sábado, 30 de abril de 2016

DESOBEDIÊNCIA CIVIL Evaldo Vieira - ed. 1984,2016










"Se o coletor de impostos ou qualquer outro funcionário público me pergunta, como fez um deles: "Mas que vou fazer?", minha resposta é: `Se realmente deseja fazer alguma coisa, renuncie a seu cargo´. quando o súdito recusa lealdade e o funcionário renuncia a seu cargo, a revolução está realizada. Mas suponha-se mesmo que corra sangue. Não há uma espécie de derramamento de sangue quando se fere a consciência?"

HENRY DAVID THOREAU





"A primeira coisa, portanto, é dizer-vos a vós mesmos:
`Não aceitarei mais o papel de escravo. Não obedecerei às ordens como tais, mas desobedecerei quando estiverem em conflito com minha consciência´. O assim chamado patrão poderá surrar-vos e tentar forçar-vos a servi-lo. Direis: `Não, não vos servirei por vosso dinheiro ou sob ameaça´. Isso poderá implicar sofrimentos. Vossa prontidão em sofrer acenderá a tocha da liberdade que não pode jamais ser apagada."

MOHANDAS KARAMCHAND (MAHATMA) GANDHI 



"Eu tenho um sonho de que um dia esta nação vai levantar-se e sustentar o verdadeiro significado de sua crença - consideramos como verdades evidentes por si mesmas que todos os homens são criados iguais."

MARTIN LUTHER KING 






A DESOBEDIÊNCIA CIVIL COMBATE A VIOLÊNCIA


Aqui , entre nós, falar de desobediência não soa bem nos ouvidos da maioria das pessoas. E sendo desobediência civil, mais parece que se está ocupando de assunto explosivo, prejudicial e até proibido.  Até há pouco tempo, algumas respeitáveis famílias suspeitavam de qualquer  de seus membros que viesse com esta conversa de desobediência. Vem de longe a pregação em favor do cumprimento d a lei, da ordem, da hierarquia em todos os lugares da vida social: da família ao emprego, passando pela religião, pela escola e mesmo pelo clube onde se vai divertir. O princípio da autoridade encarnou em todas as pessoas, às vezes de maneira clara e exagerada, em outras ocasiões através do que se pode intitular de liberdade de impor, forma mais disfarçada e manhosa. 

Ora, leitor, vejamos o significado de "desobediência" e de "civil" no Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. "Desobediência": "falta de obediência; inobediência". O vocábulo "desobedecer" esclarece ainda mais o sentido destas palavras, querendo dizer: "não obedecer; não se submeter; transgredir, infringir, violar: desobedecer à lei".  O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Antônio Houaiss) não indica significado diferente, embora seja mais descritivo. "Desobediência": "ausência de obediência"; "inobediência"; "insubordinação". E para o vocábulo "desobedecer" concede: "não obedecer, recusando-se a acatar ordens, comandos ou o que foi estabelecido em forma de leis, preceitos etc.".

Na realidade,  a desobediência consiste em não se sujeitar à vontade, à autoridade de outras pessoas, ou simplesmente não ceder às suas decisões. Diz muito mais os mencionados dicionários sobre o adjetivo "civil", sobretudo ao aludir a seus sentidos mais puros: ele significa "relativo às relações dos cidadãos entre si, reguladas por normas do Direito Civil; relativo ao cidadão considerado em suas circunstâncias particulares dentro da sociedade", segundo o Dicionário Aurélio.  Para o Dicionário Houaiss, além disto ele dá ao adjetivo "civil" os significados: "relativo ao cidadão, considerado em seu caráter, condições e relações particulares; civilizado, sociável; polido, bem-educado".

A desobediência civil representa a desobediência dos cidadãos em sua sociedade, diante de certas condições ou de diversas leis, em particular porque elas os ofendem, elas os agridem. São pessoas atuando como cidadãos, isto é, como indivíduos possuidores de direitos e de obrigações perante o Estado. Na desobediência civil, somente participam cidadãos. Dela, estão excluídos os súditos ou os súditos tributários, aqueles que unicamente têm obrigações, aqueles que só obedecem, além de por vezes também pagarem impostos ao Estado. O cidadão reveste-se de dignidade e de direitos que lhe pertencem, intransferíveis e inegáveis. 

