sábado, 14 de agosto de 2021

LIEV TOLSTÓI: LIVRO DITADO PELO MUJIQUE BONDAREFF: O TRABALHO - 2021.

Fonte: BONDAREFF, Timoteo Michailovitch. O trabalho. Rio de Janeiro: Livraria Marisa, 1934, redação de LIEV TOLSTÓI, tradução de JOÃO CABRAL, 1934.


COMENTÁRIOS:

As teorias de Timoteo Michailovitch Bondareff foram recolhidas e publicadas pelo CONDE LIEV TOLSTÓI. 

"O Conde Liev Nicolaievitch Tolstói), que viveu de 1828 a 1910, foi antes de tudo a consciência moral de um povo, expressa numa forma de perfeição literária e de grandeza raras vezes atingidas na literatura mundial. O apóstolo que advogava a submissa da estética à ética realizou uma obra que arrebata justamente pela realização estética dos seus grandes valores humanos. Épico e lírico, arrebatado e lúcido, exuberante de vitalidade e chegando a extremos de autoflagelação, sensual e abominando a carne, Tolstói vive na inteireza da sua obra as maiores contradições que uma criação humana pode apresentar". 

"Na vastíssima obra de Tolstói, que abrange os panoramas imensos de Guerra e Paz e os intensíssimos dramas humanos de Ana Karênina, mas também os contos didáticos e populares, e que se espraia pelos gêneros diversos, assumindo muitas vezes um tom de doutrinação as novalas ocupam um lugaar peculiar, graças à sua função específica. Elas são essencialmente o reflexo de um remoer contínuo de casos de consciência. Mais que nos romances e nos contos, é nas novelas tolstoianas que vamos encontrar a transposição das preocupações mais doloridas do autor.  E é nelas também que a sua narrativa alcança alguns dos momentos de máxima perfeição. Ademais, pertencendo elas a épocas diferentes, toda a variação do estilo e da construção literária tolstoianas pode ser acompanha através desses pequenos mundos de ficção. 

O gênio multiforme, que se expressava tanto nas vastas telas em que representou toda uma época, com o seu emaranhado de destinos humanos, como em quadros minúsculos, onde a existência é captada em seus momentos característicos, parecia comprazer-se particularmente com o gênero intermediário na extensão e límpido em sua inteireza, o gênero que lhe permitia expor um caso de consciência, sem a complexidade de fabulação do romance, com a sua riqueza de elementos acessórios, mas também sem as limitações da história curta. O crítico e o plástico, o moralista e o esteta unem-se na novela, como numa forma perfeitamente ajustada à expressão das suas caracteristicas fundamentais. 

[Vejam-se] três novelas diferentes na vida do autor mas, na sua diversidade de estilo, de construção, de conteúdo, elas conservam a unidade da preocupação moral, o fio condutor que se percebe através de toda a obra tolstoiana": A FELICIDADE CONJUGAL; A MORTE DE IVÃ ILITCH, SONATA A KREUZER.

Diz Boris Schnaiderman

" Diante da realização estupenda da novela, da veemência do drama interior, nela expresso, o núcleo inicial pode ter estes ou aqueles defeitos, mas eles não invalidam em nada a ovra. Criado o clima interior, ela passa a ter a sua verdade específica, a verdade suprema da criação artística. E a ficção de TolstóI constitui um testemunho magnífico da realidade e vivência da obra literária, quaisquer que sejam as restrições ao seu conteúdo. As ideias expressas pelo autor estão superadas, não convencem? Não importa. Os tipos que ele criou, as situações de conflito, os dramas profundos estão aí, mais convincentes do que quaisquer transposições diretas e fiéis da realidade objetiva. 

(...) Tolstói elaborou um estilo em contínua evolução, indo da opulência ao despojamento, e da simplicidade autêntica ao aproveitamento das riquezas do linguajar do povo. enfim, um estilo estudado e marcado pela experimentação, reflexo de um temperamente tipicamente requintado e que na própria simplicidade conseguia encontrar uma forma de requinte. 


Cf. Tolstói, Leão. Três Novelas. São Paulo: Boa Leitura, s/d, tradução do russo e prefácio de Boris Schnaiderman, p. 7-12.

 

O TRABALHO E A TEORIA DE BONDAREFF    

AUTOR: LIEV TOLSTÓI.


