domingo, 8 de maio de 2016

DIREITOS SOCIAIS Evaldo Vieira - ed. 2009, 2016



"A paz, a união, a igualdade são inimigas das sutilezas políticas. 
Os homens corretos e simples são difíceis de enganar, devido à sua simplicidade."
JEAN-JACQUES ROUSSEAU


A arte de enriquecer, no sentido corrente, não consiste somente em juntarmos muito dinheiro para nós, mas também em nos esforçarmos para que o nosso próximo tenha menos que nós. Falando claro é a arte de estabelecer a nosso favor a máxima desigualdade
JOHN RUSKIN






INCERTO CONSENSO GERAL



Mais do que a crítica da política social, é imprescindível fazer a crítica da crítica da política social.

Tal acontece, por exemplo, com a separação entre direitos sociais subordinados ao Estado e direitos sociais subordinados à sociedade, comumente apresentada em vários escritos. Distinguem-se os autores "estatistas" e os autores "não estatistas", propondo que os primeiros derivam da ação estatal os direitos sociais, enquanto os segundos os fazem provir dos movimentos sociais. 

Essa diferença entre "estatistas" e "não estatistas" tem corrido o mundo, com foros de verdade, enchendo páginas e páginas de artigos e de revistas, alimentando discussões, às vezes estéreis. Esquecem que o humano põe-se como total e que seu desenvolvimento somente pode realizar-se em toda a sua grandeza. 

Neste sentido, Karl Marx, em Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel mostrou que "o homem é o mundo do homem: Estado, sociedade" (Marx, 1968, p.9). Em outro passo, na mesma direção, em Carta a Paul Annenkov", Marx explicou: "Qualquer que seja a sua forma, o que é a sociedade ?  O produto da ação recíproca dos homens. São os homens livres de escolher esta ou aquela forma de sociedade? De modo nenhum. [(...)] Suponhamos uma dada sociedade civil e teremos um dado Estado político que é apenas a expressão oficial da sociedade civil" (Marx, 1971, p. 189). 

Inexiste, portanto, tal dicotomia entre os direitos sociais nascidos da sociedade e os direitos sociais originados do Estado, conquanto nada impeça apenas de se dar maior realce a um ou a outro. Mas esta fragmentação do humano ou este esquartejamento da totalidade do real não resultam do desconhecimento, da imperícia ou da ingenuidade dos chamados "bons pensadores". Eles resultam sobretudo de um tipo de pensamento nutrido pelos "bons pensadores" e pelos "maus pensadores", que abraçam a filosofia do meio humano, ou do humano pela metade, ou ainda do humano em partes. E tal filosofia, da qual faz parte a distinção entre os adeptos do Estado, de um lado, e os adeptos dos movimentos sociais, de outro lado, está em curso. 

Em outras palavras, a filosofia que patrocina a diferença entre direitos sociais, subordinados ao Estado e direitos sociais subordinados à sociedade busca a sua realização e, por ela, vai sendo superada. Como lembrou Karl Marx, em Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel, "numa palavra, não podeis superar a filosofia sem realizá-la" (Marx, 1968, p. 26). 

Um tanto distinto, mas não tão distinto a ponto de não se relacionar com o que acima foi dito, é a questão de saber, por exemplo, se as políticas sociais envolvem direitos ou não envolvem direitos. Essa questão ultrapassa as simples definições de política social. 

Muitos se têm dedicado à nem sempre fácil tarefa de esclarecer a essência das políticas sociais. Essas políticas têm sido ligadas ao funcionamento do mercado, à capacidade de compensar as falhas deste, à ação e aos projetos dos governos, aos problemas sociais, à reprodução das relações sociais, à transformação dos trabalhadores não assalariados em trabalhadores assalariados, ao abrandamento dos conflitos de classe etc. Políticas sociais meramente descritivas ou não, seu estudo implica muito esforço e enormes embaraços, até para quem não pretenda estrita definição do conceito.

Porém, a questão de saber se as políticas sociais contêm direitos e elementos de justiça, ou não contêm nenhum deles, excede os limites das suas definições. 

Afinal, abandonada a totalidade do humano, desvinculados o singular, o particular e o universal, tanto os direitos quanto os elementos de justiça se equivalem, se tornam relativos. Não  há direito e justiça superiores, porque possuem os mesmos valores.   

Wanderley Guilherme dos Santos, em seu artigo "A trágica condição da política social", disse que o "problema da política social transforma-se no desafio de encontrar um princípio de justiça, coerente e consistente, que seja superior a qualquer outro". Depois acrescentou: "Enfim, sabe-se em demasia que qualquer princípio de justiça -- quer deduzido axiomaticamente, quer induzido --, quando aplicado consistentemente, viola a si próprio ou a outro princípio igualmente aceito como indispensável". E terminou o raciocínio: a "conclusão final será a de que a realização do valor justiça social não pode ser garantida por nenhum critério automático e que, qualquer que seja a opção ideológica (chamemo-la assim) da qual se parta, quer a da maximização da acumulação, quer a da maximização da equidade, o que se obtém, em qualquer caso, é a modificação relativa do perfil de desigualdades existentes" (Santos, 1987, p. 38,39). 

Ao contrário, apesar de as necessidades humanas expandirem-se e reproduzirem-se até infinitamente, existem direitos e elementos de justiça superiores a outros. Assim também, não obstante "critério automático" e "opção ideológica" não assegurem "a realização do valor justiça social", muitos direitos e muitos elementos de justiça podem concretizar-se sem critério automático e com opção ideológica. O fato de direitos e elementos de justiça, ao serem exercitados, agredirem a sim e aos outros, não lhes dá igual tamanho e igual relevância. As desigualdades humanas mudam de perfil e tais mudanças não se assentam apenas na antinomia entre acumulação e equidade. As desigualdades humanas, aliás como o "valor justiça social", passam por alterações singulares, particulares e universais, que não se excluem única e necessariamente. Portanto, essas desigualdades não se reduzem a relatividades na transformação de suas essências. 

