneamente designado "neoliberalismo", o qual na verdade sintetizava o emprego de liberalismo radical, acompanhado de ideologias grosseiras como a "globalização", a "modernidade" e a "educação" dirigida ao sucesso profissional (?) e não ao conhecimento.  Se este liberalismo radical foi aplicado, deve ter sido nos países do Leste europeu, libertos da União Soviética. Na América do Sul, o que se pôs em prática foi um conjunto de diretrizes enunciadas por organismo internacionais ou nacionais. A política social entre os sul-americanos circunscreveu-se aos indigentes, aqueles que não têm sequer renda. 
Ora, a "terceira via" irrompeu na década de 1990, relacionando-se imediatamente com o governo trabalhista de Tony Blair, de 1997-2007, dando ares de que se tratava de qualquer coisa inovadora. Blair falou de New Labor (Novo Trabalho), mais ou menos uma crença em valores, que pode ser entendida assim: "não há direitos sem responsabilidades". Diga-se logo que esta crença, a bem da verdade, não é mais do que uma das garantias fundamentais dos povos, glória do liberalismo clássico, tão afastado desse "neoliberalismo".
Marcaram, em particular, a gestão do primeiro-ministro trabalhista inglês, Tony Blair

a) a luta contra o terrorismo, ao associar-se este governo ao governo dos Estados Unidos da América na invasão do Afeganistão e do Iraque, depois dos ataques terroristas em Nova York, em setembro de 2001; 
b) a luta contra o terrorismo, em seguida aos atentados em Londres, em julho de 2005;
c) limitações às liberdades públicas decorrentes das medidas de segurança, a seguir: o Terrorism Act 2000, a Prevention of Terrorism Act 2005 e Counter-Terrorism Act 2008 (este no governo trabalhista de seu sucessor, Gordon Brown), produzidas em razão dos ataques terroristas em Nova York (2001) e em Londres (2005); 
d) a recusa de exigir cessar-fogo israelense na Guerra do Líbano de 2006; 
e) assinatura de Memorandos de Entendimentos com países violadores de direitos humanos, a fim de extraditar prisioneiros da Inglaterra para Argélia, Omã e Líbia, onde seriam julgados e poderiam ser torturados ou mortos; 
f) extradição de prisioneiros para os Estados Unidos da américa, passíveis de sofrerem torturas no campo de Guantánamo. 

Marcaram ainda a gestão trabalhista de Blair determinados atos de cunho econômico-social:

a) o primeiro salário mínimo nacional, acompanhado de programas voltados para setores específicos da população; 
b) meta de redução de desabrigados alcançada em 2000; 
c) proteção de famílias jovens, através de sistema de créditos fiscais aos de renda abaixo da média; 
d) subsídio de energia fornecida aos aposentados durante o inverno; 
e) queda do desemprego de mais de 1,5 milhão em 1997; 
f) contribuições aos estudantes universitários;
g) incentivo ao uso de parcerias público-privadas, apesar da contestação dos sindicatos, por serem formas de privatização; 
h) desregulamentação de serviços públicos, privatizações e terceirizações de serviços governamentais. 

O sucessor do primeiro-ministro, Tony Blair, foi seu ministro das Finanças, Gordon Brown, que se tornou primeiro-ministro em 27 de junho de 2007. 

Mereceram destaques do governo de Gordon Brown:

a) a política de introdução de cartões biométricos  de identificação, ou melhor, carões abrangendo medidas, estruturas e órgãos das pessoas, tratadas estatisticamente;
b) a proposição de maior acesso do Estado às informações pessoais, como instrumento de impedir e combater o terrorismo e a criminalidade. 

A decisão de Tony Blair sobre o envio de tropas britânicas, ao lado dos Estados Unidos, na invasão do Afeganistão (em 2001) e do Iraque (em 2003), provocou polêmica no Partido Trabalhista e na Inglaterra, enfraquecendo a credibilidade de seu governo por causa das frágeis informações acerca dos países atacados. Somou-se a isto o fato de Blair não ter pedido cessar-fogo israelense na Guerra do Líbano de 2006, o que favoreceu o crescimento de sua desaprovação. 
O gabinete de Gordon Brown ganhou impopularidade, acima de tudo, porque quis mudar as liberdades públicas, fazer uso de cartões biométricos de identificação e fazer aumento de impostos, estimulando a oposição dos Liberais Democratas e do Partido Conservador a seu governo. 