A questão vem de longe.
Lembremos o grupo de filósofos chamados Sofistas, que viveu na Grécia, durante o século V antes de Cristo. Alguns deles já se referiam ao princípio da igualdade e da fraternidade humanas, colocando-o acima de qualquer lei. Depois dos Sofistas, ainda na Grécia a partir do ano 300 a.C., sobretudo os pensadores denominados Estoicos destacaram o valor moral do homem. Demonstravam que todas as pessoas eram iguais, por conterem em si a mesma razão.

Com a vinda de Jesus Cristo e com a evolução do Cristianismo, os escritores cristãos tiveram a surpresa de descobrir nesses filósofos pagãos as suas próprias ideias religiosas. E especialmente a linguagem da filosofia estoica perambulou pelos séculos em diante. Ela integrou os novos pensamentos, gerados dentro de condições históricas diferentes, em particular desde a formação da sociedade burguesa. E mais: a afirmação do homem, como ser racional e dotado de garantias nascidas com ele, transformou-se em verdade comum. Considerada como regra intocável, esta verdade assumiu a posição de princípio bem aceito para todos os grandes pensadores políticos. Afinal, em tal verdade se representavam a condição de homem e ainda o caráter da razão humana, sempre com maior vigor desde o Renascimento até a Atualidade. 

Quando, em 1776, Thomas Jefferson pôs-se a escrever a Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, buscou fundamento nessas ideias,  exprimindo-as do seguinte modo: " Consideramos como verdades evidentes que todos os homens foram criados iguais; que pelo seu Criador lhes foram dados certos direitos inalienáveis; que entre estes se encontra o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade; que para assegurar estes direitos se instituíram os governos, derivando os seus justos poderes do consenso dos governados..." 

Essa Declaração se coloca entre os célebres documentos políticos sobre a condição e os direitos dos indivíduos. Na realidade, representa apenas o momento inicial em se tratando de exposição ordenada das garantias pessoais. Embora muito mais branda, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, redigida em 1789, durante a primeira Revolução Francesa, de novo sustentava que: "Os homens nascem e conservam-se livres e iguais em direitos...".

Já em nossa época, há tantas e tais declarações e acordos em defesa do homem, que até lembram os seus descumprimentos mais ou menos frequentes pelos Estados. É claro que a desobediência civil se tem utilizado dessas profissões de fé na existência humana, com a finalidade de combater a violência da lei contrária aos interesses das pessoas, e com a finalidade de repudiar a insegurança individual perante os representantes do Estado. Esta insegurança cheira a medo, por vezes cheira a sangue e cheira a morte. A desobediência civil faz uso de tais documentos contra a violência de qualquer espécie, mas não precisa necessariamente deles para repelir o ato perverso aplicado aos homens. Trata-se de desobediência de caráter civil, ou seja, praticada por cidadãos, cujos direitos e obrigações nem sempre estão escritos em papéis, por mais proclamados e citados que sejam. Portanto, leitor, eis aí desobediência superior e capaz de levar vantagem sobre a força bruta dos poderosos do dia e dos anos. Com a desobediência civil, não se justificam os temores encobertos sob a forma de prudência e de compreensão. A desobediência civil constitui resposta bem acima das manifestações dos violentos, à qual eles não conseguem responder, embora a possam respeitar. 

O século XX cobriu-se de normas relativas à proteção e à grandeza do ser humano, e há bastantes palavras gastas com isto, que dariam muito trabalho contar. Em 1929, na cidade de Nova Iorque, se adotou a Declaração Internacional dos Direitos do Homem. Em 1948, a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou a Declaração dos Direitos do Homem. Elas, porém, não bastaram. Outros documentos surgiram: em 1966, se fez o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais; e ainda em 1966, se firmou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.  

Dentre esses escritos solenes e outros mais, merece distinguir a Declaração Universal dos Direitos do Homem, posta em prática pela Organização das Nações Unidas (ONU) desde 1948, quando foi aprovada por 48 votos a favor (inclusive do Brasil) e com nenhum voto contra, tendo havido 8 abstenções (da África do Sul, Arábia Saudita, Bielorrúsia,  Tchecoslováquia, Polônia, Ucrânia, União Soviética e Iugoslávia). 