No exame das políticas sociais, não há somente os que consideram relativos os direitos e os elementos de justiça social. Há também os que universalizam-nos inteiramente. Modelo disto se acha na obra de Norberto Bobbio, A era dos direitos, que ali sustentou: 

"[...] pode-se dizer que o problema do fundamento dos direitos humanos teve sua solução atual na Declaração Universal dos Direitos do Homem aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e portanto reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade (Bobbio, 1992, p.26). [...]  Trata-se, certamente, de um fundamento histórico e, -- como tal, não absoluto: mas esse fundamento histórico do consenso é o único que pode ser factualmente comprovado" (1992, p. 27).

E, ainda, em outra passagem do livro: "A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre" (1992, p. 34).

Está claro que Norberto Bobbio não desejou tornar absolutos os "Direitos do Homem", aliás isto esta dito acima, mas ele os universalizou por meio do "fundamento histórico do consenso", "é o único que pode ser factualmente comprovado".  Porém, Bobbio não deixou de perceber diferenças entre indivíduos e entre grupos de indivíduos quanto aos direitos políticos (votar, por exemplo) e aos direitos sociais  --  ao trabalho (idade e sexo), à instrução (crianças normais ou não) e à saúde (adultos e velhos)  --,  apesar de distinções não se mostrarem no âmbito das liberdades negativas (a tortura é proibida).

Bobbio empenhou-se em evitar o caráter absoluto dos "Direitos do Homem" e não foram poucas e recentes as menções a esta preocupação. Já em aula ministrada em 4 de maio de 1951, Bobbio sustentou "algumas teses", das quais não mais se afastou, segundo disse. Tais "teses" eram: 1) "os direitos naturais são direitos históricos"; 2) "nascem no início da era moderna, juntamento com a concepção individualista da sociedade"; 3) "tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico" (1992, p. 2). Para ele, 

"a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos" (1992, p. 5,6).

E acrescenta: "[...] os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. [...] Embora as exigências de direitos possam estar dispostas cronologicamente em diversas fases ou gerações, suas espécies são sempre -- com relação aos poderes constituídos -- apenas duas: ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios" (1992, p. 6). 

Segundo o pensamento de Norberto Bobbio, os direitos naturais são históricos, revelam progresso histórico, originam-se com o moderno individualismo filosófico e possuem universalidade, mas não possuem "fundamento absoluto", seus fundamentos consistem em determinados fatos. 

Por conseguinte, a essência histórica dos direitos naturais está nos fatos históricos em progressão, por meio de fases ou de gerações. Só tais fatos históricos comprovam o que ele chama de "fundamento histórico do consenso", que universaliza os "Direitos do Homem". 

Por outro lado, a universalização dos "Direitos do Homem" acontece de modo peculiar, se for aceito o raciocínio de Bobbio:

"Proclamar o direito dos indivíduos, não importa em que parte do mundo se encontrem (os direitos do homem são por si mesmos universais), de viver num mundo não poluído não significa mais do que expressar a aspiração a obter uma futura legislação que imponha limites ao uso de substâncias poluentes. Mas uma coisa é proclamar esse direito, outra é desfrutá-lo efetivamente" (1992, p. 9, 10). 

Essa ideia é repetida nas páginas de Bobbio: "Por isso, agora, não se trata tanto de buscar outras razões, ou mesmo (como querem os jusnaturalistas redivivos) a razão das razões, mas de pôr as condições para uma mais ampla e escrupulosa realização dos direitos proclamados" (1992, p. 23).  Em outra ocasião, reafirma ele: "[[...]] o problema  de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não era mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los" (1992, p.25). E depois:"Não preciso aduzir aqui que,  para protegê-los, não basta proclamá-los. [...] O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos" (1992, p. 37). 

A busca efetiva da proteção dos direitos proclamados condiz claramente com o postulado expresso por Norberto Bobbio na Introdução do livro A era dos direitos: " [...] o processo de democratização do sistema internacional, que é o caminho obrigatório para a busca do ideal de ´paz perpétua´, no sentido kantiano da expressão, não pode avançar sem uma gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado" [Bobbio, 1992, p. 1). 

Tal anseio é compartilhado igualmente por outros especialistas em direitos humanos. Veja-se o que pensou Antonio Truyol y Serra em 1968:

"Dentro de tal regime, os indivíduos deixam de ser exclusivamente súditos ou cidadãos cujos direitos e deveres são os que (com maior ou menor ou inclusive nenhuma participação sua) estabeleça seu respectivo Estado, para converter-se em homens sem mais, membros de uma comunidade jurídica universal com a qual estão diretamente conectados, dotados de direito e deveres vinculantes para os Estados" (1968, p. 9, 10). 

E, ademais, anotou Truyol  y  Serra que "a consciência clara e universal" desses direitos pertencia aos tempos modernos, porquanto os direitos fundamentais procediam da dignidade e do valor do ser humano, formavam um "direito superior" (higher law), correspondendo "a todos os membros da família humana direitos iguais e inalienáveis" (idem, 12-29-31). Da Declaração Universal dos Direitos do Homem, Truyol deduziu direitos determinantes da ação negativa do Estado e direitos determinantes da sua ação positiva. Dentre os da ação negativa do Estado estava a liberdade, enquanto os da ação positiva do Estado remetiam-se aos direitos processuais, aos direitos políticos e aos direitos sociais.

Ora, tal "processo de democratização do sistema internacional", como a "gradativa ampliação do reconhecimento e da proteção dos direitos do homem, acima de cada Estado", têm constituído realidades muito intranquilas, muito parciais e efêmeras, para os homens em geral e para as classes dirigentes em particular. Basta notar que mesmo Bobbio vincula "o problema dos direitos do homem" aos "dois problemas de nosso tempo, que são os problemas da guerra e da miséria"

Não representa exagero concluir que, diverso do que imaginou Norberto Bobbio, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, lamentavelmente, desde então, não tem gozado do "consenso geral" acerca da validade de um sistema de valores. E mais lamentavelmente ainda: o "fundamento histórico do consenso" tem sido menos "factualmente comprovado" do que o seu inverso.

Em entrevista publicada em El País, divulgada pela Folha de S. Paulo, em 14 de janeiro de 2000, Norberto Bobbio mostrou-se consciente de que a situação contemporânea trouxe poucos fatos capazes de dar fundamento histórico ao consenso geral sobre os direitos do homem, valendo-se uma vez mais do individualismo para garantir a universalidade desses direitos. 