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Se os governos trabalhistas de Tony Blair e de Gordon Brown são social-democratas, qual seria a substância dos programas liberais e conservadores? 

Seria o "New Labor" (Novo Trabalho), a "terceira via", uma nova social-democracia?

Quando vejo ou ouço a locução "terceira via", invariavelmente me recordo do começo dos anos de 1960, época difícil de viver no Brasil. Uma de minhas universidades professava o Catolicismo e, nas disputas políticas internas, havia os "comunistas" (na maioria, rebeldes e pouco lidos) e os "caça comunistas" (de mentalidades pré-fascistas, quase sempre provenientes de famílias de profissionais liberais, comerciantes e pequenos industriais, cujas heranças não deveriam ser muito superiores aos demais). Diante de tamanha polarização política, e com informantes políticos a cada porta, aconselharam-me a aderir à "terceira posição da Igreja", que não representava o comunismo nem o capitalismo. Seria o justo meio aristotélico? O certo é que "a terceira posição da Igreja" expressava o pensamento da Doutrina Social da Igreja Católica, das Encíclicas Papais.  O tempo me mostrou que esta "terceira posição da Igreja" unicamente significava o liberalismo conservador, com a aura de felicidade católica. 
A "terceira via", dos recentes governos trabalhistas ingleses, tem sido descrita por um conjunto de afirmativas a respeito dela: "reconciliar a direita e a esquerda, através de um política econômica conservadora e de uma política social progressista"; terceira via como "centrismo radical"; nem máxima interferência do Estado (como no socialismo), nem mínima interferência estatal (como no liberalismo); responsabilidade fiscal dos governantes, combate à miséria, carga tributária proporcional à renda; responsabilidade do Estado na segurança, na saúde, na educação, na previdência. 
Outras proposições aparecem em artigo de Anthony Giddens, originariamente publicado no "New Statesman", de 1999, intitulado "A terceira via em cinco dimensões". Em síntese, para não avançar demais, sustenta Giddens

...Tony Blair mencionou sua ambição de fomentar um consenso de centro-esquerda para o século 21, uma "Terceira Via", diversa da antiga esquerda e da nova direita. A alegação de ter encontrado uma Terceira Via fora feita previamente por [Bill] Clinton em seu discurso sobre o estado da União. (...) Sabemos o que a Terceira Via não é e, a partir dessa comparação, podemos pinçar a alternativa....

1- Valores políticos 
A social-democracia foi explicitamente uma política de classe da esquerda, possuindo como seus principais destinatários os operários da manufatura. Embora menos abertamente uma forma de política de classe, o neoliberalismo é uma filosofia conservadora, que situa a si própria na direita política. Com a rápida redução da classe trabalhadora e o desaparecimento do mundo bipolar, diminuiu a projeção da política de classe, assim como a divisão tradicional entre direita e esquerda. Direita e esquerda não perderam de todo o seu significado, como dá testemunho a existência de partidos de extrema-direita. 
(...) Atraente aos olhos de um público tão vasto, a terceira via representa um movimento de modernização do centro. Embora aceite o valor socialista básico da justiça social, ela rejeita a política de classe, buscando uma base de apoio que perpasse as classes da sociedade.  

2- Economia
(...) Ao que se acha em pauta aqui é a criação daquilo que chamarei uma nova economia mista. A nova economia mista, ao contrário da antiga, não diz respeito primariamente a um equilíbrio entre indústrias estatais e privadas. Diz respeito a um equilíbrio entre regulamentação e desregulamentação, e entre o aspecto econômico e o não-econômico na vida da sociedade. (...) A regulamentação é necessária por uma série de razões, algumas bem familiares, outras mais controversas, que resultam numa lista difícil de ser arrolada. Algumas das razões são para:

a) preservar a competição econômica quando ela é ameaçada pelo monopólio....
b) controlar monopólios naturais. Algumas indústrias só trabalham de maneira eficiente como monopólios; seria um desperdício haver duas linhas de trem ou cabos de força correndo lado a lado....
c) criar e sustentar as bases institucionais dos mercados. Todos os mercados dependem de uma polpuda acumulação de capital não-econômico....
d) resguardar bens públicos ou culturais da intromissão indesejada do mercado....
e) fazer uso dos mercados para objetivos de médio e longo prazo....
f) minimizar as flutuações dos mercados, no plano macro assim como no micro....
g) proteger as condições físicas e contratuais dos empregados, já que os trabalhadores não são "uma mercadoria como outra qualquer";...
h) reagir às catástrofes e enfrentá-las, incluindo aí os efeitos cata economia mista, o desenvolvimento econômico é sempre julgado e absorvido em termos das consequências sociais mais abrangentes. Isso inclui as próprias empresas mercantis....

