terça-feira, 3 de novembro de 2020

POLÍTICA SOCIAL NA AMÉRICA LATINA 2009, 2020

1.   A  questão

A questão principal aqui reside no seguinte: por que os latino-americanos insistem em subir ou em descer na escala dos países subordinados, como povos saídos da independência no século XIX ?

Assim, por que os latino-americanos, na gangorra da subordinação interna e externa, persistem em causar dano à grande maioria de sua população, por meio de políticas sociais ou por outros meios, que lhe amarguram a existência e ordinariamente lhe roubam a vida, nas piores condições ?


Por que a perseverança no atraso e na dependência econômica abjeta ?Por que o infinito fosso interno entre a pobreza e a ostentação, a fome e a abastança, a tosca tecnologia e a alta tecnologia, tanto zona rural como na zona urbana ?



2. A colonização ibérica na América. 


A partir de 1492, Espanha e Portugal inventaram impérios na América do Norte ( em parte), Central e do Sul, dilatando-os progressivamente depois de 1500.
Nos princípios do século XVIII, evidenciava-se ainda mais a sujeição da Espanha e de Portugal a outros Estados, com relação às suas colônias na América. Melhor dizendo, nesse século, as economias da Inglaterra, da Espanha, de Portugal e de suas colônias americanas estavam muito entrelaçadas. 



A Espanha, um caso modelar, deixou que seu comércio colonial fosse corroído pelo contrabando nos portos, pela fraude na alfândega, pela supremacia dos comerciantes genoveses, franceses, holandeses e ingleses sobre seus negócios, consentindo que navios estrangeiros transportassem mercadorias às colônias e que escoltassem suas frotas. 


Os tecidos ingleses voltavam à Espanha e a Portugal, como mercadorias para o mercado interno desses países e para as colônias, incorporando matérias-primas importadas deles próprios. O ouro e diversos minérios americanos escorriam para a Inglaterra, com a finalidade de cobrir o déficit no balança comercial da Espanha e de Portugal. 


Portugal selou com o Tratado de Methuen de 1703 a possível subordinação econômica (e também política) à Inglaterra, enquadrando a si e a colônia brasileira no interior do poder inglês, embora muito necessitasse do Brasil. Arthur W. Costigan (Sketches of society and manners in Portugal, 1787) anotava então:

"As cidades de Lisboa e Porto podem ser, com justiça, consideradas os dois  olhos de Portugal; aqui se acham centralizadas todas as riquezas do país e todo o seu comércio com as demais nações e com suas possessões nos Brasis; destas últimas, especialmente, depende não apenas a sua existência como povo, mas, igualmente, a imediata manutenção do trono" (Costigan, apud Stein, 1977, p. 25). 

Essa subordinação aos ingleses era real, pois no começo do século XVIII perto de 11% do volume de todas as exportações da Inglaterra tomava o caminho de Portugal e da colônia brasileira. A metrópole portuguesa, sem o socorro dos produtos brasileiros, não tinha capacidade de abastecer o Brasil com as mercadorias importadas (têxteis, metalúrgicas etc.) e até mesmo de pagar as próprias importações. 


Em igual rumo, dos descobrimentos em diante, por seu lado, a Espanha criou intensa atividade mineradora capaz de sustentar sua economia interna e oferecer-lhe importância na Europa. Economia interna significava ainda custos administrativos, manutenção de funcionários eclesiásticos e seculares, dos vice-reis, dos juízes, dos governadores e capitães-gerais, dos funcionários locais, das guarnições militares e dos navios responsáveis pela escolta dos comboios. 



A economia interna subsistia do excedente agrícola e da destreza dos indígenas na empresa mineradora espanhola, que veio a exterminar boa parte deles e acabar com as organizações agrárias anteriores à conquista da Espanha. A estância, ou fazenda de gado, apareceu sobre os restos desse modo de vida suprimido pelos espanhóis, cuja principal meta era nutrir os habitantes da área de mineração. 


A propósito de tais fazendas, Jerónimo de Mendieta (História eclesiástica indiana, 1595-1596) registrava: "[...] os fazendeiros, donos de lojas, proprietários de estâncias e compradores de gado costumam vender seus trabalhadores juntamente com as propriedades. -- O quê? Esses trabalhadores indígenas e empregados são livres ou escravos? --Não importa. Pertencem à fazenda e devem continuar nela a servir. Este indígena é propriedade do meu senhor" (Mendieta, apud Stein, p. 32, 33). 
A expansão do latifúndio foi além disso favorecida pelo tributo pago aos espanhóis pelos indígenas, sob a forma da utilização do trabalho deles e do fornecimento de gêneros alimentícios, pois a população indígenas arava, semeava e colhia nas terras dos colonizadores, e ainda era obrigada a carregar as mercadorias, na falta de animais de carga. A decorrência de tal situação imposta aos indígenas, pelos espanhóis, estava no desastre demográfico presente no enorme declínio dessas populações nativas da América, provocado pelas epidemias (como a varíola, o sarampo, o tifo), pelo excesso de trabalho, pelos tributos e pela escravidão por dívidas. 

No século XVII, Portugal introduziu na colônia brasileira o latifúndio agroexportador (ou o engenho), seguido pela Espanha no século XVIII, em algumas regiões das suas colônias americanas.

 Referindo-se aos trabalhadores e à escravidão no Brasil, João Antônio Andreoni (ou André João Antonil - Cultura e opulência do Brasil, 1708), esclarecia: "Os escravos constituem as mãos e os pés do usineiro; sem eles, no Brasil, é impossível fundar, manter e ampliar uma plantação ou, sequer, operar uma usina" (Andreoni, apud Stein, p. 38).
 Formaram-se então nas colônias americanas da Espanha e de Portugal grupos sociais muito diferenciados na renda, no prestígio, no poder e na cor. 
Sobre essas distinções grupais, Alexander von Humboldt (Essai politique sur le royaume de la Nouvelle Espagne, 1807) observou: "Na Espanha, o fato de não se possuir ascendentes judeus ou árabes constitui uma espécie de título de nobreza; na América, a cor da pele (mais ou menos branca) indica a posição social do indivíduo" (Humboldt, apud Stein, p. 49). 
A sociedade colonial espanhola e portuguesa, no século XVIII, topou com desmedida desigualdade e, portanto, muito distante de qualquer tendência homogeneizadora. Fez-se uma sociedade composta dos de cima e dos de baixo, dos senhores e dos escravos, dos livres e dos não-livres, dos brancos e dos não-brancos, dos obrigados a pagar impostos e dos isentos de impostos. Os latifundiários e os proprietários de minas muniam-se de forças repressivas próprias, de prisões e de troncos para surrar escravos,  e também capelães, representando para os dóceis o meio de sobrevivência, a proteção e, enfim, a estabilidade social. 

Dirigindo-se ao seu substituto no cargo, o duque de Linares (Vice-rei do México, 1716), dizia:
"A justiça é vendida como mercadoria em qualquer mercado, onde aquele que possui dinheiro compra-a como quiser. Nesse mercado imperam o mistério e o segredo [...].  Além disso, os julgamentos são trazidos ao seu conhecimento antecipadamente e as partes interessadas preparam-se para deles fugir ou para evitar apelações por parte dos ofendidos [...]. Essa justiça assemelha-se a um verme corroendo a riqueza do reino" (Linares, apud Stein, p. 57). 
Dentro e fora dessa justiça, porém no interior do poder do Estado, medrou o burocrata de alto, médio ou baixo nível, que regeu (e em certo sentido vem regendo) as pessoas e as coisas, em nome de seus interesses e dos interesses dos outros. 

O burocratismo civil e militar, administrativo e policial, enfim o burocratismo de qualquer setor estatal, mascarava o benefício particular, a exploração colonial e o apelo à força das armas para manter a conquista e a subserviência dos conquistados.

Instituíra-se, ao longo do tempo, o que se poderia denominar de liberdade corporativa, isto é, no interior da administração colonial, na América espanhola e portuguesa, as normas e as rotinas eram tidas como normais, ou ainda como naturais, inclusive a corrupção e a pancada.  Por conseguinte, em caso de discordância sobre preceitos e procedimentos, esse burocratismo até poderia conceder a obediência, mas jamais o cumprimento deles. 

A Igreja católica apostólica romana, sob a inspeção das metrópoles espanhola e portuguesa, em meio a atuação em diversas funções religiosas como por exemplo a catequese, a  liturgia e o oferecimento dos sacramentos, igualmente geria e financiava (por meio de dízimos e taxas) escolas, hospitais, cemitérios, serviços notariais etc. Buscava desse modo, simultaneamente, a fé em Deus e a fidelidade aos Estados colonizadores. 


O expressivo rebaixamento da condição humana dos indígenas, dos negros e dos próprios brancos colonizadores e colonizados da América não autorizou, nem autoriza, qualquer suposição de maior tolerância, bondade, sensualidade, sexualidade ou clemência dos habitantes da Espanha e de Portugal, quando a colonização destes países é comparada com outras colonizações no continente americano. A bestialização dos trabalhadores, indígenas e negros, assim como a escravidão negra e por dívidas na América Espanhola e na América Portuguesa, marcaram essencialmente a sociedade latino-americana


Nesse sentido, a constituição da sociedade latino-americana impõe o reconhecimento explícito e constante de uma integração racial e social muito peculiar, cruel e desigual, quase sempre falaciosa, que não pode ser simplificada, por exemplo, em meras explicações de ascensão de certos mestiços. 


Objetivando trazer para aqui os fundamentos históricos da política social na América Latina, é preciso destacar as questões levantadas por Stanley J. Stein e Bárbara H. Stein (A herança colonial da América Latina, 1977):   

"[...] os europeus ocidentais foram, por acaso, forçados ao trabalho ininterrupto nas minas, de segunda a sábado? A Europa ocidental conheceu algum processo que levasse ao sorteio anual de trabalhadores, violentando-os e compelindo-os a se transferirem, com suas famílias, utensílios domésticos e animais de carga, ao longo de centenas de milhas, até às entradas das minas? Os europeus ocidentais conheceram ocupações nas quais os empregados podiam calcular, com assustadora segurança, que seu tempo útil de trabalho não ultrapassaria 5 a 10 anos (cálculo feito pelos plantadores brasileiros com referência aos escravos negros utilizados na agricultura açucareira na primeira metade do século XVII)? Ou ainda -- não esgotando as comparações, mas sim demonstrando a imensa possibilidade de fazê-las --, poderia um funcionário público, europeu ocidental e de posição elevada na hierarquia burocrática, retornar de seu posto, completados quatro anos de serviço, com um excedente de renda avaliado entre 1 e 1,5 milhões de pesos-prata? Eis um exemplo: o duque de Albuquerque pagou, em 1715, ao governo de Madri, a importância de 700 mil pesos-prata, evitando assim as acusações de conduta irregular em sua administração. Se a resposta às questões acima colocadas for negativa (sic), então o historiador será levado a concluir que os europeus ocidentais da Península Ibérica utilizaram o direito de conquista para explorar, em benefício pessoal, os povos submetidos da América, obtendo dessa forma o que não poderiam obter na metrópole. O colonialismo sempre foi antiético" (idem, 65; cf. 13-14, 27-28,31, 33, 56-57, 62).
E concluem Stanley J. Stein e Bárbara H. Stein:
"[...] cerca de 1700 já se achavam demarcadas as feições características da política colonial. Os cargos públicos, em qualquer nível, eram encarados como um legítimo instrumento de obtenção de interesses privados à custa do bem-estar da comunidade. A extorsão, pela monarquia, de parte do espólio dos vice-reis simbolizava, legitimava mesmo,  a venalidade, encorajava a corrupção e demonstrava sua incapacidade no controle da malversação da atividade pública.  [...] Para a elite, a lei não passava de um conjunto de normas a serem honradas apenas nas brechas que apresentava; para os não-privilegiados, a lei era algo arbitrário e hostil, sem qualquer (sic) força moral" (idem, 66; cf. 76, 78-80, 82, 87, 91, 106).
Apesar disso tudo, os descomunais lucros alcançados nas colônias americanas, pela Espanha e por Portugal, não criaram capitais internos produtivos, mas, ao contrário, intensificaram a subserviência às potências dominantes na Europa ocidental. A Inglaterra não se empenhou em estimular inovações na Espanha e em Portugal, mas diversamente ela aumentou nesses países o conservadorismo e o antirrepublicanismo, repelindo neles repercussões da Revolução Francesa de 1789. 