Notou Bobbio:

"O final de nosso século[XX], em cuja primeira metade vivemos tanta violência, guerra e destruição, indica uma nova virada rumo à violência, depois do final da Guerra Fria, e não só em termos de conflitos internacionais. [...] Ao contrário dos comunitaristas, continuo adepto da interpretação individualista de acordo com a qual a democracia liberal se apoia na supremacia do indivíduo.  O único avanço real que observei ao longo deste século, o reconhecimento universal dos direitos humanos, se refere aos direitos do indivíduo. [...] Com a constituição dos tribunais de crimes de guerra, os direitos humanos foram reconhecidos pela primeira vez na história no sentido de jus causae, como direito à abertura de um processo para a proteção de um indivíduo, mas de modo completamente independente do Estado a que ele pertença. Portanto, esses direitos passaram pela primeira vez a ser considerados como de vigência universal, porque têm primazia inclusive sobre o Estado [Bobbio, apud Kallscheuer, 2000, p. 5-12]. 

Talvez seja o caso de reconhecer que, divergindo de Bobbio, é imprescindível fundamentar, proclamar e proteger os direitos do homem. 

Para limitar-se apenas às  violações dos direitos humanos, o século XX e as primeiras décadas do século XXI assistem a guerras com utilização aberta da informação e da imprensa de massa, de maneira espetacular, sem obedecer a qualquer princípio ligado à não-intervenção nos assuntos internos de um Estado. As resoluções são tomadas pelos Estados e o mundo ainda possui Estados, embora muitos deles não possam ser levados em conta, ou não possam ser considerados atuantes, ou até nem existam.

Os últimos anos do século XX comprovam uma realidade diferente do que se viu antes, uma realidade em que uma boa parte do mundo está excluída do sistema internacional. 

Constata-se a existência de direitos humanos, valores partilhados, convenções internacionais e coisas semelhantes. Ao mesmo tempo, os Estados ricos não têm perdido inteiramente sua capacidade distributiva de bens e de serviços socialmente relevantes.  Mas a maioria dos indivíduos não tem como agir sobre seu governo, uma pretensão cada vez mais remota e sem significado para eles. O controle social da administração pública vai ficando custoso demais; mais hoje, mais amanhã, poderá chegar a ser uma quimera

A verdade é  que se trocou a soberania do cidadão pela soberania do consumidor, a participação na política pela participação no mercado, porque eleições periódicas e partidos variados não geram automaticamente cidadania política, e a luta não se trava só entre populismo e tecnocracia. Com efeito, a luta não se trava unicamente entre populismo e tecnocracia, como auguram os bondosos donos da Terra, trava-se por muito mais do que imagina a vã filosofia.

As grandes ideologias finaram-se, mas as ideologias não faleceram. E o que é muito importante: os direitos humanos devem ser defendidos, porém quem morrerá para defendê-los! Se depender da aprovação da opinião pública, tem-se testemunhado que ela, até agora, não tolera mortos na defesa dos direitos humanos em todo o mundo. 

O Relatório Anual do Banco Mundial [Silva, 1990, p. B-6], em 1990, indicou a pobreza como tema central, comprovando que um bilhão de pessoas viviam abaixo da "linha de pobreza nos países em desenvolvimento", ou seja, sobreviviam "com menos de US$ 370,00 per capita por ano". O mesmo Relatório de 1990 confirmou desigualdade enorme no mundo: na região subsaariana da África a expectativa de vida era de 50 anos e no Japão ela era de 80 anos [1990, p. B-6]. 

No Informe Sobre o Emprego no Mundo 1998-1999 [Folha de S. Paulo, 24/09/1998, p. 2-6], da Organização Internacional do Trabalho [OIT], seu diretor-geral deu a conhecer que "a situação global do emprego é ruim e está ficando pior". Por este Informe, um bilhão, ou um terço da força de trabalho do mundo, não tinha trabalho ou estava em situação de subemprego.  Sucedeu, consoante o Informe, um aumento de dez milhões de pessoas sem emprego, desde meados de 1997 até 1999. 

Também em 1997, a Confederação Unitária de Trabalhadores de Honduras (CUTH) denunciou as montadoras neste país por pagarem salários de US$0,38 por hora, ao passo que nos Estados Unidos o pagamento para as mesmas funções era de US$9,27 por hora. Tal denúncia da CUTH veio em resposta a declarações de diretores da associação de montadoras, que ameaçavam abandonar Honduras por causa de denúncias sindicais de violações de direitos humanos [Folha de S. Paulo, 10/06/1997, p. 2-2].

Uma das faces mais ocultas da dita "globalização" localiza-se no aumento da distância entre ricos e pobres. Em 1960, os ricos ganhavam 30 vezes mais do que os pobres. Em 1994, os 20% mais ricos conseguiam renda 78 vezes superior à dos 20% mais pobres. O número de pessoas em todo o mundo vivendo com menos de US$ 1 (um dólar) por dia cresceu 20% no período compreendido entre 1995 e 2000, elevando-se de 1 bilhão para 1,2 bilhão, embora toda a população mundial tenha aumentado apenas 6,9% [Kaban, 2000, p. A-14 & Toledo, 1997, p. 12].

Aludindo a esses últimos números relativos à pobreza no mundo, a mesma da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, indignou-se: "Os países ricos têm um papel indispensável a desempenhar, pois podem abrir ainda mais seus mercados, perdoar parte ou toda a dívida externa dos países pobres e aperfeiçoar suas políticas de ajuda ao desenvolvimento". E perguntou Annan: "Em 15 anos, ainda haverá dezenas de milhões de crianças que não frequentam escolas? Regiões inteiras do mundo e grandes grupos de pessoas, até mesmo em sociedades ricas, ainda estarão condenados a viver à margem da economia global?" [Kaban, 2000, p. A-14). 

A antiga Iugoslávia constituiu caso típico da série de guerras nos anos de 1990, com milhões de vítimas, casas incendiadas, estupros, massacres de civis inocentes e a "limpeza étnica" em dimensão descomunal. Durante esta década, nas guerras em Vukovar (Croácia-1991) em Srebrenica (Bósnia-1995), em Racak (Kosovo-1999) desapareceram, nos Bálcãs inteiros, casas, famílias, comunidades. Quando se iniciou o massacre em Srebrenica, 75% de seus moradores eram muçulmanos; agora já não existem muçulmanos nessa cidade (Whitaker, 2000, p. A-23).