3-Governo 
Os social-democratas, historicamente, sempre se empenharam em expandir o alcance do Estado e o do governo, os neoliberais, em restringi-los. A Terceira Via sustenta que é necessário reconstruí-los,... (...) Para recuperar confiança e legitimidade, a Terceira Via advoga um minucioso pacote de reformas que, juntas, poderiam definir um novo Estado democrático. O novo Estado democrático baseia-se sobretudo na delegação de poder, não somente de cima para baixo, mas também de baixo para cima: delegação de cima para baixo, para localidades e regiões, e de baixo para cima, para órgãos transnacionais.... (...) O governo não se detém mais nas fronteiras do Estado-nação: numa era de globalização, o governo mundial tem de constar de ordem do dia, o que por sua vez implica um movimento de mão dupla das autoridades democráticas. 
A chave do novo Estado democrático é "democratizar a democracia", alcançando mais transparência nos negócios públicos e experimentando novas formas de participação democrática não-ortodoxa, inclusive referendos e democracia direta....

4-Nação
Em geral, os social-democratas nutriram pouco interesse pela ideia de nação, vista com algum ceticismo e como uma ameaça à solidariedade internacional. Os neoliberais, ao contrário, tenderam a mesclar um nacionalismo categórico e isolacionista com a defesa do livre mercado. A Terceira Via busca encontrar um novo papel para a nação num mundo cosmopolita. (...) Os aspectos desagregadores do nacionalismo não desaparecerão, é claro. Mas precisamos justamente de uma versão mais cosmopolita da nacionalidade para mantê-los sob controle. (...) O que está em jogo é uma construção mais reflexiva da identidade nacional, um projeto modernizador por excelência. 

5-Welfare State 
Nenhuma questão polarizou tanto social-democratas e neoliberais quando a do Welfare State. (...) Um grupo quer manter um Welfare State máximo; o outro, reduzir tal sistema a uma rede de segurança. (...) Ao estabelecer seu projeto para o Welfare State moderno (um termo que ele odiava), Beveridge ficou famoso por declarar guerra à miséria, à doença, à ignorância, à imundice e à madraçaria. Em outras palavras, seu enfoque era amplamente negativo. Devemos deslocar a ênfase para o Welfare State positivo, ao qual dão sua contribuição os próprios indivíduos e outros órgãos além do Estado, e cuja dinâmica age como criadora de riqueza. O Estado do bem-estar reformado será um Estado de investimento social, estabelecendo uma nova relação entre risco e seguridade, de um lado, e responsabilidade individual e coletiva, de outro. O princípio do benefício previdenciário, da proteção contra o risco, continuará a ser uma parte central do investimento do Estado. A principal pauta do Estado de investimento social pode ser formulada de maneira simples: onde quer que seja possível, investir em capital humano, e não pagar diretamente os benefícios...." (grifos e itálicos meus, negritos do texto). 


Esse mundo da imaginação não pode ser belo e feliz. É uma breve e tosca fantasia de um mundo capitalista assolado pela competição entre oligopólios, os quais em falsa superação da crise dos anos de 1970 sobrevivem do descontrolado capital  financeiro. O universo das finanças significa o universo dos papéis, o valor da moeda, dos títulos, das ações, das bolsas, da especulação dos grandes investidores e dos grandes desfalques, hoje, quando tanto se alude à ética, num cotidiano sem ética. 