Os privilégios outorgados à Inglaterra estribavam-se na impossibilidade de espanhóis e portugueses oporem resistência à coação dela e de cortarem o contrabando inglês nas colônias da América. 


A ação inglesa dirigiu-se à debilitação da Espanha e de Portugal, com a finalidade de avançar sobre suas colônias americanas. Assim, coube à armada inglesa oferecer segurança contra as tropas francesas de invasão da Península Ibérica, escoltando os navios transportadores da monarquia portuguesa em fuga para o Brasil, em 1808, o qual teve em seguida seus portos abertos aos navios das nações amigas. 


Desde o século XVII, os aristocratas e os comerciantes espanhóis e portugueses entenderam que o seu habitual modo de vida só lhes seria garantido caso continuassem admitindo a submissão econômica e política aos estrangeiros . Por outro lado, muitos nativos americanos, descendentes de espanhóis e de portugueses, também tinham compreendido que a dominação da Espanha e de Portugal beneficiava-os com a continuidade da espoliação colonial, possibilitando-lhes ter parte na fruição da força de trabalho, da riqueza, da renda, de sistemas tributários extorsivos; na fruição do restrito acesso a cargos da burocracia política, militar e eclesiástica; na fruição de postos acima de qualquer suspeita; em resumo, na fruição do poder. 


Levando-se em conta tal submissão dos aristocratas, dos comerciantes e de muitos nativos americanos de origem espanhola e portuguesa, aos estrangeiros poderosos, submissão aceita e, inúmeras vezes, desejada, as transformações na América Latina nasceram mais de incitação externa do que interna. Mudanças no panorama colonial das Américas Espanhola e Portuguesa só vagarosamente, sem excessos. 


A organização social da América Latina nutriu-se, e nutre-se, de incontáveis e avantajados obstáculos de nascimento, de cor, de miséria, filtrando a reduzida melhoria de seus habitantes e suscitando a vergonhosa interpretação de que se trata de uma população comumente indolente e pouco ou nada produtiva. A abjeção social e o preconceito racial vêm abraçando o pessimismo sobre os povoadores de origem indígena e negra, e ainda dos demais povos fundadores da sociedade latino-americana. 


Em geral, as mudanças latino-americanas limitaram-se a pequeninas acomodações, ainda quando se propunham inicialmente mudanças em profundidade, para buscar qualquer coisa, ordinariamente como "política de livre-comércio", de "abertura dos portos", de "abertura dos mercados" etc., invariavelmente no interior da situação vigente.
  

3. Origens da política social na América Latina


A Constituição norte-americana de 1787 reconhecia a escravidão dos negros nos Estados onde ela já existia e permitia a compra deles nos outros Estados. Somente em 1807 o Congresso norte-americano proibiu a importação de escravos da África ou de outros Estados, por uma lei posta em vigor em janeiro de 1808, que previa certas medidas contra o tráfico de negros, como o confisco de navios. 

Mesmo proibidos, os negócios com escravos negros reavivaram-se durante os anos de 1850. 

Compromisso de Missouri, além de conservar o equilíbrio, no Senado, entre Estados do Sul escravista e do Norte livre, estabelecia a abolição da escravatura no território da Louisiana, numa linha de 36 graus 30´, latitude norte.  


O alto risco da luta política, travada no Senado e responsável pelo surgimento do Compromisso de Missouri, foi percebido na época, a ponto de Thomas Jefferson em 1820, aludindo ao Estado de Missouri, escrever: "É a questão mais importante que tem ameaçado nossa União. Até nos mais sombrios momentos da guerra revolucionária, eu nunca experimentei temores parecidos aos que me causa este incidente".
É verdade que o Compromisso de Missouri foi anulado e substituído pela Declaração Kansas-Nebraska, de 1854, do Congresso norte-americano.  Por meio da Declaração de Kansas-Nebraska, criavam-se dois territórios: Nebraska como Estado livre e Kansas como Estado escravista, atribuindo igual representação no Senado ao Norte livre e ao Sul escravocrata. 

Também é verdade que o escravismo alcançou o que mais desejava, com o reconhecimento de que a zona de escravidão era sem limites nos Estados Unidos.  Mas é acima de tudo verdade que, por outro lado, embora invalidado pela Declaração de Kansas-Nebraska de 1854, o anterior Compromisso de Missouri tinha fixado uma linha de demarcação, desde 1820, entre os Estados livres e os Estados escravistas, e isto foi um dos pontos fundamentais para a luta política, econômica e social. 

Quando e onde houve limite bem cravado, de espaço, tempo ou de condição, para alguma mudança essencial na América Latina?
A Guerra da Secessão, iniciada em 1861, quando o governo de Abraham Lincoln respondeu aos atos de guerra da Confederação do Sul, chegou até 1865. Durante essa guerra, Lincoln determinou, em setembro de 1862, a emancipação dos escravos negros dos Estados rebelados contra a União norte-americana, a partir de 1 de janeiro de 1863. Antes, no mesmo ano de 1862, Lincoln havia declarado que "não haveria mais escravatura nem servidão involuntária em qualquer parte do território dos Estados Unidos na época dele, em formação para o futuro, ou adquiridas", até chegando a propor a libertação gradual dos escravos negros, depois de indenizar os escravocratas, buscando com isso pôr fim rapidamente à guerra. No entanto, a exploração dos negros continuou enquanto os sulistas possuíram grandes propriedades e plantações.

Por ocasião da Guerra da Secessão nos Estados Unidos da América, como acontecera na Revolução Americana, que no século XVIII os criara, militantes progressistas de diversos países da Europa auxiliaram os norte-americanos na luta contra a escravatura, como aproximadamente duzentos mil voluntários alemães. Alguns revolucionários de 1848 formaram destacamentos, a exemplo do oitavo regimento de voluntários alemães. 

Karl Marx e Friedrich Engels atuaram em favor do Norte livre, combatendo o escravismo, e Marx, ao que se sabe, pensou em emigrar para os Estados Unidos, em algum momento. Calculou-se que 186.017 negros serviram nos exércitos nortistas durante a Guerra da Secessão norte-americana, e morreram 68.178 deles. 

Afinal, havia ambiente favorável. O Partido Republicano nos Estados Unidos fora fundado em oposição ao escravismo e, em 1856, este partido realizou sua primeira campanha presidencial com John Charles Frémont, explorador e depois general. Durante a Guerra da Secessão, Frémont foi comandante das tropas nortistas em Missouri até novembro de 1861 e na Virgínia em 1862, tendo sido retirado do comando, por Lincoln, em razão de seu radicalismo antiescravista. Mas, se em 1856 Frémont foi derrotado, em 1860 o Partido Republicano elegeu Abraham Lincoln à Presidência dos Estados Unidos, com o programa: "Liberdade de expressão; liberdade de acesso à terra; liberdade de trabalho, liberdade humana", após cisão no Partido Democrata. 

Karl Marx, em artigo denominado "A Destituição de McClellan" e publicado no "Die Presse", de 29 de novembro de 1862, avaliou a conduta do presidente norte-americano: 
"Lincoln, observa o Morning Star com razão, tem demonstrado ao mundo, por suas sucessivas manifestações de firmeza, que um homem pode ser lento, mas sólido, que avança com infinitas precauções, mas não recua. Cada passo de sua carreira administrativa seguiu com energia a boa direção que se fixou. Tendo partido da decisão de banir a escravatura dos territórios, eis enfim chegado à meta final de todo o "movimento antiescravista": extirpar esse flagelo do solo de toda a União. Ele já atingiu a gloriosa posição que consiste em recusar toda responsabilidade da União na manutenção da escravatura" (Marx, 1970, p. 239).
Em carta publicada no Der Social-Demokrat, de 30 de dezembro de 1864, dirigida a Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos da América, a Associação Internacional dos Trabalhadores, por seu Conselho Central, do qual participava Karl Marx, dizia:
"Nós cumprimentamos o povo americano pela ocasião de vossa reeleição, com forte maioria. Se a resistência ao poder dos escravistas fora a palavra de ordem de vossa primeira eleição, o grito de guerra triunfal de vossa reeleição é: morte à escravidão!  [...] Os operários da Europa estão convencidos de que, se a guerra da Independência americana inaugurou a nova época de impulso das classes burguesas, a guerra antiescravista inaugurou a nova época de impulso das classes operárias. Elas consideram o anúncio de nova era que o destino tenha designado Abraham Lincoln, o enérgico e corajoso filha da classe trabalhadora, para conduzir seu país na luta sem igual para a libertação de uma raça acorrentada e para a reconstrução do mundo social" (Marx, 1970, p. 239-241).
Recorde-se, ainda, a resposta do embaixador americano, Charles Francis Adams, à mensagem da Associação Internacional dos Trabalhadores, assinada por W. R. Cremer e publicada no Times de 6 de fevereiro de 1865
Além de político republicano, Charles Francis Adams foi embaixador dos Estados Unidos da América em Londres, de 1861-1868. Já W. R. Cremer foi secretário-geral honorário da Associação Internacional dos Trabalhadores. Aludindo aos Estados Unidos e ao presidente Lincoln, assinalou nesta mensagem C. F. Adams:
"O governo dos Estados Unidos entende que sua política não é, ou nem poderia ser, reacionária, mas ao mesmo tempo segue a linha adotada no princípio, ou seja, abstém-se em toda parte de uma política expansionista e de intervenções ilegais. Esforça-se em oferecer igual e exata justiça a todos os Estados e a todos os homens, e conta com os resultados benéficos desse esforço para sustentar-se interiormente e gozar do respeito e da boa vontade do mundo. As nações não existem por elas mesmas, mas para promover o bem-estar e a felicidade da humanidade, mantendo relações exemplares de boa vontade. É nesse quadro que os Estados Unidos consideram, no conflito atual contra os rebeldes escravistas, ser sua causa a mesma da natureza humana, e tiram a coragem para persistir, do testemunho dado pelos operários da Europa de que esta atitude nacional desfruta da sua iluminada aprovação e de suas simpatias verdadeiras" (Marx, 1970, p. 243).
Depois do assassinato do presidente Abraham Lincoln em 14 de abril de 1865, no mês seguinte, em 13 de maio de 1865, o Conselho Central da Associação Internacional dos Trabalhadores, em mensagem ao novo presidente Andrew Johnson, publicada no The Bee-Hive Newspaper de 20 de maio de 1865: 
"Mesmo os sicofantas que, ano após ano, dia após dia, têm realizado verdadeiro trabalho de Sísifo para assassinar moralmente Abraham Lincoln e a grande República que governou estão agora assustados com o clamor universal dos sentimentos populares e rivalizam entre si para semear flores de retórica em sua tumba aberta. [...] De fato, esse grande e bravo homem era tão modesto que o mundo só descobriu seu heroísmo depois que ele caiu como mártir" (Marx, 1970, p. 244-245).
De fato, nunca houve na América Latina um "compromisso de Missouri", e os Estados Unidos da América o estão esquecendo em tudo o que significou para eles em vidas, dores e sofrimentos. 