Nesta Declaração, os principais direitos humanos encontravam sua raiz na dignidade e no valor da pessoa, como já se registrara anteriormente em outros documentos. A princípio, ela dedicava todo o respeito à mais ampla liberdade dos homens, assegurando em seguida a proteção de sua existência em sociedade. Mas os representantes dos Estados que fizeram a Declaração Universal dos Direitos do Homem se cuidaram. Não concederam aos indivíduos o direito de ação perante a Organização das Nações Unidas (ONU), a fim de os Estados serem obrigados a cumprir a mencionada Declaração.

Por sinal, cabe a pergunta: por que livrar tanto os homens das garras do Estado? O Estado, como se diz, que procura concretizar o bem comum! O Estado que sempre fala em ajudar a todos! O Estado que divulga suas obras e não se cansa de louvar os seus cuidados com o país e com as pessoas! Enfim, qual o motivo de estabelecer-se regras protetoras para os homens, quando o Estado se diz tão bondoso e prestativo com eles? Que o Estado é um mal necessário e que até mesmo deverá desaparecer no futuro, são crenças de muitos séculos passados e estão muito presentes agora. Por exemplo: os filósofos do século XVIII principalmente criticaram e pregaram o controle da ação do Estado, na falta de coisa melhor. Tinham visto a violência do Estado, em especial durante ocasiões de tirania e de absolutismo. 

Ainda no século XVIII, as obras filosóficas de Jean-Jacques Rousseau expuseram a dura face do Estado, a partir de 1755, sobretudo com a publicação do Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens e com a edição do Contrato Social. Rousseau encontrou-se com a novidade do poder político moderno, tão apontado por Maquiavel no começo do século XVI. E qual era esta triste novidade? Tal novidade estava na força infinita concedida aos detentores do poder de mando, que acabavam por incorporar-se ao próprio Estado. Preocupado com a vida e a liberdade individuais, Rousseau não poupou críticas à desigualdade entre os homens. E também condenou a prática violentadora dos donos do poder público contra os governados. 

Jean-Jacques Rousseau deixou aos seres humanos do futuro, nascidos depois dele, alguns conselhos de importância incalculável. Tais conselhos compõem uma síntese perfeita da superioridade da condição de homem, tão mencionada antes e depois dele.  E suas palavras ecoaram do século XVIII em diante, como herança para todos nós, embora nem sempre bem entendidas.  

Examinemos curtas passagens deixadas por Rousseau. Leitor, não são nada velhas, observe bem o sentido delas. Fala-nos Rousseau em trechos diversos: "É do Homem que devo falar..."; "Defenderei, pois, com confiança, a causa da humanidade..."; "Quanto aos associados, recebem eles, coletivamente, o nome de povo e se chamam, em particular, cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e súditos, enquanto submetidos às leis do Estado"; "O mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever"; Todo o homem dispõe do direito de arriscar sua própria vida para conservá-la.

Cultores da infundada prudência e do desonesto conformismo ("é isso mesmo"; "tudo bem, tudo bem"), estão aí os fundamentos básicos da desobediência civil.   Está aí instrumento válido para combater a injustiça e a violência do Estado, que às vezes se mostram de outra forma. É o caso da tolerância repressiva, ao abrandar a imagem do opressor, ao ocultar os motivos das desgraças e das desesperanças, fazendo o lobo passar por cordeiro. Os cidadãos fazem parte da autoridade soberana, e esta autoridade só se garante pela soberania do povo. Mas os cidadãos não podem permitir que o mais forte chegue a converter sua força em direito. Os cidadãos não devem consentir que o mais forte imponha a obediência como dever, retirando-lhes o amparo de seus direitos essenciais. 

A tolerância repressiva esconde-se, como não podia deixar de ser, embaixo do conceito de tolerância. Afinal, a tolerância ainda continua na ordem do dia, pois poucas pessoas cometem a insensatez de afirmar claramente o desrespeito a opiniões e atuações contrárias às suas. Em geral, a maioria das pessoas diz-se por demais respeitadora do comportamento das outras. Deve ser brincadeira, leitor!  Na realidade, o modo de entender-se e de praticar-se a tolerância acaba por ajudar a dominação. Olhe em volta de si. Até mesmo nos países de vigorosa tradição liberal, constantemente louvados e invejados por sua tal estabilidade política e pela dita garantia das liberdades, é sempre preferível ficar nas palavras. Nada de alguém querer passar das palavras para a "ação radical": ou seja, para a ação simplesmente imprevista no universo da lei. 