Bem distantes estão o término do século XIX e o início do século XX, ocasiões da crise em que os monopólios econômico-financeiros apareciam e se constituíam. Era a desesperante ocasião na qual Eduard Bernstein trocava a social-democracia revolucionária pela social-democracia reformista, pregando que o social-democrata raciocinava "como qualquer idealista" e que numa "doutrina social baseada na ideia do desenvolvimento não pode haver um objetivo final".
Radicalizado, tal irracionalismo reformista de Bernstein acabou justificando mais tarde os votos da bancada social-democrata no Parlamento Alemão em 1933, para aprovar a "resolução de paz" de Adolf Hitler e, em seguida, ser encarcerada. A maior abstração de Eduard Bernstein consistia em achar que a classe operária seria emancipada pelo simples movimento dos trabalhadores, com "linhas de orientação e objetivos", sem "um objetivo final". 
Na atualidade, o idealismo da "terceira via" revelou a enorme, ampla e penosa acumulação do capital, determinada pela devastadora competição no mercado capitalista internacional (verifique-se o negrito em competição, no texto de Anthony Giddens). Nunca o capital esteve tão separado do trabalho; nunca o trabalho esteve tão subordinado ao capital (pelo desemprego, pela desqualificação, pelo baixo salário, pelas novas tecnologias e pelas demais exigências das empresas, como fixação de idade para contratar); nunca os países estiveram tão interligados como na atualidade, podendo um deles transferir sua falência financeira a outros; nunca a miséria abraçou tamanha quantidade de pessoas, capaz de fazer a tecnoburocracia conceber projetos e mais projetos (um verdadeiro "projetismo de responsabilidade social"), para extingui-la nas sociedades, e nada!
Portanto, a "terceira via" propalou a boa-nova, ao concluir-se o século XX, o século do massacre das populações civis nas Guerras Mundiais e em outras, do aviltamento do trabalho pelo capitalismo financeiro, do precoce envelhecimento para trabalhar, da assistência social limitadíssima, como se em alguma época do capitalismo o capital pudesse sobreviver sem a apropriação do trabalho humano. 


A boa-nova da "terceira via" alimentou-se de quimeras grosseiras:

1) "A social-democracia foi explicitamente uma política de classe de esquerda, possuindo como seus principais destinatários os operários da manufatura". 

Em verdade, em verdade, a social-democracia foi uma política de classe de esquerda.  Mas sucedeu um engano ao estabelecer-se a origem da social-democracia. Diga-se apenas que a social-democracia foi consequência da transição do capitalismo liberal ao capitalismo monopolista (ou da pequena indústria para a grande indústria), como comprova o ano de 1866, da realização do Congresso de Genebra, da Associação Internacional de Trabalhadores (A.I.T). Não eram poucos os operários das indústrias, pois se concretizara a Revolução Industrial Inglesa, avançava a Revolução Industrial na França, processavam-se as Revoluções Industriais em regiões da Alemanha, nos Estado Unidos da América e no Piemonte (Itália) e - recorde-se - já eclodira a Revolução Francesa de 1848. 

2) "reconciliar a direita e a esquerda, através de uma política conservadora e de uma política social progressista";

Um absurdo lógico, porque política econômica e política social formam uma totalidade, não indo uma política para um lado e a outra política para o sentido contrário. 

3) "a rápida redução da classe trabalhadora e o desaparecimento do mundo bipolar, diminuiu a projeção da política de classe"

Certamente, "diminuiu a projeção da política de classe" no sentido dos propagadores da "terceira via". Veja-se que eles confundem a redução de postos de trabalho nas empresas e o crescimento do desemprego com a morte do valor do trabalho. Confundem o desaparecimento da União Soviética com o falso entendimento de que os soviéticos representavam os trabalhadores do mundo. 
Na história, nem o capital, nem o capitalismo têm vivido sem a apropriação privada do excedente de valor do trabalho humano. A atual fase de acumulação do capital tem requerido o aumento da qualificação operária e caberá ao capitalismo e às suas ideologias, como a "terceira via", dar conta dos desempregados e miseráveis, que, é claro, também possuem seus interesses políticos. 