A ideia-mestra da obra é esta: em todas as circunstâncias da vida o essencial não é saber o que é bom e necessário, mas saber qual é, entre as coisas boas e necessárias, a primeira em importância, a segunda, a terceira etc.. Eiso que é capital nas questões da vida. Com maioria de razão, deve sê-lo igualmente nas questões da religião...  (...) As desgraças e os crimes dos homens não provêm tanto de ignorarem eles os seus deveres quanto de admitirem falsos deveres, olharemm como seu devedor o que não o é, e não considerarem de forma alguma como um dever o que é seu dever principal - p. 6, 8.  

(...) o homem que diz a verdade não é de forma alguma culpado porque repete a verdade expressa antes dele e nos mesmos termos pela Escritura sagrada.  (...) O homem, com efeito, tem medo da morte e está sujeito a ela. O homem que não conhecesse nem o bem nem o mal, parece-nos mais feliz, e entretanto nós tendemos a tudo conhecer. O homem ama os prazeres e a satisfação de suas necessidades à qual não está ligado o sofrimento e, no entanto, é no trabalho e no sofrimento que ele encontra a vida, ele e toda a sua raça. Esta palavra: "Amassa teu pão com o suor da tua fronte", é importante, não porque foi dita pelo próprio Deus ao nosso pai adão, mas porque é verdadeira, porque afirma uma das leis inelutáveis da vida humana - p. 10, 12. 

Todo mundo trabalhará e comerá o pão do seu trabalho, e o pão que, ainda uma vez, é um objeto de primeira necessidade, não será nem comprado nem vendido. Que resultará daí? - Ninguém morrerá de fome. Se um homem não ganha bastante para se nutrir, ele e sua família, seu vizinho lhe virá em auxílio. Ele o ajudará porque não poderá empregar de outra forma produtos que não se vendem. E, não tendo mais tentações, não empregará mais nem a vilência nem a astúcia. Estes meios não lhe serão mais necessários, como são hoje e, se ele empregar a violência e as astúcia não é porque tenha necessidade delas como presentemente. (...)  Ninguém se esforçará mais, por desembaraçar-se do trabalho do pão e por lançá-lo sobre outrem - não se preocurará mais esmagar os fracos pelo trabalho e evitar para os poderosos toda sorte de labor. 

(...) Houve tempo em que os homens se comiam uns aos outros. Mas a noção de igualdade entre os homens desenvolveu-se de mais a mais, tanto assim que esse estado social pareceu não poder ser definitivo, e a antropofagia desapareceu. Houve tempo depois em que uns se apoderaram do trabalho dos outros, depois de os terem feito escravos. Mas, aclarando-se a consciência humana de mais a mais, este estado social não pode subsistir. Mas essa tirania, cuja forma grosseira agora desapareceu, oculta-se debaixo das formas hipócritas e subsiste ainda em nossos dias. O homem não açambarca mais abertamente o trabalho de outrem. Hoje, existe uma outra forma de violência: os ricos, aproveitando-se da necessidade dos pobres, os escrevizam. 

Mas, segundo Bondareff, eis que chega o tempo em que, sendo enfim reconhecida a igualdade dos homens entre si, ninguém poderá mais locupletar-se com a necessidade de outrem, isto é, da fome e do frio de que sofrem os outros, para escrevizá-los; pois os homens, tendo admitido que o trabalho do pão é uma lei que se impõe necessariamente a cada um deles, considerarão como seu dever estrito não vender o pão (isto é, os objetos de primeira necessidade) e alimentarem-se, vestirem-se e agasalharem-se uns aos outros - p.21-24. 

Acontece-nos às vezes ouvir dizer que não nos devemos contentar com leis negativas, com mandamentos negativos, isto é, com regras que fixam o que NÃO DEVEMOS FAZER; mas temos, dizem, necessidade de leis positivas, de mandamentos positivos, são precisas regras que determinem de uma maneira precisa o que SE DEVE FAZER. Diz-se, por exemplo, que Jesus Cristo deu 5 mandamentos negativos (a moral de Tolstói encerra-se nestes preceitos do Sermão da Montanha, explicado no livro MINHA RELIGIÃO

1) Não julgueis jamais os outros tolos e insensatos, e não vos zangueis contra alguém (Mateus, 5, 22); 

2) Não considereis o casamento como uma fonte de prazer; que o esposo não deixe sua mulher, nem a mulher seu esposo (Mateus, 5, 31-32); 

3) Não jureis; não vos ligueis jamais por promessas a quem quer que seja e seja por que for (Mateus, 5, 33-36);

4) sofrei a violência e as ofensas, e não resistais aos malvados (Mateus, 5, 38-39);

5) não olheis os homens como inimigos. amais vossos inimigos como vossos próximos (Mateus, 5, 43-45).