Em nome do legalismo e da ordem social, a violência e a repressão são impostas às sociedades, como se o opressor fosse alívio para as pessoas pacatas! O uso da força representa a resposta aos grupos desobedientes. Partir para a aplicação da força demonstra que aquele legalismo e que aquela ordem social não correspondem a todos os verdadeiros desejos da sociedade. A tolerância repressiva consiste em falsificar a liberdade, enquanto a tolerância real acredita na existência da verdade concreta, a qual só se pode descobrir e experimentar através do exercício permanente da liberdade. Nem se fale na liberdade de impor, nem se fale na liberdade de apenas obedecer, obedecer...

Os princípios mais centrais da desobediência civil foram elaborador por Henry David Thoreau (1817-1862), por John Ruskin (1819-1900), por Leon Tolstói (1828-1910), por Mohandas Karamchand (Mahatma) Gandhi (1869-1948) e Martin Luther King, Jr. (1929-1968). Cada um em lugares diferentes, cada um em lugares diferentes, normalmente em seu próprio país, pensou e agiu de acordo com a desobediência civil. Além disto, alguns deles viveram épocas distintas. Mas é indiscutível que acima de tudo eles aperfeiçoaram não somente os princípios da desobediência civil, como também acrescentaram algo novo em sua realização. Surgidos em lugares e em épocas desiguais, eles ainda mais possuíam formação intelectual e situação social bastante diversas. 

O filósofo norte-americano Thoreau exerceu mais comumente a profissão de professor primário, depois de frequentar o ambiente intelectual do Harvard College. Por seu lado, Ruskin nasceu na Inglaterra, na família de rico comerciante. Realizou-se como escritor, sociólogo e crítico de arte, tendo feito brilhante carreira universitária em Oxford.

Leon Tolstói, conde russo, recebeu educação aristocrática, a qual acabou por criticar e, no fim de sua existência, chegou até a rejeitar totalmente. Colocou-se entre os mais perfeitos escritores russos,  senão universal, dedicando-se a descrever os principais aspectos da vida imperial, das desgraças e dos costumes do povo na Rússia. Já Gandhi pertenceu à família de um Primeiro-Ministro do Rajá (monarca) dos pequenos reinos de Porbandar, Rajkot e Bankaner, na Índia Ocidental. Estava ligado à casta dos mercadores, como seu pai. Contra as normas desta casta, Gandhi embarcou para a Inglaterra, onde ingressou na Faculdade de Direito, tornando-se posteriormente advogado.

O norte-americano Martin Luther King, Jr. seguiu o caminho de seu pai, atuando como copastor da Igreja Batista Ebenezer, de Atlanta, na Geórgia (EUA), após diplomar-se em Teologia e Filosofia. Embora voltados a profissões diferentes, tanto Gandhi como Luther Kinga, Jr. se destacaram como organizadores da população, como escritores e como conferencistas. Ambos foram assassinados por motivos apenas mais ou menos esclarecidos. 

É preocupação um pouco generalizada procurar saber quem influenciou quem. Investigar com a finalidade de descobrir se um deles inspirou outro ou outros discípulos da desobediência civil. Todos eles, junto com uma infinidade de sinceros e de eficientes partidários e colaboradores, definiram mais claramente o significado da desobediência civil. E também mostraram cada vez maiores recursos e maior superioridade na sua aplicação. Apesar de Gandhi haver dito que os escritos de Ruskin, e particularmente de Tolstói, muito contribuíram para sua formação intelectual e moral, tal confissão não basta para demonstrar ligação bem próxima entre eles. A desobediência civil tem-se alimentado de múltiplas fontes, conforme a política, a economia e a cultura de cada país. Mas seus princípios se mantêm, à medida que a dignidade humana precisa ser respeitada.