Mesmo depois de suas independências, os dirigentes dos países latino-americanos visaram maior abertura de novas oportunidades para a melhor concretização dos próprios interesses, indo até a guerras civis em lugar do respeito a qualquer Constituição, ou a qualquer justiça social, ou a qualquer direito social, que protegesse a grande maioria da população.
"...a carabina resolveu o problema do nomadismo indígena nos pampas com a mesma eficiência com que o fizera nas pradarias norte-americanas" (Stein, p. 113)
As independências latino-americanas não suprimiram a escravidão branca (hoje em dia, ainda é posta ante nossos olhos), nem a escravidão negra. No Brasil, o tráfico negreiro resistiu aos ataques dos navios ingleses por 40 anos, proibindo-o em 1850 e somente abolindo o regime escravista para os negros, quase outros 40 anos depois, em 1888.

Entre os brasileiros na época colonial, nem existia texto seguro das Ordenações Filipinas, publicadas em 1603, nas quais se fundou em princípio a legislação da Colônia e que de certa forma orientaram em parte o direito civil até 1916, quando apareceu o primeiro Código Civil no Brasil. A inexistência do texto, seguro ou não, das Ordenações Filipinas somou-se ao arbítrio dos senhores locais, originando aquilo que tem sido denominado de autonomia das câmaras municipais, desde o período colonial.

Isto quer dizer, em outras palavras, que aqui se firmou o princípio do privilégio, e não o princípio da igualdade, ou mesmo da liberdade. 

Basta passar os olhos nas Constituições e nas legislações para concluir que aqui se firmaram o latifúndio sem investimento, a utilização irracional e injusta da riqueza, a regalia dos militares, o assistencialismo, a caridade dos poderosos e particularmente o favor, uma das chaves da corrupção

Na América Latina há carência de sobriedade e de demais virtudes, tanto na monarquia quanto nas repúblicas. A corrupção evidente, elogiada e aperfeiçoada, fez e faz fortunas mirabolantes, rápidas ou simuladamente vagarosas, convertendo-se na escada muito desejada para a ascensão social e para a fama dos nomes de família, degenerando a vida em sociedade. 

Enfim, a desonestidade bem-sucedida constitui o apanágio das qualidades apreciadas nas várias esferas sociais. 
Na visão predominante, as virtudes em geral, a honestidade, a honradez e a sabedoria em particular compõem a natureza dos fracos e dos estúpidos.
Em se tratando de justiça social, o pensamento mais prevalecente no Brasil resume-se no seguinte:"a questão social é uma questão de polícia" (Dallari, 2000, v.2, p. 467). E se tratando de federalismo, é aconselhável recordar a frase de Rui Barbosa a respeito da primeira república brasileira: "Ontem de federação não tínhamos nada, hoje não há federação que nos baste" (Barbosa, apud Dallari, 2000, v. 2, p. 467)

A representação política é burlada a tal ponto que só ingenuamente se pode satisfazer com a mera crítica da representação enquanto tal. Se a representação eleitoral, em si, por meio de partidos ou não, figura uma das mais marcantes distorções da vontade popular na democracia representativa, no caso latino-americano as críticas a ela precisam ir muito além disso.

Em geral, a escolha da representação política nos municípios, nas assembleias legislativas, nos congressos nacionais, ou para os chefes do poder executivo etc. significa na maioria das ocasiões ato burocrático ou de desesperança, uma fatalidade ou um comércio, a oprimir a cabeça da população, sobretudo da multidão de pobres e desinformados. 

Especialmente por tudo isso, as políticas sociais são quase sempre vítimas da ação ou da omissão dos governos latino-americanos, despreocupados com os interesses da grande maioria dos habitantes e muito preocupados com os interesses dos grupos econômicos e financeiros da América Latina ou de fora dela

Assim, no século XIX, a América Latina proveu de alimentos e de matéria-prima os países industriais ou em início de industrialização, mas foi sobretudo a consumidora de uma boa parte desta produção industrializada.
No século XX, depois da crise capitalista de 1929 e, principalmente, depois da Segunda Guerra Mundial (1945), a América Latina ampliou o processo de substituição de importações em vários países, alargando igualmente seu mercado consumidor interno. As transformações sucederam em proporções muito maiores com os países muito capitalizados da América do Norte, da Europa e da Ásia. 


Nas últimas décadas do século XX e no início do século XXI, a América Latina adotou voluptuosamente a abertura de seu mercado consumidor interno, liberando a descontrolada especulação financeira nas bolsas, desejando com ardor o aumento das importações, leiloando as principais empresas públicas, privilegiando os investimentos e as empresas externas, remetendo volumosas somas de dólares para pagamento da dívida externa, cortando os gastos públicos em nome do controle das contas do Estado, com a piora acelerada da pobreza, da violência social e do desemprego em meio aos latino-americanos

Política Social



Falar de política social, nas condições expostas, é aludir a um quase arremedo de política social, a gosto dos governantes e de sua tecnoburocracia, que nunca mencionaram tanto a "proteção social" e a "educação".

A qualquer tempo, ano após ano, para conseguir empréstimos destinados a saldar dívidas externas, muitas delas originárias de déficits da balança comercial, constante desespero e humilhação de sua população, a América Latina tem sido obrigada a aceitar a eterna receita imposta pelos credores, sempre em moda exclusivamente na vida dos devedores. Essa receita consiste na obrigação de aplicar o liberalismo econômico e a estabilização monetária, que têm redundado na penúria dos latino-americanos.

Mais do que uma política econômica modernizante do capitalismo, essa combinação entre liberalismo econômico e estabilização monetária, disfarçada de plano de "ciência econômica", tem causado sujeição, vexame e obscuridade à América Latina. 

Da segunda metade do século XX em diante, premidos pela exigência de remediar os déficits da balança comercial e da balança de pagamentos, saldando quase sempre juros e, às vezes, um pouco do principal da dívida para com os credores estrangeiros, os países latino-americanos têm-se submetido às decisões dos organismos financeiros internacionais, administrados pelos governos dos grandes centros capitalistas, que são os emprestadores. 

Desses organismos financeiros internacionais, desde a segunda metade do século XX o Fundo Monetário Internacional (FMI), dentre outros, tem exercido na América Latina uma função fundamental no seu endividamento e no abuso da cobrança de juros sobre os empréstimos aí feitos. 


O Fundo Monetário Internacional (FMI), de modo especial, estimula investidores externos, privados, bancários ou não, a empregar capital nos países latino-americanos, garantidos pelos Estados da região, cuja cobrança, por incrível que pareça, atinge a própria pessoa de seus habitantes, o que há muito não permite o direito civil internacional. Para pagarem suas dívidas, os governos latino-americanos são obrigados a cortar investimentos, tornando ainda mais precários e desprezíveis os serviços da educação, da saúde, da assistência, da moradia, da previdência etc. dos governados. 



4. Latino-americanos: construção de riquezas e vidas na miséria



Rómulo Gallegos, escritor e político, que foi senador, ministro da Educação e presidente da República da Venezuela (eleito em 1947 com 80% dos votos e deposto por golpe militar em 1948), durante conferência no encerramento do Congresso pela Liberdade da Cultura, em 1956, na Cidade do México, foi questionado pelo escritor norte-americano John Dos Passos
Disse-lhe Dos Passos: "Os ditadores são criados por vocês latino-americanos". E respondeu-lhe Rómulo Gallegos: "Cierto!, pero ustedes son los que los amamantan" (Gallegos, 1982, p. 44). 
Na mencionada conferência, denominada "A Liberdade e a Cultura", Rómulo Gallegos abordou o tão decantado tema de falta de capacidade disciplinar na América Latina, salientando:  
"[...] a história não tem sido outra coisa a não ser uma sucessão de sapatadas da força contra o direito, o que levou um compatriota meu a afirmar a tese tão ao seu gosto do militar necessário para a manutenção da tranquilidade pública - certamente em correspondência à arbitrariedade governante -, e se também é verdade que esses militares não nasceram em Washington, este momento de questionamentos francos me conduz a replicar que, de algum modo, Washington os vem amamentando" (idem, 54).
E prosseguiu:
"Cabe dizer que essa sede excessiva dos exploradores de nossa riqueza, que os induzem a apoiar e até mesmo a promover violações do direito e da ética, conta frequentemente com o respaldo do poderio norte-americano, o que faz com que este apareça como cúmplice de culpas das quais poderíamos nos redimir com maior facilidade, caso fossem totalmente nossas".
Como Rómulo Gallegos, Benito Juárez também descobriu muitas razões para dizer que "a paz é o respeito ao direito alheio" (Juárez, apud Gallegos, p. 50).

Não é desprezível, antes pelo contrário merece cuidadosa reflexão, a tese exposta por Karl Marx, que via no imperialismo britânico o futuro da política norte-americana. Passaram-se os séculos e os Estados Unidos da América ainda não reconhecem que participam da América, não são a América; que representam viventes na América, não são donos da América. 

Em se mencionando os donos da América Latina, é bastante apropriado o perfil de D. Pedro, autor da independência do Brasil, traçado pelo historiador português Oliveira Martins:
"O príncipe que na América expulsava os portugueses dizia para Portugal que o seu propósito era salvar a colônia da tirania das Cortes que tiranizavam o rei seu pai e que a não ser ele fariam com que se perdesse a melhor joia da coroa portuguesa. Era sincero? Provavelmente fora sincero o pacto feito entre o pai e filho para explorarem em proveito próprio a situação, desacreditando na Europa as Cortes anarquistas com a rebeldia do Brasil por elas provocada, e confiscando na América o movimento de independência em proveito da dinastia" (Martins, 1978, p. 105-107).
E continua Oliveira Martins:
"Duas palavras apenas sobre a sorte do príncipe de quem as coisas fizeram instrumento da separação da colônia. O destino que o esperava chegou depressa. A ilusão que, parece, chegou a cegá-lo, varreu-se de breve. Nobre de caráter, quando claramente se voltou para o Brasil não o atraiçoou, e talvez chegasse a acreditar-se o Bolívar da América oriental; talvez cresse que a independência era obra sua: a tanto vai muitas vezes a cegueira dos homens! Herói de si para si, julgava-se verdadeiramente soberano, imperador, déspota - um Napoleão americano, com jus à obediência passiva e à gratidão ilimitada dos seus súditos" (Martins, p. 105-107).
O homem que fez a independência brasileira olhava pouco para os habitantes do Brasil e olhava muito para si e para sua dinastia, ora se retratando um Bolívar da América portuguesa, ora se retratando um Napoleão dos trópicos. 