Pretende-se que esses cinco mandamentos nos ensinam somente o que não devemos fazer, que aí não há nem mandamento nem lei que prescreva o que devemos fazer. Pode parecer-vos estranho, com efeito, que não haja na doutrina de Cristo mandamentos precisos sobre o que se deve fazer. Mas só pode admirar-se disso aquele que não crê na doutrina de Cristo, onde se encontram não somente esses cinco mandamentos, mas a doutrina da verdade (isto é, a verdadeira doutrina por excelência). 

Ora, a doutrina da verdade, proclamada pelo Cristo, não reside nem nas leis nem nos mandamentos, mas unicamente no sentido que se dá à vida.  A doutrina da verdade ensina que a vida e o bem da vida não consistem na felicidade pessoal, como pensa a maior parte das pessoas, mas na ação de servir a Deus e seu próximo

(...) Eis por que toda doutrina positiva do Cristo, a doutrina da verdade, é expressa nestas únicas palavras: Ama a Deus e a teu próximo como a ti mesmo - p. 24-28.  

A primeira e a mais urgente das obras que deve fazer o amor consiste em dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, de vestir ao que anda nu, socorrer aos doentes e encarcerados.  (...) Toda a doutrina de Cristo, - a razão, a consciência, o sentimento, - tudo nos exorta a não dar outras provas de amaor para com os homens, antes de ter assegurado a vida de nossos irmãos, e de lhes ter poupado o sofrimento e a morte, que os atinge na luta desigual contra a natureza ("O primeiro, o mais indubitável dever do homem é a participação na luta contra a natureza, pela própeia vida e pela dos outros" - O que é preciso fazer). 

(...) É pelo Evangelho que ele se convencerá da necessidade de servir aos homens, não pela teoria da divisão do trabalho, mas pelo meio mais simples, o mais natural e o mais indispensável. ("Sem dúvida, segundo Tolstói, a divisão do trabalho existirá sempre na sociedade, mas trata-se de saber como se poderá torná-la justa. Ela traz, em nossos dias, progressos admiráveis, mas não sei por qual acaso infeliz, estes progressos não têm melhorado, mas sim agravada a situação do maior número, quer dizer do trabalhador. Como, então, tornar mais justa a distribuição do trabalho? Conservar sua vida por um trabalho manual, igual para todos, eis aí o primeiro dos deveres; cumprido este, especializar-se, mas de maneira a sempre servir ao próximo" - O que é preciso fazer, p. 31-32, 36, 104 e segs.) 

Eu podia, eu desejava mesmo provar por meio de longas explicações, a verdade desta tese, refutar todas as objeções que ouço formular contra ela; mas ainda que escrevesse mais longamente e com maior soma de talento possível, e embora eu tivesse razão, no ponto de vista lógico, não poderia convencer-te, se lutas com o espírito contra o meu, se teu coração permanece frio. (...) Tu sabes, e o livro de Bondareff aponta-te que é preciso descer até embaixo, até o lugar que te parece ser o baixo, mas que é o alto. Junta-te aos homens que dão de comer aos que têm fome e vestem os que têm frio - p. 39, 41.  


DO PREFÁCIO DO TRADUTOR


"A conversação sobre a divindade e a fé me levou a uma grande ideias para a realização da qual estou pronto a consagrar todos os meus dias. Tal ideia é a fundação de uma nova religião, correspondendo ao nível do desenvolvimento dos homens, a religião do Cristo, mas libertada do dogma e dos mistérios; uma religião prática, não prometendo os bens da vida futura, mas dando a felicidade aqui mesmo embaixo. Sei bem que serão precisas gerações inteiras trabalhando cientemente com esse fim, para realizar esta ideia. Uma geração legará este ideia à seguinte, e um dia será ela realizada, seja pela razão, seja pela fantasia. Obrar conscientemente com o fim de unir os homens pela religião, eis a base da ideia que espero me guiará" (Diário de Tolstói, 5 de março de 1855).  