Os seguidores da desobediência civil acreditam que o Estado nunca enfrenta deliberadamente o homem, do ponto de vista intelectual ou moral. Ao contrário, o Estado ataca o corpo do indivíduo, usando sua grande capacidade de praticar a violência física, pois não possui, além disto, considerável inteligência ou honestidade. Neste sentido, a presença do governo permanente conduz de qualquer forma ao aparecimento do exército permanente, o braço governamental muito valioso para a aplicação de castigos aos governados. Tal situação acontece com as pessoas, mas o período de guerra retrata-a com bastante exatidão. A guerra ignora geralmente regras, normas e leis, a não ser o uso da força física e da agressividade descontrolada contra militares e civis. 

Torna-se importantíssimo o combate da admiração pelo emprego da força. A desobediência civil descobriu um único meio de lutar contra os fiéis adoradores da força bruta. Este único meio consiste em inventar e em aplicar táticas inteiramente diferentes das cultivadas pelos violentos. Elas não nasceram do nada. São táticas que nasceram de profundas meditações sobre o inestimável valor da vida, e tomam o sentido contrário a qualquer manifestação da violência. Tem-se como certo que o homem sábio prefere antes de tudo ser útil, conservando-se na situação de homem. Nega-se, portanto, a servir ao Estado, comprometendo sua consciência. Daí, as palavras de Thoreau a respeito das prisões: "Sob um governo que aprisiona alguém injustamente, o verdadeiro lugar do homem justo é também a prisão". Depois, acrescenta ainda sobre as prisões: "Se alguém pensa que sua influência lá ficaria perdida e sua voz não castigaria mais o ouvido do Estado, que não estaria como um inimigo dentro de suas paredes, é porque não sabe como a verdade é mais forte que o erro, nem como pode combater com mais eloquência e eficiência a injustiça aquele que a experimentou um pouco em sua própria pessoa"

A desobediência civil escolhe definitivamente o repúdio à violência e à injustiça, mesmo com os sérios riscos decorrentes deste ato. O indivíduo deve sobretudo, em qualquer caso, repelir o erro que já veio condenando. Portanto, caro leitor, a desobediência civil está fundamentada no princípio da ação não violenta, cuja atitude primeira se expressa no desrespeito a tudo o que humilha a consciência humana, desrespeito manifestado com franqueza e com certeza de opinião.

A ação não violenta não pode representar oposição violenta. Porém representa não violenta desobediência da lei, de situação desumana, sujeitando-se o indivíduo pacificamente à prisão. Se uma lei é injusta, ela constitui um ato de agressão. Ora, deter pessoas por causa desta lei é, na verdade, outro ato de agressão. A desobediência civil, que é a desobediência dos cidadãos, realiza sua oposição de maneira mais digna, afastando os defensores da violência através da ação não violenta. 

Por exemplo: a lei é injusta quando discrimina um grupo minoritário, embora possa até ter sido votada pela maioria. Tal fato não elimina a discriminação por qualquer motivo: raça, religião, cultura, idade, sexo etc. a lei é injusta quando se impõe a pessoas sem direito a voto. Estas pessoas devem obedecê-la, mas não participaram da elaboração da lei e, muito menos, tiveram condições de votá-la, conforme acontece com os analfabetos etc. A lei é injusta quando uma minoria a torna obrigatória para a maioria, que não foi consultada, nem lhe deu pelo voto autorização para existir. Eis o caso da chamada Constituição de 1937, durante o Estado Novo no Brasil. É também o caso da Emenda Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, promulgada no Brasil, pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar. 

Leitor, tenha mais paciência e veja até onde vai a injustiça! A lei é injusta quando votada por falsa maioria, que só aparenta representar a maior parte dos indivíduos, devido a jogadas feitas durante as eleições, afirmando determinados princípios e realizando outros depois delas. A lei é injusta quando submete uma afinidade de pessoas a viverem miseravelmente. A lei é injusta quando permite que um país pressione de qualquer modo ou ataque militarmente, ou apenas ocupe outro país, outra região, sem consentimento de seus próprios habitantes. Neste caso, tal lei agride povos diferentes, pouco importando os motivos.