Na Espanha, as costas de Algeciras e Tarifa (Cádiz) foram cenário, num só dia, do maior desembarque de imigrantes sem documentos já acontecido no litoral espanhol, procedentes da África, de origem magrebe e subsaariana. Num período de oito horas, treze embarcações alcançaram essa região, com 445 imigrantes (332 magrebes e 113 subsaarianos), dentre os quais 44 mulheres (três gravidas) e dois menores de idade (um bebê de poucos meses e uma menina de 15 anos). Em dez meses do ano de 2000, 11.000 imigrantes atingiram as praias da Espanha, o dobro dos imigrantes de 1999 [El País, 04/10/2000, p. 13]. 

A tal de globalização, de mundialização, de reestruturação produtiva, de reengenharia empresarial, ou de pós-modernidade, anunciaram ao mundo algo no mínimo inusitado: não uma "boa-nova", mas uma "má nova", em invólucro dourado de boas-festas.

Como consta de um feliz título de jornal: "Negócio da China é salário mais baixo". Na República Popular da China, o trabalho de segunda-feira a sábado, das 7h30 às 22h00 (ao menos num terço do mês), em 1995, era retribuído a US 60,9 por mês, em média, o que quer dizer US 2,03 por dia. O salário era calculado conforme a produtividade e não conforme as horas trabalhadas. Simultaneamente, a matéria-prima correspondia a 65% do preço, enquanto a mão de obra participava apenas em 12% deste preço. 

A Coreia do Sul exibiu uma particularidade ainda mais perversa da globalização, da mundialização, da reestruturação produtiva, de reengenharia empresarial ou da pós-modernidade, cujo ovo da serpente está instalado na crise de acumulação do capital no mundo.

A partir do momento em que a Coreia do Sul pediu auxílio ao Fundo Monetário Internacional (FMI), em dezembro de 1997, milhares de empresas faliram e o número. Para não ir  de desempregados dobrou, ultrapassando 1,5 milhão de pessoas. Na Coreia do Sul, de janeiro a março de 1998, 2.288 pessoas suicidaram-se, em média 25 por dia, elevando a taxa de suicídio em 36% no período (O Globo, 23/04/1998, p. 30). 

Mais um exemplo: na região sul do Sudão, na África, a organização suíça Solidariedade Cristã Internacional, em dezembro de 1997 comprou 157 escravos, em duas aldeias, pelo preço equivalente a US$ 80 cada um. Esta instituição suíça tem adquirido escravos negros aprisionados por uma milícia islâmica vinculada ao governo  sudanês, para em seguida libertá-los. De 1995 ao começo de 1998, a Solidariedade Cristã Internacional já havia comprado 800 escravos no Sudão para lhes dar a liberdade (Folha de S. Paulo, 15/02/1998), p. 1-20).

Por fim, um último exemplo: em 11 de setembro de 2001, talvez se tenha iniciado verdadeiramente o século XXI, e até mesmo o terceiro milênio. Para não ir mais longe que o necessário, é preciso atentar às manchetes e às notícias dos dias seguintes a essa data. 

Na Folha de S. Paulo, de 12 de setembro de 2001, foram estampados títulos como: "EUA sofrem maior ataque da história", "Terroristas querem mostrar que os EUA são vulneráveis", registrando a seguir: "Torres do World Trade Center e parte do Pentágono são destruídas"; "Milhares de pessoas morrem em atentados de autoria desconhecida"; "Bolsas param, petróleo dispara e aumenta temor de recessão global". E depois:

"Aviões de carreira sequestrados por terroristas destruíram ontem o World Trade Center, em Nova York, e parte do Pentágono, nos arredores de Washington, no maior atentado de história. [...] O ataque que destruiu dois dos principais símbolos do poderio econômico e militar dos Estados Unidos foi o primeiro ao país desde Pearl Harbor, em 1941" (idem, A-1).

O discurso do presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, no mesmo dia 11 de setembro de 2001, revelou-se um dos mais importantes donos da Terra, e parece que ele não levou em conta os direitos, como, aliás, não levaram em conta os que causaram a referida destruição. Ameaçava o presidente George W. Bush:

[...] "Esses atos de assassinato em massa tiveram o objetivo de assustar nossa nação com o caos. Mas eles falharam. Nosso país é forte. Um extraordinário time de profissionais foi deslocado para defender uma nação extraordinária. [...] Hoje à noite eu pedi orações para aqueles que estão de luto, pelas crianças que tiveram o mundo delas destruído, por todos aqueles que tiveram o mundo delas destruído, por todos aqueles que tiveram seu senso de segurança ameaçado. E eu pedi que eles fossem confortados por um poder maior do que todos nós, de que fala o Salmo 23: "Mesmo se eu andar pelo vale das sombras da morte não sentirei medo, se o Senhor estiver comigo" (Folha de S. Paulo, 12/09/2001, p. A-7). 

O diário El País, em 13 de setembro de 2001, informou, em manchete, que "Os EUA buscam seus mortos e declaram guerra aos assassinos", noticiando ainda um discurso do presidente George W. Bush, do dia 12 de setembro de 2001: 

[...] "mais que um ato de terror. Foi uma ação de guerra". "Isto requer que nosso país permaneça unido em sua resolução. A liberdade e a democracia estão sendo atacadas. O que os americanos devem saber é que nós enfrentamos um inimigo diferente de todos os anteriores. Este inimigo se oculta nas sombras e despreza a vida humana. Este inimigo tenta esconder-se, mas não poderá ocultar-se sempre. Este inimigo crê que seus refúgios são seguros, mas não o serão sempre. Este inimigo atacou não só nosso povo, mas todos os povos amantes da liberdade. (...) Seremos pacientes; esta batalha nos custará tempo e determinação, porém que ninguém se equivoque: venceremos. Este será um monumental combate do bem contra o mal, e o bem prevalecerá" (idem, p.1-2). 