A dissolução da primeira Assembleia Constituinte Brasileira de 1823, servindo-se de armas e soldados; a Constituição outorgada de 1824; o funcionamento do Conselho de Estado; a conduta do Imperador Pedro I; e muito mais demonstraram a falta completa de apego à população do país, de parte dos governantes originados da independência do Brasil. Nem os promotores da independência, nem a chamada elite monarquista tiveram compromisso com garantias individuais, a não ser com as garantias delas mesmas, diante dos escravos e dos opositores bissextos. 

O que significaria para eles política social?

Simón Bolívar convertera-se na maior personificação, dentre outras, da independência na América Latina, em que pese a existência dos demais notáveis lutadores pela vida digna de todos os habitantes dessa região. Como escritor e jornalista, Bolívar legou à posteridade a orientação política de crítica ao liberalismo, de crítica à tolerância liberal, filiando-se de forma clara muito mais à autoridade que à liberdade, muito mais ao poder político que ao poder da sociedade. 

Há muitas passagens esclarecedoras de sua atuação na América espanhola, extraídas de escritos como o Manifesto de Cartagena, a Carta de Jamaica, o Congresso de Angostura, a Constituição Boliviana e a correspondência.

No Manifesto de Cartagena, Simón Bolívar rejeitou o idealismo político, declarando:
"Os códigos que nossos magistrados consultavam não eram aqueles que podiam ensinar-lhes a ciência prática do Governo, mas os que têm formado alguns bons visionários, os quais, imaginando-se repúblicas aéreas, têm procurado alcançar a perfeição política, pressupondo a perfectibilidade da linhagem humana. De maneira que tivemos filósofos por chefes; filantropia por legislação, dialética por tática, e sofistas por soldados. Com semelhante subversão de princípios, e de coisas, a ordem social ressentiu-se da comoção, e naturalmente o Estado caminhou a passos largos para a dissolução universal, que de maneira veloz se realizou. [...] Ao abrigo dessa piedosa doutrina, a cada conspiração sucedia um perdão, e a cada perdão sucedia outra conspiração que se tornava a perdoar; porque os Governos liberais devem distinguir-se pela clemência. Clemência criminal!, que contribuiu para derrubar a máquina que ainda não havíamos concluído inteiramente! [...] O sistema federal, ainda que seja o mais perfeito, e mais capaz de proporcionar a felicidade humana em sociedade, é no entanto o mais oposto aos interesses de nossos nascentes Estado" (Bolívar, 1942, p. 14-15,18).
E prosseguiu Bolívar em outro momento:

"O presidente da República vem a ser em nossa Constituição como o Sol que, firme em seu centro, dá vida ao Universo. Essa suprema Autoridade deve ser perpétua; porque nos sistemas sem hierarquias necessita-se, mais do que em outros, um ponto fixo ao redor do qual girem os Magistrados e os cidadãos; os homens e as coisas. Dá-me um ponto fixo, dizia um antigo, e moverei o mundo. Para a Bolívia, esse ponto é o presidente vitalício. Nele consiste toda nossa ordem, sem ter por isso ação" (idem, 110).

Na Mensagem ao Congresso Constituinte da República da Colômbia em 1830, Simón Bolívar de início cuidou do despreparo da população para as reformas, sem prestar atenção em suas próprias observação idealistas, as quais em si mesmas repelia:

"Árdua e grande é a obra de constituir um povo que sai da opressão por meio da anarquia e da guerra civil, sem estar preparado previamente para receber a proveitosa reforma a que aspirava"
Tal descrença na população ficará mais evidente caso seja levado em conta este pensamento atribuído a Bolívar:



"Tal é o espírito humano; amigo e amante do sobrenatural e da mentira, e indiferente ante a Natureza e a Verdade" (idem, 137, 177)

Os latino-americanos suportaram séculos de subordinação e de espoliação, construíram riquezas para viver na miséria, assistindo igualmente ao surgimento do Império sem súditos na América portuguesa, e de República sem povo na América espanhola

A inversão é clara: aqueles que suaram; que se sujeitaram; padeceram toda sorte de desenganos e doenças; que morreram cedo em razão de violências, de guerras e do egoísmo de uns poucos transformaram-se nos responsáveis pela desordem e pela imaturidade popular. Foram, portanto, os explorados que se transmudaram em obstáculos à formação da boa sociedade, no entendimento -, diga-se, logo - dos críticos do idealismo político, do liberalismo, da tolerância liberal, enfim do que denominam de "anarquia"

Maria Graham, em seu Diário, anotou que, viúva recente, seus amigos não concordavam com sua decisão de morar só numa pequena residência do bairro do Almendral, em Valparaíso, porque aí nenhuma casa estava segura (Graham, apud Donghi, HDI, 1972, p. 16). 

Em outubro de 1844, José Manuel Restrepo registrou em seu Diário Político que o correio de Magdalena tinha sido assaltado, talvez por "um descuido dos condutores, que confiavam demasiadamente na moralidade de nosso povos" (Restrepo, apud Donghi, HDI, p. 17)

De sua experiência na região de Buenos Aires, W. Mac Cann observou que os representantes da autoridade legal e da justiça, "os chefes militares da campanha e os juízes de paz, eram mais perigosos que os delinquentes (Mac Cann, apud Donghi, HDI, p. 18).

A militarização sucedida com as independências e depois delas, principalmente na América espanhola, tornou possível algum ascensão social, dentro de determinados limites. Mas a mudança na condição social da população não fazia parte do projeto político de ninguém e o Exército consumia a maior parte da receita, elevando o custo do Estado. 

Túlio Halperin Donghi, ao mostrar a preferência à guerra civil sobre a paz interna, por parte de alguns, indica-os claramente:

"Entre eles se incluem militares ambiciosos; se incluem os membros de uma classe política a quem a revolução deu o primeiro lugar no Estado, e não se resignam em cedê-lo nem a compartilhá-lo; se inclui a multidão de jovens letrados e sem emprego, porém se inclui também essa plebe que Restrepo condena em razão da insólita ambição de comer carne, só realizável mediante saque possibilitado pela guerra" (Donghi, HDI, p. 51; cf. 50).

E prossegue Donghi: [...] " a guerra civil é para muitos, dentro do Exército como fora dele, mais uma tentação do que um perigo" (Donghi, HDI, p. 53).



A América espanhola independente temeu a rebelião negra, olhando para dentro de si mesma ou para o Haiti, embora inexistissem elementos de realidade capazes de gerar ação rebelde dos negros. Mesmo em voga o risco da africanização, os bandos em luta armaram tropas negras, da Venezuela ao Peru e ao Rio da Prata. Nas proximidades de Lima, Flora Tristán visitou a casa e o engenho de um aristocrata e modelo de proprietária e industrial, o senhor Lavalle, escutando dele a apologia do chicote como estímulo necessário aos seus novecentos escravos e também os contemplando em sua semidesnudez (transformada em desnudez completa no caso de duas mulheres presas por deixarem morrer seus filhos em razão da falta de alimentos) (Donghi, HDI, p. 55-56).


No entanto, se tudo isso era possível, de outra parte, o perigo da rebelião social, e até a iminência dela, persistiam e expandiam-se na América espanhola, ante o culto da igualdade e a manutença da desigualdade; ante a hipotética demolição da antiga ordem social pelas guerras da independência, com abalo na instituição escravista, e apesar de tudo a verdadeira preservação da escravidão.


Por isso, Basil Hall sentiu dó da "pobre gente que louvava a liberdade conquistada por seus amos, de cuja mente sem dúvida nada estava mais longe que a ideia de estender esse benefício a seus escravos" (Hall, apud Donghi, HDI, p.59; cf. 58)


Em 8 de outubro de 1826, Simón Bolívar manifestava seu receio de no futuro a África triunfar, apontando na ocasião o fato de que "a pardocracia triunfa", em algumas regiões.  Bolívar contrapunha a pardocracia à albocracia, que na interpretação de Tulio Halperin Donghi era "a emergência de homens que a ordem colonial não admitia nas primeiras filas, embora tivessem bastante instrução para utilizar essa liberdade de imprensa na qual Bolívar vê a causa da intensificação de todos os conflitos" (Donghi, HDI, p. 64).

Ainda Flora Tristán notou que "no Peru os olhos azuis e os cabelos louros são os dois gêneros de beleza mais apreciados" (Tristán, apud Donghi, HDI, p.67). 
Recordando-se dos invasores ingleses de Buenos Aires em 1806 e comparando-os com os soldados locais, Mariquita Sánchez anotou sobre "as milícias de Buenos Aires: é preciso confessar que nossa gente do campo não é linda, é forte e robusta, mas negra. As cabeças como uma circunferência, sujos [...]"  Por outro lado, para Mariquita Sánchez, os invasores vestiam-se com o "o uniforme mais poético", que tinham efeito favorável "sobre a mais bela juventude", sobre as caras de neve", sobre "a limpeza destas tropas admiráveis"(Sánchez, apud Donghi, HDI, 67-68).
 A América Latina, de modo geral desde a época das independências, vem padecendo com falta de capital e com elevados juros, de tal forma que, levando-se em conta certos registros, no domínio colonial a situação a respeito deles não era pior. 
Ricketts A. Humphreys mostrou em 1940 que "entre os anos de 1790 a 1800 existia em Lima um capital comercial de mais de 15 milhões de pesos; ao passo que no ano que corre esta abaixo de um milhão" (Humphreys, apud Donghi, HDI, p. 101).
 Em 1845, Fermín Toro destacou que a diferença mais importante entre a expansão do café na Venezuela colonial e a expansão do cacau na Venezuela independente consistia em que, na colonial, "a agricultura encontrava capitais a 5% ao ano e, na presente, a 1 ou 2% ao mês" (Toro, apud Donghi, HDI, p. 101).

O capital pertencente aos próprios latino-americanos buscou em muitas circunstâncias os países da América do Norte ou da Europa, para garantir-se contra os perigos reais ou falsos, manifestos ou não, contra a insegurança geral, vistos por seus donos na América Latina. Simón Bolívar escreveu a sua irmã Maria Antônia em 1825:
"Propriedades e fazendas ficam demais para nós, e o mesmo digo das casas, que amanhã desabarão com um tremor [...], tendo nós na Inglaterra cem mil libras esterlinas asseguradas no banco, gozaremos de uns 3% ao ano"
 Ainda em 1825, ao escrever a Peñalver, Bolívar acrescentava: 

"Em minha situação mais vale ter na Inglaterra uma mina de quatrocentos ou quinhentos mil em dinheiro, que uma mina na qual nem eu, nem meus parentes, havemos de poder trabalhar" (Bolívar, apud Donghi, HDI, p. 108). Flora Tristán assinalou o arrependimento de um general e um bispo, dos Tristán y Goyeneche de Arequipa, ricos de nascimento, que assistiram à diminuição de suas rendas e à ameaça de seus capitais por terem permenecido no Peru, enquanto um membro deste clã se transferiu para a Espanha, com sua riqueza, e lá vivia em opulência (Donghi, HDI, p. 109).