TRECHOS DO LIVRO "O TRABALHO SEGUNDO A BÍBLIA", DE AUTORIA DO MUJIQUE TIMOTEO MICHAILOVITCH BONDAREFF.



"Todo o meu escrito se resume em duas palavras: 1) Por que, segundo o primeiro mandamento, não colhes tu o pão, que comes, mas comes o pão produzido pelo trabalho de outrem? 2) Por que, nos livros teológicos e nos leigos, o cultivo do trigo e o cultivador não são aprovados, mas ao contrario desprezados até o último ponto?


(...) Todo o gênero humano se divide em dois grupos:um é nobre e honrado, o outro é humilde e desprezado. O primeiro é ricamente vestido, possui mesa cheia de finos manjares, e assenta-se majestosamente nolugar de honra - são os ricos; mas o segundo, andrajoso, esgotado pelo uso dos alimentos secos e pelos trabalhos penosos, com um aspecto humilhado e triste, fica diante dele em  pé sobre o batente da entrada - são os pobres trabalhadores (fundamento: Lucas, XVI, 19-20) -: p. 53-54.

A Escritura Sagrada diz ainda: "Então Adão estenderá a mão e comerá os frutos da árvore da vida, e será vivo para sempre". (...) Poderemos admitir que foi graças aos méritos de outrem, do Cristo, que o homem, que não tem nenhum mérito, obteve o resgate de seus pecados? Mas, se esta árvore se refere à penitência de Adão, isto é, ao trabalho do pão, é entãouma tarefa muito penosa que nos é imposta. (...) Mas, se nós, os descendentes de Adão, herdamos o seu pecado e, portanto, a penitência que lhe foi imposta, e se nós nos tornamos realmente culpados, talvez ainda mais do que Adão, porque Adão não sabia tudo que temos aprendido depois, logo nós não devemos nem tentar escapar ao castigo, nem iludir de modo algum a penitência que Deus mesmo fez cair sobre Adão tanto quanto sobre nós, sua posteridade, e cada um deve trabalhar e ganhar seu pão com suas próprias mãos, seja quem for, rico ou pobre e quaisquer que sejam o seu mérito e a sua posição, fora os casos desculpáveis de doença, de velhice impotente ou ausência forçada -: p. 59-60, 62-63. 

Não era Deus capaz de criar no começo vários milhares de pessoas? Por que criou ele somente duas pessoas: o esposo e a esposa, Adão e Eva? Evidentemente, é porque, na vida humana, há 2 exigências principais (...); o primeiro pôr homens no mundo; o segundo, trabalhaar com o suor da sua fronte. Deus disse a Eva: "Aumentarei as dores da tua gravidez e os gemidos; tu parirás com dor". E disse a Adão: "Tu amassarás teu pão com o suor da tua fronte; e tu voltarás à terra donde tirado foste". 

(...) Ajunta todos os tesouros do mundo e oferece-os por uma criança. Esta não será por isto teu filho. Ela não te pertencia anteriormente; não te pertencerá mais, depois. A quem pertence, pois? - À mãe que a gerou. Acontece com o pão o mesmo que com a criança. O homem pode livrar-se do trabalho do pão; mas este pão é de outrem e fica sendo de outrem. Ele pertence àquele que o produziu por seu trabalho -:p. 65-68. 

Quer dizer, senão que eles não devem comer, se não trabalham? Mas não, eles comem diversas vezes por dia com avidez. (...) Mas tu, sendo mais inteligente e mais instruído do que nós, é preconcebidamente que tu te comportas como o fazes; se te apraz, executas esse trabalho; se não te apraz, não o executas, porque ele pode  ser exigido de fulano e de sicrano em teu lugar. Pois que tu sabes como te esquivar do trabalho do pão e a quem passar esse cuidado, então podemos julgar-te sem perdão; pois tu não obras assim por ignorância - p. 72-73. 

Por isso que, antes deste mandamento, todas as práticas religiosas fáceis de executar e não precisando nenhum trabalho, perderão suas forças atuais e irão declinando. Enfim, o mais importante é que aquele que ensina e explica a lei deve mostrá-la por toda parte como seu exemplo e pôr-se ele mesmo a trabalhar, enquanto que ordinariamente suas mãos são brancas e incapazes... (...) E por que nos rebaixais a este ponto? somente porque somos nós que vos alimentamos - p.75,77. 