Ufa!, ninguém vai pensar que aí estão todos os exemplos de injustiça, de indignidade, de insensatez e de violência existentes em nossos dias! E tem mais: é preciso lembrar que não há apenas leis injustas. Há, além delas, condições de vida inteiramente injustas, no trabalho, no lar, na escola, no ônibus, na rua, nos divertimentos etc. Não é a desobediência civil que cria os conflitos. Aliás, a ação não violenta somente mostra de forma bem clara as tensões e as opressões já presentes na sociedade, a fim de serem encaradas, discutidas e eliminadas. A desobediência civil não passivamente o ato injusto, pois jamais coopera com ele. O seguidor da desobediência civil acredita que a violência dá origem a muito mais problemas do que de fato ela vem resolver. Basta parar e olhar: se o salário da maioria da população se mantém abaixo do preço das mercadorias, eis aí um situação de violência. Como a mentira, a violência precisa de outra violência, para conservar a situação que criou. Daí, se reprimem os movimentos pelos aumentos de salários, se proíbem as liberdades de reunião e de expressão de idéias, se censura tudo o que diz respeito à aplicação da violência, se acaba em geral partindo para a agressão física dos homens. O ato violentador caminha em direção a outros atos violentadores.

A violência e os violentos unicamente conseguem vitórias bastante passageiras. Os sucessos da prática violenta são tão rápidos como o raio que marca o céu. Observe as cenas de rua, de família, do trabalho, da escola, dos governos. Imagine, por volta de 8 horas da manhã, um elegante funcionário todo engravatado, ou um jovem esportivamente vestido de acordo com a moda lançada na tarde do dia anterior. Por obséquio, imagine também que seus possantes automóveis cortem à frente de seu carro. Se você tiver a coragem de olhar para eles, poderá deparar-se com palavras e com gestos provocativos, com a finalidade de você sair do carro e enfrentá-los numa briga. Ora, é claro que você poderá olhar para eles e enviar-lhes um beijo, ou vários. Talvez venham entender mal sua atitude (por sinal, tanto faz!), porém a agressividade se desmonta e o violento não esperava esta resposta.

A vitória da violência é sempre momentânea e o agressor temporariamente sustenta sua dominação. Tolstói oferece um quadro nítido da superação da violência: "Houve tampo em que os homens se comiam uns aos outros. Mas a noção de igualdade entre os homens desenvolveu-se de mais a mais, tanto assim que esse estado social pareceu não poder ser definitivo, e a antropofagia desapareceu. Houve tempo depois em que uns se apoderaram do trabalho dos outros, depois de os terem feito escravos. Mas, aclarando-se a consciência humana de mais a mais, esse estado social não pôde subsistir. Mas essa tirania, cuja forma grosseira agora desapareceu, oculta-se debaixo de formas hipócritas e subsiste ainda em nossos dias"

A desobediência civil não necessita, para sua utilização, de grande quantidade de homens bons. A aplicação da desobediência civil exige sim a manifestação da bondade mais ampla possível, em um determinado lugar, porque ela estimulará a massa dos homens. Para tanto, a força maior da não violência está em sofrer, sem reagir em vingança. Indiscutivelmente só com enormes sacrifícios, que podem significar a cadeia e até a morte, conquistam-se de maneira sincera os inimigos, fazendo-se deles verdadeiros amigos. Ligando-se diretamente com a não violência, o movimento de desobediência civil visa à destruição da injustiça, da violência, da segregação, do egoísmo, da falsidade etc. Mas, por outro lado, tal movimento se aproxima e reveste, com o manto do respeito, o injusto, o violento, o segregacionista, o egoísta, o falso etc.

Em verdade, todos eles são expressões de vida. E a desobediência civil defende a qualquer preço a vida humana, enquanto a injustiça e a violência representam o caminho seguro para a morte. A respeito da existência do homem, valor supremo proposto pela não violência e protegido pela desobediência civil, Tolstói tem muito a dizer. Aí estão suas palavras: "A vida é um todo e você não contém senão uma de suas parcelas. E somente nesta parcela que está em você pode melhorar ou viciar, acrescer ou diminuir a vida. Melhorá-la você só pode suprimindo as barreiras que separam a sua vida da dos outros seres vivos, amando-os, considerando-os como um outro "eu" em relação a você. Não está em seu poder destruir a vida dos outros"