E assim, a produção latino-americana tem-se reduzido não só pela falta de capital aí mesmo gerado, como ainda pelas atividades especulativas com os governos, com a agiotagem, pela espoliação pura e simples e pelo jogo, que alcançaram ampla propagação (Donghi, HDI, p. 109). Produzir, industriar ou pós-industriar tem sido de menor valor; o importante tem sido especular, comprar barato e vender caro, cobrar dívidas e não pagar as próprias. Enriquecer tem significado dever, pagar quando puder ou simplesmente não honrar as obrigações. Comerciar quer dizer ordinariamente lucrar ao máximo, ou melhor, tirar do outro ou dos outros a vantagem total e definitiva.

A insegurança pessoal e social contagiou e contagia opressores e oprimidos, capitalistas e trabalhadores, na América espanhola e na América portuguesa. Não houve e não há tranquilidade para ninguém, em nenhum lugar, quase sempre se embalando o sonho de dias melhores no futuro, ou então a emigração para outros países, inclusive em busca dos antepassados ou ao menos de seus nomes, para comumente regressar por cansaço de ser estrangeiro, por fadiga decorrente de maus-tratos, de más condições de trabalho, por perda total da dignidade ou por saudade da terra natal etc.
102-103
Quando se pensa em justiça na América Latina, em particular na América portuguesa, sempre é preciso ter em vista os versos do poeta português Tomás Antônio Gonzaga, radicado durante muitos anos em Minas Gerais, no Brasil do século XVIII (Gonzaga, 1995, p. 44, 92, 99, 102-103, 105, 118): 

Desgraçada Justiça! Da igualdade
 Tu não sabes o ponto: é a balança
 Do interesse, que só por ti decide
 Que despachos injustos, que dispensas,
 Que mercês, e que postos  não se compram
 Ao grave peso da selada firma!
 (Cartas chilenas, Epístola a Critilo)
Com tudo isso,  de modo especial os grandes países capitalistas do Ocidente têm negado e negam à América Latina o desenvolvimento de uma civilização própria, considerando-a antes um mundo bárbaro, mal, inferior, primitivo, mestiço, estranho, indolente, pobre, imaturo, católico, latino, hispânico, ibérico, burocrático ou corporativo, sem instituições respeitáveis, incapaz econômica, política e socialmente. O oposto disso comporia os reconhecidos centros irradiadores da civilização, do bem, de cultura, do moderno (e do pós-moderno), do capital, dos capazes, dos superiores ou dos devidamente instituídos. As visões e os estereótipos contrapor-se-iam nitidamente: de um lado, a América protestante, anglo-saxã e capaz; de outro lado, a América católica, hispânica, portuguesa (e "ignorante", segundo Thomas Jefferson e John Adams, dois dos fundadores dos Estados Unidos da América).Não é por acaso que a revista Seleções do Reader´s Digest pôde reiterar semelhantes visões e estereótipos, em agosto de 1958, em sua página 65, conforme citação de Mary Anne Junqueira:
"[...] quando um americano inteligente e com amplos interesses olha em direção ao sul, ele fica bewildered (confuso) por um paradoxo. Ele vê nações estabelecidas há 400 anos atrás e ainda subdesenvolvidas, com vastas terras, diversos recursos e um tipo apenas de economia; democracias constitucionais controladas por ditadores, terras onde inumeráveis revoluções não resolveram problemas básicos. O interesse do americano provavelmente diminui [...]. Uma das causas naturais do subdesenvolvimento da América Latina é a sua geografia de montanhas, florestas e áreas que alternam enchentes e secas (idem: 58-59; cf. 5, 13-14, 54-55).
Por incrível que possa parecer, ao buscar "causas" do subdesenvolvimento latino-americano, como fez na passagem acima, a revista Seleções do Reader´s Digest não atinou com a ocorrência do Compromisso de Missouri em seu país de origem, os Estados Unidos da América, anteriormente referido, não relacionando tal acontecimento histórico, por exemplo, com os países do sul, por boa vontade, ou não, de ir mais longe na procura de tais "causas" desejadas. 

5. O que se tem afirmado comumente sobre a América Latina 


Pode-se dizer que países localizados na América Ibérica verdadeiramente deixaram, ao longo do tempo, de executar as diretrizes advindas de políticas europeias ou norte-americanas? Qual tem sido a autonomia desses países da América Ibérica na concretização de políticas internacionais? Quando eles se desprenderam da Europa e dos Estados Unidos, com a finalidade de se aproximarem, reunindo-se entre si?Tais perguntas têm obtido respostas diversas, mas o certo é que grande parte do desenvolvimento na América Latina foi incutida de fora dela, melhor dizendo, do mundo exterior a ela.Entre os latino-americanos, revolução é palavra corriqueira, na política, na sociedade, na economia, na cultura, entre os intelectuais etc., embora pouco encontrável na realidade, excetuando as revoluções mexicana, cubana e sandinista, além de certos casos esparsos. Tirantes essas revoluções, o comum girou e gira em torno de conservadorismo que insiste em não se assumir conservador, até reacionário, mais voltado a alterar a composição dos poderes políticos do que as estruturas sociais. Tudo é revolução, tudo é revolucionário, tudo é ano zero da história, e nos países latino-americanos nada se fez ou se faz sem o Estado, a entidade de maneira geral onipresente.

Quase sempre a teimosia na referência à revolução quer dizer revolução política e estatal: tomar o Estado.

Esse importante aspecto ganha ainda maior importância quando se observa que o Estado presidiu na América Latina à instalação do capitalismo tardio, associado, subdesenvolvido ou dependente, ou também, como querem os mais amenos, "emergente" ou "em desenvolvimento". Generalizando, é possível propor, sem perigo de exagerar demasiadamente, que capitalistas e trabalhadores, opressores e oprimidos, empregadores e empregados esperaram e esperam bastante do Estado, seja como ser dadivoso, merecedor de reconhecimento, seja como manancial do futuro, centro de esperança.

O poder em geral e o poder político em particular tendem à formação de oligarquias. Na América Latina, porém, quando se examinam os poderes e seus exercícios, normalmente, surgem as oligarquias representadas por grupos de famílias, controladoras dos instrumentos de decisão no campo econômico, político, social, cultural e intelectual etc., monopolizando a autoridade e o prestígio num desses campos, ou em todos. 

Os poderes oligárquicos podem ou não ser atrasados, mas tem sido certo que os grupos modernizadores  em qualquer dos campos mencionados não resistem à atração das oligarquias, compondo com elas, defendendo-as em troca do reconhecimento por elas, do valor da modernização, utilizando-se de seus meios de controle social e de seu patrimonialismo. As oligarquias têm-se mostrado práticas, experientes e ecléticas, às vezes, com gosto pela propriedade de terra, produtiva ou improdutiva (apenas como reserva de valor simbólico ou hipotecário) e com vocação a sugerir a administração dos países como se fossem grandes empresas, com a finalidade de reduzir custos e aumentar os proveitos nacionais. 

No que se refere à política, as oligarquias têm negado, ou ao menos desconfiado da democracia de qualquer natureza, no mínimo duvidando da vontade popular, do sufrágio universal e dos direitos políticos para todos, pregando o confinamento da ignorância das massas, por intermédio de técnicas tradicionalmente opressivas e violentas. 

Se de uma parte as chamadas oligarquias latino-americanas têm exercitado  valores e práticas originários da civilização burguesa, de outra parte essas oligarquias em muitas oportunidades entravaram e entravam o processo de acumulação do capital na América Latina. Elas conflitam com grupos internos mais sensíveis à expansão do capitalismo internacional, cujos projetos não se ajustam de pronto aos interesses oligárquicos, quando mais não seja no ponto de vista deles. Portanto, as oligarquias latino-americanas não têm sido sempre funcionais à propriedade, ao Estado e ao capitalismo, apesar de ampararem-se neles.

Numa economia tão diversificada como a economia da América Latina, os trabalhadores têm-se distinguido pelas origens, pela participação na produção de cada país, por suas relações com outras classes sociais e por suas relações com o Estado. 

Vivendo em terríveis condições, no geral com salários ínfimos, moradias abarrotadas de pessoas de uma ou de várias famílias, sem ingresso nos serviços educacionais ou de saúde, os trabalhadores latino-americanos assemelham-se aos operários das Revoluções Industriais de outros países europeus ou da grande depressão econômica norte-americana no século XX. No entanto, só se assemelham.


Não fosse pela quantidade e extensão deles em toda a região luso-hispânica, bastaria para diferençá-los de outros lugares o imobilismo na situação desses trabalhadores e de suas famílias, com pouquíssima alteração através dos anos, gerando a apatia de gerações inteiras, jogadas na indiferença, no desespero e na aventura na maioria das vezes malsucedida. 

Mudanças ocorreram, porém pouquíssimas, se levados em conta os obstáculos impostos ao movimento trabalhista latino-americano: das deportações de seus líderes estrangeiros até as greves, das quais a greve de 1907 no Chile, causadora do massacre de Santa María de Iquique (3.000 pessoas metralhadas pelo Exército), constitui, dentre outros massacres, o cenário histórico mais expressivo da opressão, da crueldade, do caráter ilimitado e irresponsável do Estado e da classe dirigente no trato com os trabalhadores.

Como em outras partes fora do mundo criado por espanhóis e portugueses, a classe operária na América Latina tem exibido características a serem consideradas. Uma dessas características está no rápido aparecimento de sindicatos em curto espaço de tempo, aprimoradamente organizados se comparados com os sindicatos europeus, cujas formações e organizações demoraram muito mais. Auxiliados por trabalhadores imigrados e por exilados políticos, ou mesmo sem eles, a classe operária na América Latina, para resguardar seus interesses materiais e ideológicos, andou em rumo variado em breve tempo, assumindo a índole anarquista, socialista, comunista, liberal, socialdemocrata, democrata-cristã etc., apesar de, na verdade, sua marca e doutrina mais persistentes serem representadas pelo corporativismo nazifascista, ou não. De fato, o corporativismo, que dá ao Estado a função de árbitro, tem consistido na verdadeira alma do sindicalismo empresarial e trabalhista na América Latina. Principalmente a dura e cruel repressão policial representa e representou o meio mais comum de deter e de reprimir a contestação da classe operária, embora a maneira realmente bem-sucedida de dominar essa classe tenha sido inseri-la no Estado, mediante a invenção do "sindicalismo estatal e burocratizado" após 1930, em lugar de qualquer sindicalismo de base contestadora ou revolucionária

Por conseguinte, os sindicalismos sul-americano e centro-americano abraçaram extasiadamente o "sindicato único" para cada setor empresarial, reconhecido pelo Estado, que lhes abonou a existencia e a personalidade jurídica, extinguindo o pluralismo sindical e a diversidade ideológica.  Assim os sindicalismos sul e centro-americano denunciam bem a cara de seus criadores -- as ditaduras, de quem herdaram o princípio liberdade na filiação, obrigadoriedade no pagamento

Ou seja, ingressar no sindicato não é obrigatório, mas pagar a contribuição sindical é obrigatório

O sabido apego ao corporativismo, que privilegia o voto por categoria profissional, fez dos sindicatos latino-americanos, por vezes, um modelo para a formação dos congressos nacionais, muito estimado por empregadores e empregados. Isso parece estar ligado, dentre outras razões, ao fato de, na América Latina, as pessoas serem militares antes de serem eleitores, porque o serviço militar obrigatório antecedeu quase sempre a generalização do voto nas eleições. 