Apesar disso tudo, em O Estado de S. Paulo, de 16 de setembro de 2001, havia dúvidas, conforme título e subtítulo nele contidos: "EUA correm risco de começar guerra com um fantasma", acrescentando: "Ataque a terroristas ou países que os apoiam pode não ser suficiente para restaurar segurança".

Analisando os atos terroristas na época em que aconteceram, Mamede Mustafa Jarouche procurava elucidá-los:

"E, embora a política americana de dominação tenha lógica e propósitos bem definidos, seus efeitos, como seria de esperar, escapam à previsão de seus propugnadores. Por exemplo: o pipocar de grupos fundamentalistas islâmicos foi, em larga escala, incentivado  pelos serviços de inteligência americanos e pelas políticas israelenses. Acreditavam que essa talvez fosse a melhor forma de combater o crescimento da esquerda no mundo islâmico, encarada como capaz de formular políticas de contestação e combate mais eficientes do que os grupos religiosos, os quais, segundo essa mesma visão, estariam destinados desde sempre a chafurdar no atraso, na ignorância e na incapacidade. Constituiriam, no fundo, uma espécie de desmobilização geral do mundo árabe-islâmico. Ou, no máximo, um arremedo ou caricatura de mobilização, facilmente controlável. Tal política revelou-se equivocada: esses grupos cresceram, fortaleceram-se, aprenderam e, mesmo que, até o momento não esteja confirmada sua participação nos atentados de 11 de setembro, têm evidenciado uma capacidade organizacional que deixou a esquerda árabe num brutal esegunda plano. E, quando isso não ocorreu, os dirigentes árabes trataram de dar sua colaboração. [...] E os principais interessados na deterioração de toda compreensão estão do mesmo lado e dançam no mesmo compasso: os fundamentalistas islâmicos, que constituem ala mais reacionária do espectro político no mundo árabe, e a reacionária administração Bush, que chutou Kyoto e Durban e não hesita em recrudescer a corrida armamentista. Um grupo alimenta o outro" (idem, 7). 

Noam Chomsky aborda também outros aspectos relativos à reação dos Estados Unidos (idem, A-26):

"A resposta dos Estados Unidos e do Reino Unido vem sendo, até agora, mais ou menos o que se previa. O que foi relatado são ataques de mísseis de cruzeiro e bombardeiros voando em alta altitude, acompanhados por missões em que foram lançados alimentos fora das áreas sob controle do Taleban (que formam a maior parte do país), num gesto tão óbvio de relações públicas que nem sequer foi feita qualquer (sic) tentativa de escondê-lo. [...] mas não é improvável que o sentimento reinante tenha sido bem captado pela matéria enviada do Cairo para o Boston Globe e publicada sob a manchete "Ataque americano é saudado com protestos e horror". O artigo cita um garçom egípcio que teria dito: "Eu lhe dou comida e o mato? Fico maluco só de pensar nisso". Fiquei um tanto surpreso ao constatar a fragilidade das provas apresentadas pelos Estados Unidos e transmitidas por meio do primeiro-ministro britânico, Tony Blair. Após o que deve ter sido o esforço investigativo internacional mais intenso da  história, puderam encontrar muito pouco que ligue Bin Laden aos atentados do último dia 11 de setembro - muito menos do que eu especulei por conta própria, sem dispor de recurso algum. As acusações contra o Taleban eram praticamente inexistentes - afinal, se abrigar suspeitos de terrorismo constitui um crime que faz com que o país mereça ser bombardeado, então boa parte do mundo, incluindo os EUA, deveria ser atacada imediatamente. Isso deve ser óbvio demais para merecer comentário. E não sabemos se as ofertas feitas pelo Taleban de negociar e de transferir Bin Laden eram sérias ou não, porque o Ocidente simplesmente as ignorou, optando, em lugar disso, por bombardear - uma postura tradicional, se bem que, quando a história é reescrita, ela normalmente não ganha o devido destaque".

Mais recentemente, por ocasião da guerra no Iraque, em meados do primeiro semestre de 2003, revelou-se o quanto a coalizão Estados Unidos da América e Grã-Bretanha, em nome dos direitos, pôde violá-los. Sem autorização do Conselho de Segurança da ONU, Estados Unidos da América e Grã-Bretanha, apoiados por alguns países, invadiram o Iraque, não dando importância à Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948. 

De imediato os norte-americanos encontraram quem explicasse a falta de autorização do Conselho de Segurança da ONU para invadir o Iraque como sendo decorrente do anacronismo desta instituição. Analisando a ONU e seu funcionamento, Alvin e Heidi Toffler, no artigo "Relações mutáveis de poder deixam ONU para trás", ponderaram: 

[...] "a "loja de bate-papo" das Nações Unidas caminha a seu próprio ritmo cavalheiresco. As Nações Unidas não estão em sincronia com o mundo. [...] A aceleração da mudança torna obsoletas as habilidades. Abrevia os ciclos de vida do produto. Retalha o trabalho, entregando-o a equipes de projetos transitórias. Trunca os relacionamentos humanos. Revira e modifica as configurações do poder a um ritmo cada vez mais rápido. E abrevia o tempo de vida das instituições. Nesse ambiente, sobrevivem apenas as organizações altamente flexíveis. Mas as Nações Unidas estão estruturalmente congeladas. [...] O aumento desta aceleração da história significa que nós veremos menos alianças e instituições permanentes, como as Nações Unidas, e mais agrupamentos ad hoc, criados para um momento e objetivo específicos. [...] O querer, a vontade de em favor de um objetivo, será diferente do querer em relação a outro objetivo. A ONU não foi jamais (sic) planejada para esse mundo. E isso nos leva de volta ao papel dos EUA nas Nações Unidas" (idem, A-30). 

É certo que a ONU tem alimentado a burocracia internacional, com funcionários que desfrutam a segurança de bons salários, de boas viagens e de ambientes quase sempre glamourosos, convivendo com diplomatas ocupantes de cargos em geral oriundos de prebendas de seus governos.  Estes burocratas e diplomatas têm sido homens e mulheres do mundo, existindo sim "bate-papo", nas palavras de Alvin e Heidi Toffler. 