4) "centrismo radical" ou nas palavras de Anthony Giddens: "a terceira via representa um movimento de modernização do centro"; "embora aceite o valor socialista básico da justiça social, ela rejeita a política de classe";

A "modernização do centro" seria nem máximo nem mínimo intervencionismo do Estado? 
Perante tal abstração, qual seria o critério de medida do máximo e do mínimo? Ora, se a "terceira via" possui o critério para apontar o "centro", logo não tem política de classe. 
Mas, se é irrealizável histórica e logicamente a construção deste critério de medida, então sobrevive a política de classe. Existem ainda as classes sociais, pois, na acumulação do capital, existe a apropriação privada do valor do trabalho e está presente a sua regulação feita pelo Estado. O próprio artigo de Giddens evidencia acima o caráter de mercadoria do trabalho humano, ao discorrer sobre a proteção das condições físicas e contratuais dos empregados, porque os trabalhadores não são "uma mercadoria como outra qualquer", em suas palavras. 

5) Para um singelo observador dos nossos dias, não passa de um disparate declarar: "O governo não se detém mais nas fronteiras do Estado-nação: numa era de globalização, o governo mundial tem de constar de ordem de dia, o que por sua vez implica um movimento de mão dupla das autoridades democráticas"

Há muitos séculos, grande número de governos não se deteve nas fronteiras do Estado-nação e continua a não se deter. A globalização ocorrida compreendeu a ação de alguns países, a ação de multinacionais (empresas internacionais) e o domínio por elas, dos mercados consumidores de quase o mundo inteiro, nada mais. Na segunda metade do século XX, a globalização não envolveu a produção fora das multinacionais, nem a transferência de tecnologia, nem o acesso às técnicas mais complexas da indústria farmacêutica e da indústria militar, por exemplo. Na verdade, o governo mundial consiste em governos de determinados países ricos e belicosos e não no governo de todos os países. 
Quanto ao "movimento de mão dupla das autoridades democráticas", como dito acima, pode ser suficiente perguntar: as populações inglesa e norte-americana opinaram (por mão dupla, por referendo ou por democracia direta) sobre a decisão de a Inglaterra e os Estados Unidos invadirem o Afeganistão e o Iraque, depois de 2001?

6) Anthony Giddens, em seu citado artigo, explica: "Ao estabelecer seu projeto para o Welfare State (um termo que ele odiava), Beveridge ficou famoso por declarar guerra à miséria, à doença, à ignorância, à imundice e à madraçaria. Em outras palavras, seu enfoque era amplamente negativo. Devemos deslocar a ênfase para o Welfare State positivo, ao  qual dão sua contribuição os próprios indivíduos e outros órgãos além do Estado, e cuja dinâmica age como criadora de riqueza".

O Plano Beveridge, referido neste escrito, foi elaborado em 1942, dentro da orientação do ministro do Trabalho, Ernest Bevin, durante a Segunda Guerra Mundial. Suas características foram a generalização a todas as pessoas, uma única cota de pagamento dos serviços, a igualdade nos serviços prestados por um único órgão público. Apesar de o Welfare State ser um único serviço público, os defensores da "terceira via" consideraram-no negativo por universalizar o combate à miséria. A "terceira via" propôs "o Welfare State positivo", isto é, custeado pelos indivíduos, por outras instituições e pelo Estado. Assim, para a "terceira via", o Welfare State deveria criar riqueza, utilizar a privatização dos serviços, individuar o atendimento e seu custo, focalizar a miséria e a indigência sem renda para consumir, prestando auxílio aos focos de pobreza, sem universalizar a garantia à sociedade. 


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Do exposto, é possível concluir que a "terceira via" agrupou princípios liberais e conservadores, sem aderir a qualquer tradição social-democrata. 
Servindo-se de nomes "democratas", "trabalhistas", "new labor", nestes governos preponderaram ideologias visando a legitimar a crise global de acumulação do capital. Com tal objetivo, estas ideologias vestiram a crise global com ares de progresso e de promessa de mundo melhor, buscando ocultar e amenizar o rebaixamento do valor do trabalho e a expansão do desemprego, que ela não consegue dar solução. 
Antes, a social-democracia pretendia gerir as crises capitalistas; nos dias que correm a social-democracia deseja esquecê-las
Em 1997, no princípio do governo trabalhista de Tony Blair, o professor titular do Instituto de Educação de Londres, Peter Gordon, que exercera o cargo de "Her Majesty´s Inspector", responsável por cuidar da qualidade de centenas de escolas do Reino Unido, em entrevista à Folha de S. Paulo, expôs o retrato educacional da aplicação da "terceira via":  