Tanto o corporativismo como o militarismo têm visto a própria presença nas sociedades como capaz de organizá-las, de colocá-las na ordem, ao passo que eleições, eleitores e partidos não passam de elementos de desagregação social (cf. Vieira, 1981).   

Afora os chamados pronunciamentos ("quando chefe militar ou grupo de oficiais declara sua recusa a obedecer ao governo") de ditadores civis ou de generais que têm assumido o poder, os militares em geral atuam politicamente de forma corporativa, e o Estado faculta-lhes posição destacada junto a ele, em nome do nacionalismo, do anticomunismo, da segurança nacional, da ordem interna, da amizade com os Estados Unidos da América etc., dando-lhes em certo período um caminho de ascensão social. Instalou-se então um militarismo antigo, com regimes políticos complexos e periódicos, quase sempre destinados a reprimir o verdadeiro ou o aparente poder dos movimentos sociais, tidos como desordeiros. 


Mesmo padecendo com a perda de religiosos, de catequistas, de seus membros leigos e de seus membros da hierarquia eclesiástica, como por exemplo bispo, muitas vezes vítimas de crimes da maior infâmia; mesmo com a adesão à Teologia da Libertação por vários setores dela; a Igreja católica apostólica romana aproximou-se dos regimes militares na América Latina, talvez por falso paradoxo. Se inegavelmente os católicos, leigos ou clérigos, atuaram e atuam na defesa dos direitos humanos, de outra parte a Igreja católica apoiou ostensivamente regimes militares latino-americanos, conservadores, agressivos e contrários aos direitos.


Da variedade de casos demonstrativos da aprovação da Igreja católica aos regimes discricionários na América Latina, chamam a atenção as marchas promovidas por essa Igreja, "para a defesa da família com Deus pela liberdade", organizadas nas grandes cidades e capitais do Brasil, em 1964, contra o governo constitucional do presidente João Goulart e em auxílio ao golpe civil e militar que o despojou do poder. 

Na Colômbia, o cardeal Muñoz Duque, arcebispo de Bogotá, foi elevado a general-de-brigada em junho de 1976.

A existência de padres revolucionários e de bispos da oposição pressupõe circunstancias específicas das Igrejas em cada país e no continente latino-americano.

A América Latina ansiou e anseia sempre o crescimento econômico e o desenvolvimento econômico, como dádiva celeste, que tomam o caráter de progresso ou de civilização, alçando-se à posição de venerável, como por sinal sucede com a educação popular   de diferente matiz, desde meados dos anos de 1930. O crescimento econômico ou, se quiser, o desenvolvimento econômico entre os latino-americanos, de maneira geral, receberam e recebem o aplauso dos donos de poder de cada dia, porque a modernização consta do desejo de todos. Bem entendida, ela resulta no entendimento deles da harmonia das classes, da comunhão dos interesses de classes distintas, da paz social entre empregadores e empregados.

No que diz respeito ao crescimento econômico e ao desenvolvimento econômico, os países da América Latina têm-se deparado com embaraços mais ou menos semelhantes entre eles, que são combatidos com muito experimentalismo idealista, com graves prejuízos à população, não constituindo necessariamente fator capaz de fortalecer a independência de cada um, antes pelo contrário. Uma praxe das empresas, acima de tudo das grandes empresas, que todo mundo conhece, mas ninguém viu, nasce dos verbos "superfaturar" e "subfaturar", quer dizer, superfaturam-se as compras com a finalidade de repatriar os lucros, remetendo-os à matriz ou às matrizes, e subfaturam-se as vendas para aumentar os custos de produção.

Além disso, tem havido ciclos de concentração e de desnacionalização das indústrias, principalmente daquelas indústrias muito lucrativas por causa do mercado cativo e dos altos investimentos feitos por vezes à custa de toda a sociedade, dando ocasião a lucros fantásticos para os compradores, sem maiores investimentos deles. Gerações de latino-americanos já assistiram à concentração e à desnacionalização de indústrias de toda sorte, cujos novos donos consomem-nas e ao final as devolvem aos Estados da América Latina, ou a empresários nacionais com a ajuda desses Estados, a fim de reequipá-las com enormes sacrifícios sociais, para em futuro não muito longínquo vendê-las outra vez no mercado internacional, por força de algum liberalismo obrigatório.

Gerações e gerações de latino-americanos ouviram de seus antepassados e viveram os efeitos da palavra "crise", que é constante na vida de cada um, do nascimento à morte. Dívidas e "dívida externa", quem não ouviu falar delas? O pagamento da "dívida externa" converteu-se numa das principais razões de existir das sociedades luso-hispânicas, e também de suas populações trabalhadoras, que em geral arcam com ela. De fato, sempre há algo incomodando permanentemente a grande maioria dos habitantes da América Latina. Há um eterno incômodo para eles. 

Para o aumento da "dívida externa" da América Latina tem concorrido, dentre outros motivos, o caro pagamento de direitos de uso de licenças e de patentes, que pouco ou nada transferem de tecnologia. Em inúmeras ocasiões, o pagamento de direitos de uso tem-se referido a produtos desnecessários ou sem utilidade. A inclusão da classe média e da classe trabalhadora latino-americanas no mercado dos grandes países capitalistas criou um mercado de consumo na América Latina, porém um mercado consumidor caracterizado pela falta de atendimento às necessidades fundamentais de cada país e da enorme maioria da população consumidora ou não (cf. Donghi, 1972, HCAL, p. 357).

Não existe qualquer gesto novidadeiro em dizer que o latifúndio conserva-se gordo e risonho, em grande parte de baixa produtividade, servindo usualmente para garantir empréstimos etc. As plantações destinadas à exportação ocupam as terras mais férteis e recebem maior atenção e recursos do que as demais. Por seu lado, o minifúndio viceja sem cooperação, repetindo os procedimentos e as obras permitidos pela miséria, não tendo acesso aos vínculos da solidariedade e da inovação técnica. Não é por acaso que na América Latina os regimes de trabalho, permanentes ou temporários, multiplicam-se, incluindo assalariados, semi-assalariados, colonos, escravos, semi-escravos e maneiras diversas de trabalho em família e de auxílio mútuo.

O enorme avanço da urbanização e o crescimento descomunal das capitais e das cidades médias nos países latino-americanos têm retratado migrações internas e êxodo rural, no interior de cada sociedade, causados pela fuga em massa da miséria humana e da catástrofe natural. No entanto, afirmar isso não significa explicar demasiadamente. Verifica-se o trabalho na zona rural, mas quase sempre revestido da prática urbana e da massificação cultural. Até que ponto é possível sustentar a existência em nossos dias de ampla cultura rural, quando tudo parece ser padronizado pela massificação?

As casas velhas, os edifícios velhos, os casebres coletivos abrigaram e abrigam os migrantes rurais, que depois vão se fixar nas favelas. Normalmente, as favelas não constituem a passagem dos migrantes do campo para a cidade, mas sim o local de habitação dos pobres urbanos e daqueles que empobreceram nas cidades e não no campo. As favelas aumentam porque a miséria dos homens tem aumentado nas próprias cidades (Rouquié, 1991, cf. 22-224, 66, 104, 107-108, 116, 119, 123, 154-156, 158, 161-163, 182, 184-186, 190, 192-193).

Alain Rouqué explica as consequências da "extrema miséria":


"Os "miseráveis humildes" amedrontam mais do que ameaçam a ordem estabelecida. Fora das explosões de violência esporádica, a calma reina nas favelas. A revolta só aparece raramente como uma estratégia de sobrevivência. A delinquência é o substituto mais frequente da revolução.  Os marginais, se estão mal integrados ao mundo urbano, são, o mais das vezes, recuperados pela ordem estabelecida" (idem, 310). 

Não só o avanço e a ampliação descomunal das capitais e das cidades médias nos países latino-americanos têm posto medo aos sobreviventes à penúria mais indigna. O crescimento demográfico da América Latina tem inundado principalmente a Europa ocidental e a América do Norte de pelo menos três tipos de emigrantes luso-hispânicos: os endinheirados recentes ou de muito tempo, que vão desfrutar da riqueza, longe de seu país de origem, onde a conseguiram de algum modo;  os jovens desempregados, qualificados ou totalmente desqualificados, atraídos por uma vida melhor (às vezes, a qualquer preço) na Europa ocidental, na América do Norte, de modo particular nos Estados Unidos, e em outros continentes; os que buscam "educação", quadros mentais junto com o bom ou mau aprendizado de outras línguas, na esperança de mudarem de país, ou de dizerem que mudaram, de se empregarem em empresas multinacionais ou de estarem perto delas, com experiência internacional.

Nem a denominação "latina", acrescentada à América, deveu-se aos habitantes desses países, pois foi um apelido impingido pelos franceses do império de Napoleão III, procurando alargar neles a influência da França, em contraposição à dos Estados Unidos, da Espanha e de Portugal. Em que tenham pesado a colonização francesa no Haiti e em uma parte do Canadá, a portuguesa no Brasil e a espanhola nas Antilhas, na América Central e do Sul, a chamada América Latina compôs-se indiscutivelmente, e de forma substancial, de índios e ainda de negros, de mulatos etc. Portanto, a "América Latina" não está perto de ser latina e sim, ao que parece, cada vez mais longe. 
Porém, não é possível desprezar o alerta dado por um jornal, de 01 de junho de 1903, uma segunda-feira, que admitia tal "latinidade":
 A América do Sul tem de refletir na gravidade do perigo, que começa a correr, de se converter num território de colonização. A política expansionista tem sido seguida por força da opinião pública. É esta que, aos poucos, tem imposto nos governos das grandes potências a anexação de terras da África e da Ásia,oara assegurar os mercados necessários à indíustria colossal da Europa e dos Estados Unidos. Começa-se a dizer que é preciso fazer isto ou aquilo; depois avoluma-se, torna-se dominante essa opinião, e acaba-se por lhe dar execução. É o que invariavelmente vimos na partilha da Árica, na da China e na guerra hispano-americana. As nações latinas da América, que todos os dias são apontadas como objeto das ambições das grandes potências militares, precisam convencer-se de que realmente o são, embora não o sejam" (O Estado de S. Paulo, 01/6/03, p. C-2).

6. O que comumente não se pode negar sobre a América Latina


A América Latina está marcada muito mais pela diversidade do que pela homogeneidade, embora a variedade não seja rara na vida passada, presente e futura da humanidade. Também na América Latina, é verdade, grande parte da população traz a herança do índio e igualmente no negro, a qual não convergiu e não converge para o legado das colonizações espanhola e portuguesa. O  índio e o negro, a duras penas, permaneceram nas sociedades latino-americanas com maior ou menor peso, dependendo da região. Índio e negro não foram liquidados totalmente e desenvolveram-se dentro do que foi possível (cf. Valdés, 2000, p. 7, 9).