Porém, tudo isso não mostra o principal motivo da crítica à ONU, embora ela possa ser feita. O principal motivo da crítica à ONU está na militarização cada vez maior da política externa dos Estados Unidos da América, em decorrência de um outro modo de exercer o poder e de organizar a ordem mundial dos norte-americanos. Narcís Serra y Serra esclareceu um pouco esta situação:

"O conceito de ataque preventivo (preemptive attak) é a característica mais fundamental da nova estratégia de segurança. Começa-se utilizando o conceito só em relação aos terroristas: nesses casos, os Estados Unidos não terão dúvidas de agir sozinhos, se necessário. [...] Apresenta-se uma guerra contra outro Estado como uma guerra contra o terrorismo. Em resumo, a Administração do presidente Bush elaborou uma política exterior que supõe um giro substancial a respeito às anteriores, e isso foi produzido pelo impacto psicológico dos ataques terroristas do 11 de setembro. No entanto, convém sublinhar que também foi necessária a presença na Administração da equipe mais extremista conhecida pelos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, a qual já antes desses ataques havia defendido ou proposto, mesmo sem excessiva repercussão, muitos dos elementos integrantes do novo paradigma" (idem, 10-11). 

Ante tal panorama sanguinolento, insensato e totalmente imoral no âmbito dos direitos e da justiça, dentro do qual a insubmissão mostra o recurso mais verdadeiro para a preservação da dignidade humana, não é um bom caminho fazer a separação entre direitos, vida dos direitos,m proteção dos direitos e a realização deles. 


De fato, não há direito sem sua realização.


Direitos e elementos de justiça social



Acontece que em determinadas épocas e regiões, avança a aceitação de certos direitos e elementos de justiça social, mas nem tanto, conforme se comprova na história dos séculos anteriores, de modo particular na história do século XX. De fato, não ocorre progressão constante no consentimento dos direitos e de elementos de justiça social. 

O artigo "Ascensão e queda da justiça econômica", de C. B. Macpherson, quis evidencia que, no caso do conceito de justiça econômica, tal conceito se manifesta lentamente na história, depois é suprimido por séculos, renascendo no século XX. Entretanto, Macpherson quis evidenciar mais: "Veremos, diz ele, que as mudança sociais e econômicas provocaram por vezes uma mudança no conceito, e vice-versa" (MACPHERSON, apud Krischke (org.), 1993, p. 265).  Para fins de argumentação, ele propôs que o conceito de justiça econômica  surgiu depois da propriedade privada, da divisão de classes e do Estado. Ainda propôs que este conceito constituiu uma reação ao aparecimento do mercado, quando este tomou o seu lugar nas principais tendências do pensamento político. Por fim, também propôs que o liberalismo, desde a metade do século XIX até a atualidade, não teve condições de dar base teórica ao conceito de justiça econômica, evitando a supremacia do mercado. 

Em tais circunstância, torna-se inevitável ter presente o enunciado de Ferdinand Lassalle, pelo qual a Constituição, "em síntese, em essência", é "a soma dos fatores reais do poder que regem um país" (1969, p. 55). 

Dão-se avanços e retrocessos na aprovação de direitos e de elementos de justiça social, como por sinal em outros campos, podendo-se afirmar que, em geral, têm-se verificado algumas conquistas duradouras em favor deles. Por exemplo, as organizações jurídicas de muitos países têm buscado o estabelecimento de um sistema dinâmico de relações, ao introduzirem meios de possibilitar mudanças sociais. Diversos direitos são exercidos cotidianamente, sem serem percebidos, exceto quando negados. A prática de direitos, mecânica e superficialmente, desprovida de mínima noção de sua existência, gera insensibilidade moral, conformismo e negação deles próprios.

A Constituição de um país, por exemplo, fixas as bases da organização social e, ao mesmo tempo, indica os princípios para a aplicação do direito. Quando legítima, a Constituição representa um imperativo contra a arbitrariedade, a tirania e o opróbrio, além de orientar a interpretação das leis. Na verdade, as liberdades pública dão existência à Constituição: elas a mantêm e fortalecem-na.

Nesta linha de reflexão, Dalmo de Abreu Dallari notou: "Os homens que na segunda metade do século XX aspiram à liberdade já perceberam que o direito de ser livre é mera fantasia, é uma fórmula vazia, um simples jogo de palavras, se não lhes for assegurada a possibilidade de serem livres" (Dallari, 1976, p. 63).  E prossegue adiante: 

"Quem tiver consciência jurídica não se satisfaz com fórmulas abstratas, que nunca passam de meras abstrações, mas só aceita como Direito autêntico aquele que tem expressão concreta na vida social. E percebe que as regras aparentemente jurídicas, mas desprovidas de qualquer eficácia, são inúteis e até mesmo prejudiciais, porque apresentam o Direito como simples jogo de palavras" (1976, p. 72).



Direitos sociais, política social e relativismo 




O relativismo está em moda, ou melhor dizendo, mais uma vez está em moda e nunca desapareceu na sociedade moderna e na intitulada sociedade pós-moderna, de qualquer foram antiintelectualista, capitalista e burguesa. De tempos em tempos, segundo as peculiaridades da época, vê-se o desprezo de "toda metafísica" que pretenda ser alguma coisa, entronizando-se em seu lugar a política e a contingência histórica como critério de verdade. 

Em sua argumentação, o relativismo tira proveito de proposições que não são relativistas, para demonstrar a irracionalidade dos outros argumentos. Porém, o mais grave é que o relativismo termina por encontrar um expediente costumeiro: abandonar a verdade e a justiça. Em si mesmo, isso é conhecido, não resplandece novidade alguma, mas carece ser sempre lembrado.


No que diz respeito aos direitos e às políticas sociais, o relativismo repercute agudamente


A escola histórica do direito, criada na Alemanha durante os séculos XVIII e XIX, desenvolvida por Friedrich Carl von Savigny e por seu discípulo mais importante, Georg Friedrich Puchta, construiu o "espírito nacional" com a noção romântica, irracional e nacionalista de espírito do povo, de modo fechado e alheio ao "espírito universal".  Savigny bem resumiu as bases deste "espírito nacional", ao dizer que havia "uma conexão orgânica entre direito, natureza e caráter de um povo", e que a lei "converteu-se na consciência dos juristas, por que o povo está agora representado, a esse respeito" (SAVIGNY, apud Friedrich, 1965, p. 158-159; cf. 160,180, 182, 184-186, 189-191, 197-198, 207). 