Por isso, a desobediência civil, que se apoia na prática da não violência, procura realizar a justiça completa em todos os aspectos da vida humana. Muitos indivíduos até poderão duvidar desta proposta. Afinal, seria o paraíso na Terra? Seriam maluquices de humanistas visionários? Idiotices de pensadores de gabinete, sem nenhuma experiência com a realidade diária, que esperam demais dos progressos alcançados pelos homens! Ora, para quem pensa assim, cabe uma resposta enérgica e completa: ninguém possui meios de fazer afirmações definitivas sobre a capacidade das pessoas. Ninguém é capaz de apontar até onde pode chegar a baixeza ou a grandeza humanas. Em determinadas situações, indivíduos se manifestam inesperadamente com absoluta falta de respeito aos outros.  Mas, em outros momentos, pessoas aparentemente sem maiores condições elevam-se à altura de modelo para o mundo dos homens. 

De outra parte, a desobediência civil considera indiscutível o fato de que a não violência é a maior força a ser empregada em defesa dos direitos das pessoas. Portanto, trata-se de força qualitativamente superior à força baseada na brutalidade e na tirania. E, ao contrário do que se possa imaginar, o indivíduo não violento está longe de permanecer passivo diante da opressão, inclusive porque ele bem compreende que a liberdade conquistada, por meio do banho de sangue ou da ilusão, não é liberdade. Sim, é aparência ou imitação ridícula da liberdade. Ela nem apresenta energia para existir da fato, devido à sua evidente falsidade. 

O movimento de desobediência civil encontra na não violência um instrumento histórico, o qual permite atacar a injustiça, sem ferir o adversário. Além do mais, enobrece quem faz uso dela. Com a não violência, os cidadãos conquistam vitórias, sem desorganizar-se, sem perder batalhas ou guerras. Sua demonstração de amor à justiça constitui modelo de comportamento para toda a sociedade. No movimento caracterizado pela não violência, participa quem quiser. Não há qualquer diferença entre as pessoas; não há exames e nem há juramentos. Seus membros, porém, devem preparar os meios de ação: a consciência, a coragem e o senso de justiça. 

Logo de início, se discutiu a maneira de combater a situação responsável pela opressão. É preciso que mil, cem, dez, ou um homem corra o risco de praticar a desobediência civil, sofrendo a punição em seu próprio corpo, como no caso de ser preso. Thoreau coloca sua posição claramente: "Não importa quão pequeno pareça o começo; o que é bem feito uma vez é feito para sempre. Todavia, gostamos mais de falar sobre isto; esta, dizemos, é nossa missão. A reforma conta com muitas vintenas de jornais a seu serviço, mas não conta com um único homem".  

Para o movimento de desobediência civil, a maior tragédia não consiste na brutalidade dos partidários da violência. A maior tragédia está no silêncio, na compreensão pouco profunda dos homens de boa vontade. Isto é pior do que a total incompreensão, do que a total rejeição, por parte dos violentos. A atitude do indivíduo moderado, que tudo entende, mas nada realiza, mostra como ele é mais amigo da "ordem" do que da justiça. Acaba sendo barreira para o movimento inspirado pela não violência. Em qualquer conversa, independentemente do local, sempre existem pessoas que creem em nobres e elevados ideais. Calam-se, porém, com medo de serem vistas como diferentes, ou com temor de comprometerem-se perante os outros

Torna-se necessário ir além da eliminação da injustiça e da violência através da desobediência civil. Esta desobediência ainda representa a melhor alternativa para salvar a liberdade e a democracia. Sem desprezar a coragem e o sacrifício devidos à resistência violenta, a ação não violenta em defesa da liberdade e da democracia comprova, sem dúvida, muito maior coragem e muito maior glória porque significa oferecer a vida, sem eliminá-la. No entanto, os partidários da desobediência civil têm como meta segura o dia, no futuro, em que o poder será controlado pelos não violentos. Afinal, neles mesmos está a própria esperança. E este dia, que virá, lhes concederá o poder político de qualquer forma. Daí, o aviso contido nesta passagem de Ruskin: "Em toda compra feita por você, considere qual condições de vida vai causar na casa dos operários, produtores do que você comprou"


(Cf. Vieira, Evaldo - O que é desobediência civil -São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984, 2016, Capítulo I)