Todos os crimes que se cometem sobre a terra, tais como roubos, assassinatos, logros, pilhagens, peculatos etc., tudo isto é o resultado de ser este mandamento ocultado aos homens. O rico faz tudo no mundo para evitar esta ocupação odiosa, o pobre para desembaraçar-se dela. (...) Há, porém, um meio, um remédio decisivo contra os crimes, é a lei mais antiga que Deus proclamou. Pois não é em vão que Deus não impôs dever algum antes do trabalho e não ordenou que se evitasse outro vício a não ser o abandono do trabalho. (...) Não devemos, todavia, perder de vista que os outros trabalhos são também igualmente meritórios, mas somente depois do pão, isto é, quando nos temos alimentado com o pão ganho por nossas nãos - p. 78-79, 82-83. 

Não é a lei, mas a ilegalidade, que protege aquele que vos defende contra os crimes.  (...) Nós comemos nosso pão com o suor da nossa fronte - p. 83, 91. 

O mandamento dado a Adão aplica-se não somente ao trabalho do pão, mas também a todas as outras ocupações. Da mesma forma que não podemos viver sem pão, também não podemos viver sem as outras coisas de que nos ocupamos. Criando o mundo, quis Deus que uns trabalhassem numa coisa e os outros noutra. O homem só acumula dinheiro para se desembaraçar desse trabalho ingrato - p. 91-92. 

Pergunto eu ao ricaço: Qual a lei mais inflexível? A lei teológica, escrita por um homem sobre papel, ou a lei natural, escrita por Deus mesmo em nossa alma?  ...eu prefiro a segunda, ... (...)  A vossa maneira de viver é para nós a mais cruel das ofensas e para nós uma vergonha.  (...) Deveis, antes das refeições, pedir a benção, não a Deus, mas a nós, os trabalhadores e, após, agradecer, não a Deus, mas a nós - p.102,104,106. 

Quando alguém faz uma pequena descoberta, vós o honrais com uma medalha trazendo esta inscrição: "Honra ao trabalho e às artes". Obteve alguém jamais um recompensa pelo trabalho e arte do pão?  Não.  Mas, se alguém a recebeu, foram os proprietários que semeiam mil alqueires de terra com as mãos de outrem e que não se aproximam nem deste trabalho vergonhoso nem das pessoas que o fazem. (...) Mas é possível que Deus nos tenha imposto só a nós essa penosa obrigação de trabalhar terra, enquanto que vos teria ordenado que o evitásseis por meio do dinheiro? - p. 113-114, 118. 

Entre os ricos e os pobre, há sempre uma grande e implacável inimizade. Mas quem suscitou este ódio? - p. 131. 

Eles mudaram completamente os trabalhos do pobre e dos fracos, mas estes, em represália, não cochilam nem perdem a presença de espírito: roubam, matam, queimam e enganam-se uns aos outros - p.143. 

Em todo o universo, levantam-se queixas contra Deus. Se a bondade de Deus é infinita, donde vem então a miséria que acabrunha os pobres? Se Deus governa o mundo com justiça, donde vem então a desigualdade entre os homens? Por que é o vício feliz e a virtude infeliz?... é de Deus a culpa, se rejeitamos sua lei, cujo texto restabeleceria a igualdade entre todos os mortais? - p. 160. 


O TRABALHO E O AMOR: TESTAMENTO DE BONDAREFF


O amor sem trabalho é como um homem sem cabeça, está morto. (...) É no pão, é no trabalho dos campos que devemos procurar o amor do próximo. (...) A ociosidade, o luxo eis aí quais são, pelo contrário, os principais inimigos do amor social - p. 199-200.  

 

Cf. fonte citada no princípio. 





 



sábado, 24 de abril de 2021

KARL MARX: ANÁLISE DA BUROCRACIA - Tradução: Evaldo A Vieira, 2021.

Karl Marx,  ANALYSE DE LA BUREAUCRATIE, Choix de Norbert Guterman et Henri Lefebvre, Oeuvres choisies, Tome I, France: Gallimard, 1963, in Critique de la philosophie politique de Hegel (1842).
Tradução do francês por Evaldo Amaro Vieira.