Por outro lado, o índio foi condenado por ser índio, o negro por ser negro, e em certo sentido continuam sendo condenados por essa mesma situação, mesmo sem terem sido responsáveis pela criação do racismo. Mesmo no sentido mais vulgar da palavra "democracia", houve ou há condições democráticas de vida para índios e negros nos exíguos períodos de tolerância política na América Latina? Juntamente com índios e negros, inúmeros grupos de outras origens socioculturais, que formam a maioria deles, do mesmo modo não usufruíram e não usufruem da democracia naqueles períodos. Tudo isso permite concluir que os breves intervalos da denominada democracia latino-americana estão a serviço de grupos sociais ou de classes sociais, dominantes e interessados em manter uma democracia não essencialmente democrática

A exploração material e mental, a dominação secular, a falta de meios generalizados para tal população, dentre outros elementos, configuram nítida presença de classes sociais, bem definidas, e também o exercício duradouro da política da classe dominante no poder social e político da América Latina, cuja primeira face é a discriminação de todo tipo (cf. Bonfil Batalla, 1993, p. 55-56, 61, 63).



7. A política social possível e impossível



Escrevi no ensaio "Estado e política social na década de 90" que nos anos de 1990 assistiu-se no mundo, sobretudo entre os latino-americanos, à instalação de um estado de direito que poderia ser chamado de estado de direito democrático, típica configuração de democracia liberal. 

Na América Latina acontece a quase predominância do estado de direito democrático. O que quer dizer que está ocorrendo, no campo jurídico-político, a prevalência da democracia formal

Estados de direito democrático, ou se quiser, essas democracias formais, estão instalados em sociedades muito pouco democráticas. Tal situação constitui sério risco, pois o que garante os estados de direito são as sociedades democráticas. Atualmente, essas sociedades pouco democráticas, ou até mesmo pouco mobilizadas em prol de questões democráticas, possuem estados de direito democrático.  

Edificam-se estados de direito democrático em sociedades limitadas em suas manifestações e interesses, com forte presença autoritária, na prática política e na própria cultura. 

São sociedades que passam por sérias transformações econômicas, que as levaram, nas últimas décadas, a nenhuma política social ou a uma política econômica com política social direcionada a cuidar momentaneamente de indigentes, de maneira focalizada, dispersa e seletiva. Aparecem programas e diretrizes, relacionados com a política social; tais programas e diretrizes em si revelam somente pretensões de uma política social. Quase sempre não se concretizam, apenas se transformam em programas e diretrizes para serem exibidos à sociedade, sem intervenção nela, porque não têm função de intervir

Então, no quadro latino-americano, essas transformações econômicas, relacionadas com políticas econômicas, em geral carecem de políticas sociais, embora ocorram na vigência do estado de direito. Porém, ele não mobiliza a sociedade em função de serviços sociais e nenhuma democracia sustenta-se por muito tempo, sem o mínimo de democratização da sociedade.

Esse quadro histórico, muito breve, visa a mostrar o seguinte: primeiro, não existe "neoliberalismo puro", no sentido de que foi aplicado em certo lugar; segundo, aquilo que se aplicou na América do Sul, na América luso-hispânica, não é o neoliberalismo e sim um conjunto de diretrizes elaboradas por organismos internacionais ou nacionais. Na realidade, aqui se apresentou aquilo que foi denominado de "neoliberalismo tardio", porque só veio para cá quando estava terminando e em descrédito.


Eric Hobsbawm, em Era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991, disse que de 1970 em diante, mais especificamente de 1973 a 1935, iniciou-se o que ele chamou de "décadas de crise". Elas têm representado nesses últimos trinta e poucos anos a depressão cíclica, com queda significativa na economia dos países altamente capitalizados. Durante os anos 1973-1975, países que vinham elevando seu PIB em torno de 10%, 12% e 13% ao ano, como o Japão, a Alemanha Federal, e de 8% no Brasil, principalmente os países centrais, sofreram depressões. A produção industrial nos países desenvolvidos, entre 1973 e 1975, perdeu 10% ao ano. Portanto, nos países chamados ricos, houve diminuição de crescimento, atingindo no máximo 2,5% a 3% ao ano.

Os países da África, da Ásia Ocidental, a Índia, o Paquistão e os países da América do Sul cessaram o crescimento do PIB, simplesmente empobreceram, não chegaram a crescer nos anos de 1980. 

Nos anos de 1980, foi necessário criar gradação de pobres. Os extremos de riqueza e de pobreza distanciaram-se de tal maneira que surgiram o pobre, o subpobre, o quase pobre, o em vias de ser pobre, o mais ou menos pobre, o que tem traços de pobre, em múltiplos níveis de escala. De outro lado, proliferaram o rico esfuziante, o rico comedido, o rico mais ou menos rico, o rico que tinha dinheiro no exterior, o rico que não tinha dinheiro só no Exterior, enfim o rico entusiasta do trabalho para os outros. Celebrou-se a palavra "excluído", embora ninguém estivesse excluído da sociedade. Afinal, os extremos alargaram-se, impondo várias categorias de pobre e de rico.

A questão principal é a seguinte: as operações mundiais do capitalismo tornaram-se incontroláveis. Discutiu-se se o capitalismo funciona bem ou não bem, se ele pode ter cara humana ou se não pode ter cara humana, mas essa não é a questão. A questão real é que as operações mundiais transformaram-se em operações incontroláveis; não se encontraram meios de controlar operações mundiais, pela maioria dos governos. Aqui não se está dizendo que todos os governos não encontraram meios de controlar operações mundiais e sim que a maioria dos governos não encontrou. O capital modificou-se a partir dos anos de 1970. Emergiu nova forma de acumulação do capital

A questão não versa apenas sobre a revolução tecnológica, não versa apenas sobre a revolução organizacional, não versa apenas sobre a forma de pensar a pós-modernidade. Nova forma de acumulação do capital internacional se impôs: o capital investido na produção industrial transferiu-se aos poucos para o capital aventureiro, principalmente jogado em bolsas de valores, de sorte que nas operações mundiais predominaram as operações financeiras. 

Certos Estados perderam o controle das operações mundiais. O Estado nacional não desapareceu. Desapareceram alguns setores na maioria dos Estados nacionais, porém determinadas funções específicas mantiveram-se, como as capacidades de reprimir a oposição, de desmobilizá-la, de intervir na economia e cobrar impostos e taxas.

O sistema produtivo estendeu-se e abrangeu vários países, provocando uma grande consequência: o desemprego. O que desapareceu não foi o trabalho, nem o trabalhador; o que desapareceu foram os postos de trabalho, os empregos. 

A descontinuidade do sistema produtivo ocasionou excesso empregos, motivando crescimento de desemprego por supressão de postos de trabalho.

Durante o século XX, vários Estados criaram o Estado de bem-estar social, fundado no keynesianismo; criaram serviços integrados de saúde, educação, habitação, previdência. Países periféricos como os da América Latina começaram a ter serviços sociais setorizados, fragmentados, emergenciais. Esses Estados-nações distribuíram renda ao longo do século XX, seja por meio do Estado de bem-estar social, Welfare State,   com a economia keynesiana, seja pela intervenção estatal setorizada, fragmentada, emergencial. Ora, tais Estados são levados, em razão da crise orçamentária, a desmontar ou substituir esses serviços, por sofrer pressão real do orçamento e por pressão ideológica dos defensores do livre mercado (cf. Donghi, HCAL, p. 435, 440).

Dá-se a mercantilização, a transformação dos serviços sociais que eram direitos sociais e representavam e asseguravam as mínimas condições de vida para as pessoas. Tais direitos transformaram-se em mercadorias, em serviços vendidos no mercado. A política social do neoliberalismo atende aos indigentes, ou seja, aqueles que não têm meios de gerar a mínima renda. Mas isso não é política social, porque ela não quer dizer um serviço de distribuição de sopa, de distribuição de leite.

O capitalismo sempre procurou internacionalizar-se. No momento, a "globalização" tem sugerido universalização das atividades econômicas, políticas e culturais. Ela alude à inserção econômica, social, política e cultural dos países no mercado internacional, nas trocas econômicas, políticas, sociais e culturais existentes no mundo.

A "globalização" introduziu-se no Brasil e em outros países de maneira insidiosa, pois ela é que poria a América Latina no "Primeiro Mundo", altamente capitalizado. E países como o Brasil e outros da América Latina estão sempre procurando ser contemporâneos do seu tempo, preocupam-se em banir a sensação de retardamento.

De tempo em tempo, sucede a febre de modernização: todos os países latino-americanos têm de ser iguais aos Estados Unidos da América e à Europa ocidental, têm de ser contemporâneos da trajetória deles. Afinal de contas, os latino-americanos têm de ser modernos como os norte-americanos e europeus ocidentais.

Mas dentro de países da América do Sul e da América Central, por sinal do mesmo modo que em outros, descobrem-se o "Primeiro Mundo", o "Segundo Mundo", o "Terceiro Mundo", o "Quarto Mundo", o "Quinto Mundo" etc. 

O "Primeiro Mundo" não está la fora, está dentro dessas sociedades, só que, em decorrência da desigualdade social presente nelas e da incapacidade de superar a política oligárquica extremamente fechada e dependente, incompetente para a maioria da população, sobrevém a necessidade de modernizar-se idealisticamente. A "globalização" é mais uma dessas "modernizações necessárias". 

As sociedades latino-americanas, e suas economias, não estão e nunca estiveram alheias ao capitalismo internacional. O que se tem denominado de "globalização", como inserção nas relações mundiais, não ocorre da mesma forma e no mesmo grau para todos os países. A "globalização" não foi e não é igual para todos; ela teve e tem graus e, por ter graus e ocorrer em situações essencialmente diferentes, exigiu e exige a proteção dos países que não têm a mesma capacidade de competição econômica, política e social com países hegemônicos.

A "globalização" é competição desigual e inserção de concorrentes heterogêneos na economia, na política e na cultura mundiais. Entretanto, esses aspectos da "globalização não se apresentam, e sim a suspensão das barreiras nacionais muito desenvolvido pregam o livre-comércio para os outros, mas não para eles. 

Essa atitude dos países de capitalismo muito desenvolvido nunca foi nova.  Os grandes defensores da exclusão das barreiras protecionistas, conforme sucede na América Latina, não seguiram e não seguem essa orientação. Os países mais radicalmente liberais, os grandes arautos e patrocinadores do livre-comércio, têm assumido posições muito pragmáticas e têm desconfiado do mundo externo; eles próprios não executam o que eles pregaram e pregam. 

O "mundo globalizado" resume-se na metamorfose do mundo em mercado interno, controlado pelas empresas transnacionais. Faz-se do mundo mero de bens e capitais, sob o signo de suposta procura de "qualidade total", a qual redunda, por exemplo, em serviços prestados a alto custo, como os telefônicos, em que o usuário se cansa de ouvir "este número não existe" ou "telefone temporariamente fora de serviço". Ao fim e ao cabo, a relação entre capital e trabalho é que é global. 

O "mundo globalizado" institui o "grande mundo como nunca existiu", o "grande mundo sem fronteiras e limites", o "grande mundo das maravilhas do dinheiro e do êxito", o "grande mundo das megafusões de empresas, bancos etc.", disfarçando a real imoralidade, a corrupção, o enriquecimento ilícito, as fraudes nacionais e internacionais, a malevolência, a promiscuidade gloriosa, a resignação social, evidenciando, finalmente, uma época do capital bandido e da concupiscência como valores universais. Privatizam-se a fabricação de produtos e a prestação de serviços de qualquer espécie, com o propósito de aumentar-lhes os preços e expandir aquele capital (cf. Pla, 1995-1996, p. 28-30).