"O que o governo está querendo é desconsiderar essa complexidade de fatores e, por um passe de mágica, elevar as escolas a um padrão de excelência. (...) ...quase todo político nos últimos 50 anos tem a pretensão de conseguir isso por decreto.  
(...) A pressão é muita, especialmente, após a introdução do currículo nacional e a obsessão das autoridades em avaliar e medir. (...) Mas, deliberadamente, essa campanha não menciona a questão salarial. Como sempre, se espera que pessoas se sintam motivadas para a profissão como se esta fosse uma causa, uma missão. (...) ...são os princípios empresariais que regem a educação.... Não se pode dirigir a educação como uma companhia, impondo as regras do alto
(...) Mas isso só revela que a sociedade é hoje o que sempre foi: definitivamente estratificada. (...) ... a escola é somente um fator dentre inúmeros outros, e que atribuir à escola e ao professor muito poder na sociedade é uma forma de escamotear os problemas sociais e morais que desafiam todos nós. (...) Agora, as escolas do Estado são, em geral, bem menos equipadas do que as casas, até as dos mais pobres" (itálicos e grifos meus). 

Quem se interessou cuidadosamente pela "terceira via" talvez pensasse que os ingleses fossem ingênuos no que diz respeito à social-democracia. Mas não, antes, em 1975, o político inglês, N. Kinnock, dizia no "Tribune"

"Não podemos eliminar os males do capitalismo sem tirar-lhe a fonte da sua força: a propriedade" (itálicos e negritos meus). 

É certo que a "terceira via" encontra-se desencorajada, debilitada, provavelmente até fora da lembrança de seus antigos prosélitos, porque na década de 2000 ela perdeu a força política. Como se dizia em Hollywood, "o vento levou"... 
Porém, em países da América Latina, como o Brasil, e nos demais países, em permanente recolonização política, econômica e cultural, por parte dos países hegemônicos, podem ser descobertos partidários da "terceira via". Em muitas ocasiões, até por desconhecimento e inocentemente, estes partidários acham-se engajados em ensinar e em praticar a ideologia da "terceira via". Sabe-se lá com quanto dinheiro público e com que resultados!
Eles incorporaram tanto essa ideologia de "terceira via" nas políticas sociais, nas políticas de distribuição de renda, na formação dos "técnicos" no campo social, inclusive os responsáveis pela Educação, que às vezes presumem que o mundo e a história caminham para essa "terceira via".


Bibliografia

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BERNSTEIN, Eduard. O revisionismo na social-democracia. Um informe apresentado em Amsterdã diante de acadêmicos e trabalhadores. Trad. Antônio Roberto Bertelli. Novos Rumos, São Paulo, n. 32, p. 49-78, 2000.  
BERTELLI, Antônio R. O pano de fundo histórico-teórico do Bernstein-Debatte. Novos Rumos, São Paulo, n. 32, p. 3-47, 2000.BLAIR-BROWN GOVERNO. Disponível em: <http://translate.googleusercontent.com>. Acesso em 11.05.2010.
GIDDENS, Anthony. A terceira via em cinco dimensões. Trad. José Marcos Macedo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 21 fev. 1999, mais!, p. 4-5.
GORDON, Peter (entrevista). Professores estão se demitindo aos milhares. Folha de S. Paulo, São Paulo, 14 dez. 1997, mais!, p. 11.
HERNÁNDEZ, Jesús. Primeira Guerra Mundial. Trad. Flávia Busato Delgado. São Paulo: Madras, 2008. 
LUXEMBURG, Rosa. Reforma, revisionismo e oportunismo. Trad. Lívio Xavier. Rio de Janeiro: Laemmert, 1970. 
MICHELS, Robert. Os partidos políticos. Trad. Hamilton Trevisan. São Paulo: Senzala, s/d. 
NOMAD, Max. Heréticos da política. Trad. Mário Salviano. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1965.  
RICHARD, Lionel. A República de Weimar (1919-1933). Trad. Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
TERCEIRA VIA. Disponível em:<http://pt.wikipedia.org/wiki/Terceira_via>. Acesso em 29.10.2010. 
VIEIRA, Evaldo A. Os direitos e a política social. 2a. ed. São Paulo: Cortez, 2007. 

Evaldo A. Vieira 2010