ANÁLISE DA BUROCRACIA


A existência da burocracia pressupõe a autonomia da sociedade civil, isto é, a existência das corporações. O que distingue a burocracia governamental de uma corporação civil é que os administradores e as autoridades são escolhidos entre os cidadãos, aprovando o poder propriamente dito essa escolha (o que Hegel chama: a aprovação superior).

Como Hegel explica, é preciso que, acima da esfera da sociedade civil, haja delegados do poder governamental, agentes de fiscalização e um conselho superior centrado em torno do monarca. Tudo isso para salvaguardar os interesses gerais do Estado e também a legalidade. 

Portanto, há uma divisão de trabalho no governo. Os indivíduos devem provar sua aptidão passando nos exames. O poder governamental escolhe certos indivíduos para cargos públicos. Para Hegel, esta divisão de trabalho é ditada pela "natureza da coisa". Os funcionários têm o serviço público pela vida e pelo dever. É por isto que o Estado deve pagar-lhes salários. A burocracia não pode abusar de sua posição, primeiro por causa da hierarquia e da responsabilidade dos funcionários, e depois por causa dos direitos das comunidades e das corporações. A humanidade dos burocratas, em parte depende de sua educação moral e intelectual, em parte reflete a "grandeza" do Estado. Os funcionários são a "mais importante parte da classe média". A "aristocracia e classe de mestres" da classe média está limitada no topo pela soberania e suas instituições, em baixo pelos direitos das corporações. Tal classe média é a classe da cultura. Isso é tudo. Hegel descreve empiricamente a burocracia, como ela realmente é, mas ainda como ela se vê. assim, ele se livra em sua filosofia do Estado, de um capítulo difícil, o do poder governamental. 

Hegel parte da separação entre Estado e sociedade civil, entre os interesses particulares e "o universal em si e para si". É verdade que a burocracia pressupõe o que ele chama de corporações e, em particular, de espírito corporativo. Hegel não fala muito do conteúdo da burocracia; dá apenas alguns traços gerais de sua organização formal. De fato, é correto que a burocracia constitua apenas o formalismo de um conteúdo localizado fora dela. 

As corporações são o materialismo da burocracia e a burocracia é o espiritualismo das corporações. A corporação constitui a burocracia da sociedade civil; a burocracia consiste na corporação estatal. Enquanto a burocracia é a sociedade civil do Estado, as corporações são o Estado da sociedade civil. Onde o interesse do Estado começa a afirmar-se como interesse próprio e, portanto, como um interesse real, enquanto princípio novo a burocracia combate as corporações; a consequência luta contra a existência de seus pressupostos. Pelo contrário, sempre que a sociedade civil, impulsionada por um instinto natural, procura libertar-se das corporações, a burocracia procura restabelecê-las. O desaparecimento do "!Estado da sociedade civil" implicaria o desaparecimento da "sociedade civil do Estado'. O espiritualismo desaparece com seu contrário, o materialismo. Aqui a consequência luta pela existência de seus pressupostos...

...Se a burocracia combatia anteriormente a existência das corporações para tomar seu lugar, procura agora salvaguardar a existência das corporações para salvar o espírito corporativo, seu próprio espírito. 

A burocracia traduz o "formalismo político" da sociedade civil. É a consciência do Estado, sua vontade, seu poder, como corporação, portanto, como uma sociedade particular e fechada, no Estado.* Porém a burocracia quer que os outros poderes sejam apenas imaginários, mas precisa da burocracia para garantir-se contra outras corporações, contra outro interesse particular. Acontece que a burocracia, a corporação realizada, derrota a corporação, a burocracia irrealizada. Ela a reduz, ou busca reduzi-la, a uma pura aparência, mas quer que tal aparência exista e acredite em sua própria realidade. Na corporação, a sociedade civil tende a tornar-se um estado. Na burocracia, o Estado torna-se sociedade civil. 

O "formalismo político", isto é, a burocracia, é "o Estado como formalismo", assim o descreve Hegel. À medida que o formalismo político constitui um poder efetivo, ele se torna seu próprio conteúdo. É óbvio que a burocracia em si se transforma num tecido de ilusões práticas: a ilusão política. O espírito burocrático é um espírito inteiramente jesuítico e teológico. Os burocratas são os jesuítas e os teólogos da política. A burocracia é a república sacerdotal!...