Na formulação de Savigny, desde os primeiros tempos "ver-se-á que o direito já adquirira um caráter determinado, peculiar ao povo, como a sua língua, os seus hábitos e a sua organização". Assim, para ele, o "direito se desenvolve com o desenvolvimento do povo, e se fortalece com o seu fortalecimento, para por fim morrer, quando a nação perder a sua individualidade". E isto porque o "direito, como a civilização em geral, é a emanação de forças inconscientes, anônimas, gradativas e irracionais na vida individual de uma nação em particular" (SAVIGNY, apud Bodenheimer, 1966, p. 88, 89). 

Enquanto a escola do direito natural clássico  asseverou que os princípios fundamentais do direito sempre subsistiram em todos os lugares, atentando para o futuro, a escola histórica do direito apregoou a única existência de instituições jurídicas nacionais, buscando suas bases no passado. Porém, é preciso recordar que Savigny, além de nobre conservador e de nacionalista alemão, abominava a Revolução Francesa de 1789 e seus produtos, como o Código de Napoleão. 

Um dos mais famosos adeptos da escola histórica do direito na Inglaterra  do século XIX, Sir Henry Maine expressou muito interesse pelos estudos comparativos, de onde extraía diversas generalizações. Maine intentou uma história jurídica dos povos, com traços evolutivos, reiterados em organizações sociais diferentes e em condições históricas parecidas, criando sua teoria sobre a sucessão dos fenômenos, na lei e na produção legal. 

Afora o ceticismo filosófico, a escola histórica do direito adotou princípios, sem avaliação crítica, entendendo-os como se fossem generalizações nascidas empiricamente dos dados disponíveis. 

Não apenas o ceticismo significa uma variação do relativismo, porque este se expressa em outras modalidades, como o evolucionismo biológico e social

Herbert Spencer no século XIX, por exemplo, colocou a civilização e a lei como resultado da evolução biológica e da "sobrevivência dos mais aptos", recusando toda legislação social, toda regulamentação coletiva, por intervir na lei da seleção natural, e formulando a lei da "igual liberdade", da seguinte maneira: "Todo homem tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não infrinja a igual liberdade de qualquer outro homem"

Como consequência, Spencer utilizou-se do individualismo radical para rejeitar os direitos sociais, aceitando a ação do Estado na hipótese de indigência



Relativismo e utilitarismo 


O relativismo, porém, tem no utilitarismo uma de suas modalidades mais comuns e persistentes.

Para Thomas Hobbes, no século XVII, a vontade do soberano era a única fonte do direito; só esta vontade se revestia de validade legal. Em seu livro Leviatã,  um modelo de discurso verbal e de construção de parábola, Hobbes supôs que: 

..."as leis da natureza (como justiça, equidade, modéstia, misericórdia e, em suma, fazermos aos outros como desejamos que nos façam), em si mesmas, sem o terror decorrente de algum poder que force sua observância, são contrárias a nossas paixões naturais, que nos impelem para a parcialidade, o orgulho, a vingança e outras coisas semelhantes.

E continuou Hobbes: "Se não houver um poder  constituído  ou suficientemente forte para salvaguardar nossa segurança, todo e qualquer homem só poderá e terá de confiar em sua própria fortaleza" (HOBBES, apud Friedrich, 1965, p. 102).  

Assim, para ele, a "lei, propriamente dita, é a palavra daquele que, por direito, tem comando  sobre os demais" (Capítulo XV), porque, como já afirmara: "Onde não existe poder comum, não há lei: onde não há lei, não há injustiça" (Capítulo XIII) e ainda: "Considero como uma inclinação geral de toda a humanidade um desejo perpétuo e incansável de poder e mais poder, o qual só na morte cessa" (idem, p. 102-103). 

Thomas Hobbes submeteu os direitos e os elementos de justiça ao princípio de utilidade: todos os seres humanos admitiram como úteis a paz e a ordem e, só por isto, acabaram por admitir as leis e a obediência a elas.  O argumento principal de Immanuel Kant, no século XVIII, contra Hobbes está no fato de este basear a utilidade no exagero da felicidade material. 

Posteriormente, David Hume, no século XVIII, ao estabelecer as três leis fundamentais da natureza humana ("a estabilidade da posse, sua transferência por consentimento, e o desempenho de promessas"), negou que estas três leis nascessem da razão, porque eram "inteiramente artificiais e de humana invenção", embora a razão pudesse declarar a utilidade delas. Hume sujeitou a razão à paixão. Sua crítica radical da razão não o fez antirracionalista radical, conquanto tenha denunciado também seu completo ceticismo

Todavia, nos séculos XVIII e XIX, o utilitarismo se alargou e se explicitou bastante nos escritos de Jeremy Bentham e de John Stuart Mill. 

Jeremy Bentham se instruiu na obra de Hume sobre o princípio de utilidade e aproximou, ao máximo, moral e legislação, baseando ambas na utilidade.  No campo legislativo, Bentham buscou a "lógica da vontade", evitou a benevolência e o humanitarismo de Hume, mas enfatizou o que Hume chamou de amor-próprio: a preocupação de cada um com sua dor, com seu prazer, com seu egoísmo. 

De acordo com Bentham, a utilidade consistia no "princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, conforme a tendência que ela pareça ter para aumentar ou diminuir a felicidade daquele de cujo interesse se trata". O pressuposto  primeiro da análise utilitarista estava no emprego do "cálculo hedonístico", um tratamento realizado com quantidades matemáticas do prazer e da dor. Dentre os prazeres humanos, levados em conta por Bentham, achavam-se os prazeres dos sentidos, da riqueza, da aptidão, da amizade, do bom conceito, do poder, da piedade, da benevolência, da malevolência, da memória, da imaginação, da expectativa, da associação e do alívio da dor. 