Além do mais, os governos latino-americanos saídos da ditadura nos anos de 1980, ditadura militar ou não, herdaram uma dívida externa impagável, no débito principal ou nos juros. Seus militares apenas se afastaram do governo, embora tenham continuado no poder e no velho estilo, particularmente em momentos de crescimento dos reclamos sociais, porque quase sempre mantêm o controle político-policial nos países da região. 

Na América Latina, o que se pode denominar de pós-ditadura dos anos de 1980, significa primordialmente desindustrialização, amplo desemprego, trabalho sazonal, trabalho informal, escassez de terras, êxodo rural, migração interna, emigração e sérias violações dos direitos humanos. A tentativa de pagar a dívida externa por parte dos países latino-americanos, devedores contumazes, exige o drástico corte das despesas públicas, a atração de capital estrangeiro mediante a retribuição de elevados juros, a queda da atividade econômica, o estímulo à produção de mercadorias a serem exportadas, subordinando demasiadamente o mercado interno ao mercado externo. 

É certo afirmar que a Igreja católica, desde o século XIX, veio atuando no campo dos registros civis, do ensino, da saúde e da assistência social, ao mesmo tempo em que concorreu bastante para a concepção dos Estados nacionais e dos sistemas políticos. Muitos padres têm patrocinado na América Latina a causa das Constituições e dos direitos da população. alain Rouquié reparou que nos países latino-americanos "a Igreja é amiúde a organização mais forte, a mais bem articulada" e que o cristianismo "é mais vigoroso que profundo, mais rico temporalmente que intenso espiritualmente" (idem, 197, cf. 203-206, 222, 237-238, 263, 268, 270-273, 276, 286-287, 300, 302-303, 315-316, 342). 

No entanto, toda essa longa exposição mostra que, invariavelmente, a política social configura-se impossível às condições de existência humana na América Latina. Tal política social, acima descrita, compõe aquilo que pode ser chamado de perseverança no atraso e na dependência econômica abjeta

A política social, possível aos latino-americanos, não pode causar dano à população, nem a amargurar e lhe roubar a vida.


8. A política social dos sem-nome e as formas cooperativas


Como já foi dito, mais do que a crítica da política social, é imprescindível fazer a crítica da crítica da política social.

Os anos posteriores a 1990 têm presenciado a confusão da política social com a política pública, e ainda a aplicação aos países latino-americanos de diretrizes e programas socioeconômicos gerados nas agências internacionais de financiamento, com a  enganosa designação de "neoliberalismo". No âmbito da política social, privatização, parceria do público  com privado, descentralização, renda mínima (ou ainda renda básica, renda de existência, renda social etc.), segundo cheque, auxílio-gás, bolsa-escola, bolsa-alimentação, bolsa-família e outras medidas, como programa de erradicação do trabalho infantil, programa agente jovem, passaram a representar o que há de mais atualizado no combate à desigualdade. 

Tomando como ponto de partida velhas teorias da administração de empresa (como a "administração por objetivos"), que se servem deturpadamente do tipo ideal de burocracia elaborado por Max Weber (a ponto de indicar o tipo ideal de "burocracia legal" como "burocracia weberiana") e aviltam o contrato de trabalho ao dar preferência ao contrato de prestação de serviço (de modo particular nas organizações não-governamentais - ONGs), tudo tem sido feito para converter o custo/benefício e o mercado em principais pilares da política social. Aí a autonomeada "administração por objetivos" tem o sentido de realização de ações, sem repetições, orientadas a certas metas. Contudo, essas metas não passam na verdade do mínimo tempo para a máxima produtividade. 

Por meio da renda mínima, por exemplo, reconhece-se tacitamente que seus beneficiários poderão ficar fora do mercado de trabalho, por muito tempo ou permanentemente. Além disso, reconhece-se do mesmo modo a escandalosa separação entre os trabalhadores com emprego fixo, de um lado, e os desempregados e subempregados, de outro lado (cf. Kameyama, 2001, p. 13-14, 18-21, 23-24, 26, 28, 34). 

Dentro do modismo (suspiro dolorido do capitalismo) "neoliberal", os pobres, e claro a pobreza, acham-se nessa condição porque estão fora do mercado, não sendo mediados por direitos.  

A miséria humana na atualidade, conforme a ortodoxia "neoliberal", não constitui violação de direitos, insensatez de alguns ou cruel dominação, mas sim falta de aptidão pessoal, desventura ou "exclusão" do mercado.

As soluções apontadas nesta época da América Latina implicam desde o subsídio fiscal às empresas envolvidas no combate à desigualdade, desde a transferência de competências do governo federal para estados e municípios (mesmo sem ter sido implantada neles uma história da descentralização), desde programas de renda mínima, até a proliferação das conhecidas entidades privadas "não-lucrativas", das ONGs, das fundações ou institutos normalmente pessoas jurídicas de direito privado, das organizações da sociedade civil de interesse público - OSCIPs, tudo incorporado sob o nome de "terceiro setor"

O intitulado "terceiro setor" alimenta-se da opinião, mais ou menos notória, da necessidade de aprimorar a gestão da política social. Nele se buscam resultados, participação, eficiência, eficácia nos programas sociais, por intermédio da atuação conjunta do Estado e de "setores" da sociedade. Com o "terceiro setor", retomam-se as antigas práticas da filantropia e do voluntariado, agora com trajes empresariais, decretando um novo mundo, livre de antagonismos e de conflitos entre classes sociais, mesmo com a injustiça, a desigualdade e a miséria que nos olham.

As empresas privadas, as corporações estrangeiras, os veículos de comunicação, as companhias de propaganda utilizam-se do "marketing social" para inculcar suas marcas comerciais na mente de grande parte da população (em geral desconhecedora de seus fins), dos políticos e governantes. Com isso, divulgam a dita vocação das empresas e a responsabilidade social dos empresários, dedicando-se elas próprias, e muitas vezes seus empregados, "voluntariamente", aos programas sociais mais variados (destinados à criança, ao adolescente, ao idoso, aos desempregados e desempregadas, aos toxicômanos, aos portadores de doenças endêmicas, aos presidiários e presidiárias, às prostitutas, à educação, à cultura, à arte, ao lazer, ao meio ambiente, à proteção ao patrimônio urbanístico e arquitetônico etc.), com recursos provindos do Tesouro Nacional (que se alimenta de impostos, taxas etc., cobrados da população), por meio dos incentivos fiscais.


O que na atualidade tem sido chamado de políticas sociais ( e comumente de políticas públicas) resume-se quase sempre em programas tópicos, dirigidos a determinados focos, descontínuos, fragmentados, incompletos e seletivos, com atuação dispersa, sem planejamento, esbanjando esforços e recursos oferecidos pelo Estado, sem controle da sociedade. 

Jazem distantes aquelas políticas sociais inauguradas pelos surtos nacionalistas, melhor dizendo, pelos arremedos de projetos nacionalistas posteriores a 1930. Ao nacionalizarem algumas atividades econômicas, governos da América Latina encarregaram-se igualmente dos serviços da educação, da saúde pública, da habitação popular, da previdência e da assistência social. As políticas sociais, derivadas de políticas econômicas de cunho nacionalista, tiveram a finalidade inicial de mobilizar controladamente as sociedades latino-americanas e acabaram convertendo-se, antes de tudo, só em políticas de controle dessas sociedades. 

Nos dias correntes, recomenda-se a estabilidade da moeda com a finalidade de evitar o crescimento da inflação. As reformas constitucionais são feitas preponderantemente nos artigos que aludem à matéria econômica e à administração estatal. O desperdício de recursos na efetivação dos programas sociais aparece como o principal responsável pelo desemprego e pela degradação das sociedades na América Latina. A estabilidade da moeda torna-se elemento mágico do crescimento econômico e da diminuição do desemprego

Como nota Laura Tavares Ribeiro Soares (1999):
Os direitos sociais e a obrigação da sociedade de garanti-los por meio da ação estatal, bem como a universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais, são abolidos no ideário neoliberal. As estratégias para reduzir a ação estatal no terreno do bem-estar social são o corte do gasto social, eliminando programas  e reduzindo benefícios; a focalização do gasto, ou seja, sua canalização para os chamados grupos indigentes, os quais devem "comprovar" sua pobreza; a privatização da produção de serviços; e a descentralização dos serviços públicos no "nível local" (idem, 44).
E acrescenta a autora: "Em tese não se pode objetar ao fato de que se canalizem recursos para os mais pobres. No entanto, quando na prática essa política implica numa mercantilização dos benefícios sociais, numa capitalização do setor privado, e provoca deterioração e desfinanciamento das instituições públicas, passa a ter outro significado" (idem, 47). 

Não vão nisso tudo algum fatalismo fácil e inevitável injustiça social no mundo latino-americano. É secular a justificativa da necessidade de condições favoráveis à diminuição das desigualdades e à maior participação na renda dos países, pela grande maioria da população. Comprovar estatisticamente que em 1970 a distância na renda entre ricos e pobres era de 363 a 1, ou que essa distância dos anos de 1970 a 1980 passou de 237 a 1, ou ainda qu tal distância elevou-se para 417 a 1, de 1980 a 1995, aponta, mas não revela muito sobre a essência da riqueza e da pobreza na América Latina. Também não avança significativamente fazer simulações econométricas da pobreza na região, porque quase sempre elas mais escondem que trazem aos nossos olhos a essência histórica dela. 

A riqueza e a pobreza têm nomes. Elas não expressam abstração pura e simples, entidades idealizadas, distintas apenas na mente e na linguagem. Entre os pobres, as pessoas nascem, porém inexistem socialmente, não por causa da exclusão e sim porque se originam do lado de cá da apropriação dos bens sociais. Por isso, em vez de a política social dos "sem-nomes", a política social deve ser a dos "com-nomes", pois riqueza e pobreza possuem não somente nomes como raízes históricas diversas. 

A política social dos "sem-nomes" opera de modo descontínuo, fragmentada, incompleta e seletiva, assentada na focalização. De sua parte, a política social dos "com-nomes" encontra outro solo onde germina algo superior à riqueza. 

Esse solo se acha nas formas cooperativas, tão antigas e tão novas, com as quais a enorme maioria das populações organiza-se para sobreviver em sociedades em sociedades onde convivem a pobreza e a ostentação, a fome e a abastança, a tosca tecnologia e a alta tecnologia.  Ante o Estado representativo do poder centralizado de poucos sobre as aspirações de muitos, a cooperação constitui o mais bem-sucedido meio humano de avançar sobre barreiras e desigualdades. 

Na vida social, geram-se normas e costumes, mutáveis de acordo com os grupos, os quais terminam na cooperação, apoiada na igualdade e na reciprocidade, na unidade entre um e outro ser humano, visando a todos. Só a cooperação e a sociabilidade são capazes de inutilizar a burocracia de qualquer natureza, seja do Estado, seja das demais instituições.

A história da vida cooperativa de muitos só é percebida mais adiante na história de poucos. 


(Cf. VIEIRA, Evaldo. Os Direitos e a Política Social, 2009,2020, capl 2)