A burocracia é, a seus próprios olhos, o objetivo final do Estado. Ao transformar seus objetivos "formais" em seu conteúdo, ela entra em conflito com os objetivos "reais". Portanto, é forçada a apresentar a forma como conteúdo e o conteúdo como forma. Os objetivos do Estado passam a ser os da burocracia e os da burocracia os do Estado. A burocracia é um círculo do qual ninguém pode escapar. Essa hierarquia é uma hierarquia do saber. A cabeça instrui os membros inferiores a entender os detalhes; os membros inferiores acreditam firmemente que a cabeça entende o todo e, portanto, abusam uns dos outros.

A burocracia é o Estado imaginário ao lado do Estado real: o espiritualismo político. Tudo possui dois significados - um real, outro burocrático; da mesma forma existem dois tipos de saber - saber real e saber burocrático. O mesmo vale para a vontade. Mas tratamos a realidade burocraticamente, ou seja, só vemos seu lado irreal e espiritual. A burocracia detém em sua posse a essência do Estado, a essência espiritual da sociedade, , é sua propriedade privada. A essência espiritual da burocracia é o segredo, o mistério, mantido dentro dela graças à hierarquia, e em relação ao mundo exterior, graças à sua natureza corporativa fechada. O espírito político e a opinião pública, assim que explodem, aparecem como uma traição, como uma violação de seu mistério. O princípio de seu saber é, por conseguinte, a autoridade, e sua mentalidade é o culto dessa autoridade. Dentro da burocracia, o espiritualismo torna-se materialismo sórdido, obediência passiva, fé cega na autoridade, prática mecânica esclerosada de princípios, opiniões e tradições congelados. 

Quanto ao burocrata, considerado individualmente, o Estado torna-se para ele seu campo particular de caça aos cargos mais altos - isso é o carreirismo

* 
O materialismo sórdido da burocracia vem acompanhado por um espiritualismo igualmente sórdido, no sentido de que quer fazer tudo, concebe sua vontade como causa primeira e, 
por receber todo seu conteúdo de fora, somente pode provar a existência dando forma e limite a esse conteúdo, que é atividade em estado puro. Para a burocracia, o mundo é apenas um objeto passivo de suas atividades...

A burocracia só pode desaparecer se o interesse geral se tornar interesse particular: não apenas em teoria, como em Hegel, mas na vida real, o que por sua vez só é possível se o interesse particular for identificado com o interesse geral. 

A separação entre a sociedade civil e o Estado leva à separação entre o cidadão político e o membro da sociedade civil. Dentro do indivíduo, portanto, há uma divisão. Como cidadão real, ele pertence a dois sistemas distintos: a organização burocrática... e a organização social, a da sociedade civil onde ele se encontra como homem privado fora do Estado, porque fica alheio ao Estado político enquanto tal. A burocracia é um corpo do Estado ao qual o indivíduo fornece apenas matéria. A sociedade é um organismo civil do qual o Estado não é a matéria. A burocracia opõe-se ao Estado como forma, a sociedade civil como matéria. Para agir como verdadeiro cidadão do Estado, para desempenhar pepel político, o indivíduo deve esquecer sua realidade civil, ignorá-la, sair dela para refugiar-se em sua indivualidade pura e simples... A cisão entre a sociedade civil e o Estado político, por isto, inevitavelmente assume a forma de separação entre o cidadão político e a sociedade civil, ou seja, sua própria realidade empírica.

Como idealista político, ele é um ser completamente diferente, bem diferente de sua realidade empírica, e até mesmo oposto a ela.

A dispersão em átomos de membros da sociedade civil, quando se tornam membros da sociedade política, resulta do fato de que o ser social ou a comunidade na qual o indivíduo existe, isto é, a sociedade civil estar separada do Estado; por outras palavras, o Estado político é a abstração da sociedade civil. 

*: (O interesse geral só pode ser um interesse particular em relação a cada interesse particular, desde que cada interesse particular se proclame geral em face do geral. A burocracia é obrigada a proteger a generalidade IMAGINÁRIA do interesse particular a fim de proteger a particularidade imaginária do interesse geral: seu próprio espírito. O Estado deve ser uma corporação na medida em que a corporação quiser ser o Estado).

OBS: GRIFOS MEUS (NOTA DO TRADUTOR).


CRÍTICA À FILOSOFIA POLÍTICA DE HEGEL (1842).



 












  

quarta-feira, 21 de abril de 2021

AO MAX WEBER ESQUECIDO 2013.

"AO MAX WEBER ESQUECIDO"

PROJETO DE CURSO MINISTRADO NA UNICAMP - 2013, agradecendo a Profa. Dra. Águeda Bittencourt e a FAPESP,

BIBLIOGRAFIA  BÁSICA:


WEBER, Max - Ciência e política - duas vocações. São Paulo: Cultrix, 1970, trad. de Leônidas Hegenberg e Octany Silveira da Mota.

--------------- - A ética protestante e o espírito do capitalismo. S. Paulo: Pioneira, 1967, trad. de M. Irene e Tamás Szmrecsányi.

--------------- - Ensaios de Sociologia. R. de Janeiro: Zahar, 1971, 2a. ed., trad. de Waltensir Dutra, revisão técnica de Fernando Henrique Cardoso.

--------------- - Sobre a teoria das ciências sociais. Lisboa: Presença, s/d, 3a. ed., trad. Carlos Grifo Babo.

----------------- - Ensaios de sociologia e outros escritos. São Paulo: Abril Cultural, 1974, Os Pensadores, volume Max Weber, tradução e seleção de Maurício Tragtenberg: "Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída".

------------------ - Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, trad. José Medina Echavarria, 2 volumes.

------------------ - História geral da economia. São Paulo: Mestre Jou, 1968, trad. Calógeras A. Pajuaba.

--------------------- - Sobre a Universidade. São Paulo: Cortez, 1989, Coleção Pensamento e Ação, direção de Maurício Tragtenberg.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR:

DIGGINS, John Patrick - Max Weber - A política e o espírito da tragédia. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 1999, trad. Liszt Vieira e Marcus Lessa.

FERNANDES, Florestan - Fundamentos empíricos da explicação sociológica. São Paulo: Nacional, 1972.

FREUND, Julien - Sociología de Max Weber. Barcelona: Península, 1968, tradução de Alberto Gil Novales. 

KOFLER, Leo - La ciência de la sociedad. Madrid: Revista de Occidente, 1968.

LUKÁCS, Georgy - El asalto a la razon. Barcelona-México: Grijalbo, 1972, 3a. ed., tradução Wenceslao Roces.

MARTINDALE, Don - La teoría sociológica. Madrid: Aguilar, 1968. 

TRAGTENBERG, Maurício - Educação e burocracia. São Paulo: Edunesp, 2012, p. 139-159, Coleção Maurício Tragtenberg, direção de Evaldo A Vieira.

VIEIRA, Evaldo Amaro - Poder político e resistência cultural. Campinas-SP: Autores Associados, 1998.


TEMAS:

Tema 1: Ciência e metodologia weberiana 

1) Diferença entre os tipos de vida: Ocidente e Oriente;

2) Ciência do Ocidente: -Racionalização
- Racionalização x Racionalidade;
- Matemática: sistematização:
- Arte: Música (escla cromática), Arquitetura (ogiva de igreja);
 - Direito.

3) Técnica: divisão de trabalho.

4) Constituição: parlamento, administração. 

5) Capitalismo: lucro especulativo.

6) Capitalismo Moderno: - 

Ética:

- Protestante, burguesa, da acumulação do capital, da responsabilidade e da convicção;
-Trabalho livre;
- Separação entre empresa e produção dominical; 
- Religião racionalizada: burocracia eclesiástica.

Contabilidade, bolsa de valores.

Possibilidades técnicas e científicas.

Racionalização: capital fixo, cálculo formal.

Antes estamentos, com o capitalismo surgem as classes sociais.

Trabalho: vocação: como fim em si mesmo.


7) Método de Weber:

Neokantismo (Sociologia Alemã) e Filosofia dos Valores: crítica ideológica e crítica intralógica/ teoria e doutrina/ Kant/Dilthey/Rickert/Weber.

Relação entre meios e fins: racionalização. 

Objetividade: sempre relativa por causa dos juízos de valor.

- o método refuta o positivismo, o foco não é o fato como coisa, mas o sentido da ação e das relações sociais; 
- o método não é utópico: o método singular pela compreensão, pela construção do tipo ideal, não é teleológico; 
- o método não é acidental: a razão do pesquisador cria a categoria que decorre da frequência dos traços;