Para Bentham, as lei unicamente podiam motivar os seres humanos, por meio de castigos e de prêmios, orientando-os no sentido de eles promoverem seu próprio sustento. As leis, no seu mode de ver, não podiam diretamente prover a subsistência dos indivíduos, não reconhecendo ainda qualquer direito natural, porque, para ele, o direito resumia-se "na vontade ou na determinação de um legislador"

Com tudo isso, não é demais trazer para cá o fervor utilitarista de John Stuart Mill, que se exprimiu quase religiosamente assim, em seu livro Da liberdade

"É conveniente declarar que renuncio a qualquer vantagem que possa resultar para meu argumento da ideia do direito abstrato como independente da utilidade. Considero a utilidade como o último recurso em qualquer questão de ética; terá de ser, porém, a utilidade no sentido mais amplo, baseada nos interesses permanentes do homem como ser progressista" (idem, 13-14). 

Convenientemente também, Carl Joachim Friedrich comentou as ideias de Bentham:

"A persuasiva indeterminação das formulações de Bentham não suporta qualquer (sic) gênero de crítica inquisitiva. Perguntas como "Que significa a soberania do prazer e da dor?" não encontram respostas nos escritos de Bentham. O famoso princípio da "maior felicidade para  o maior número" evapora-se quando se formula uma pergunta tão simples como "Que se deve entender por felicidade?". Já foi dito,  um pouco dura mas justamente, apesar de tudo, por recente crítico de Bentham, que "a triste verdade é não ser possível encontrar qualquer nexo em tudo o que Bentham disse" (FRIEDRICH, 1965, p. 116). 

Acrescentou ainda Friedrich, em nota: "O primarismo da psicologia envolvida no raciocínio dos utilitaristas, e especialmente de Bentham, está tão remoto de nosso próprio pensamento, modelado pelo desenvolvimento  da Psicologia e Psicanálise modernas, bem como pelos escritos de homens como Nietzsche e Dostoievski, que nos é difícil apreciar o significado real desse corpo de pensamento" (idem, 116). 

Talvez se possa concordar com Roscoe Pound, que chamou Rudolph von Ihering (1818-1892) de "utilitarista social". Com feito, Ihering procurou o equilíbrio dentre o indivíduo e a sociedade, asseverando que o fim da lei não era só proteger a liberdade individual ou a utilização de soluções abstratas e gerais. O "fim" é que dá existência ao direito, dele ou de "um motivo prático" nasce a lei (BODENHEIMER, p. 106). 




Relativismo e ceticismo



Em outros momentos e em outras obras,  o próprio relativismo encobre as vestes do ceticismo, e não inversamente, como se viu antes, na denominada escola histórica do direito, com Savigny, Puchta e Maine.

Em expoente do relativismo no século XX foi Gustav Radbruch (1878-1949), para quem os valores eram totalmente autônomos e não eram demonstráveis aos outros, por argumento racional, porque provinham da vontade humana. Para ele, era possível indicar os valores e as escalas de valores, não obstante fosse impossível resolver a contradição entre tais valores. 

Este relativismo tornou-se bastante visível quando Radbruch disse que as proposições referentes ao "deve ser" só eram arguíveis e demonstráveis com referência a outras proposições referentes ao "deve ser".  Ao procurar a ordem dos sistemas de valores, Gustav Radbruch, na melhor hipótese, chegou a estabelecer a tríade dos valores individuais, dos valores coletivos e dos valores criativos, correspondente à tríade da liberdade, da nação e da cultura. 

O incrível nas meditações de Gustav Radbruch estava em que a composição da ordem jurídica derivava da justiça, da conveniência e da certeza legal, mas, de acordo com ele, "necessitam um dos outros, embora ao mesmo tempo se contradigam". Sua posição relativista avultou principalmente ao ocupar-se com a certeza legal, um dos elementos da ordem jurídica: "A certeza do direito exige que ele seja positivo: se o que é justo não pode ser estabelecido, então é preciso assentar o que devia ser direito, e isso tem de ser feito por um meio capaz de fazer cumprido o que assentou" (RADBRUCH, Bodenheimer, p. 156).

A Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com seu morticínio generalizado, com a eliminação recíproca e convicta dos exércitos e com o extermínio calado e indulgente das populações civis, atropelou o relativismo de Radbruch, que passou a revisar suas crenças expostas nos escritos anteriores a ela, admitindo por exemplo certa validade dos direitos individuais e retirando a prevalência do direito positivo. O revisionismo de Gustav Radbruch, depois do início da era nuclear, pode ser anunciado como conversão ao direito natural?

A separação entre o que "é" e o que "deve ser" engendrou posições muito mais inflexíveis, a ponto de repelir qualquer vínculo entre um e outro.  



Relativismo e "teoria pura da lei" 




O relativismo desenvolveu-se assim de forma incomensurável, sem nenhum desconforto, abandonando as agruras do mundo sem coração, para alçar um grito aos céus, convertendo o estuda da lei em parte da lógica. Sob o aspecto da existência individual e social, e igualmente sob o aspecto da norma, a ruptura entre o "é" e o "deve" significou além disto a ruptura de conteúdo e forma, fabricando uma dimensão apenas formal daquilo que se tem chamado de teoria pura do direito.

Nem a advertência de Max Planck (1858-1947) surtiu efeito na intrepidez dos adeptos da teoria pura do direito

Falando sobre Planck, físico alemão iniciador da teoria quântica, que rege os fenômenos naturais na escala dos átomos e das moléculas (juntamente com a teoria da relatividade, a teoria quântica forma os dois pilares da física do século XX), Albert Einstein (1879-1955) em cerimônia da Academia de Ciências dos Estados Unidos da América, no ano de 1948, notou em homenagem [de Max Planck): "Um homem a quem foi dada a oportunidade de abençoar o mundo com uma grande ideia criativa não precisa do louvor da posteridade. Sua própria façanha já lhe conferiu uma dádiva maior" (Folha de S. Paulo, 17//2000, p. 6-11). 

Ora, para Max Planck "a lógica, per se, é incapaz de levar alguém além do domínio de sua própria percepção; ela não pode sequer obrigá-lo a reconhecer a existência de seus semelhantes" (idem, 9).  

Com tudo isso, proclamando a neutralidade relativamente aos valores e voltando-se exclusivamente para o direito positivo, a teoria pura da lei foi contrária ao direito natural, rotulando-o de ideológico quando o direito natural aparecia como ordem legal ou quando ele fazia alguma crítica. 

Auguste Comte, na primeira metade do século XIX, alicerçou o positivismo filosófico, dentro do raciocínio evolucionista. O positivismo serve para denominar certo pensamento, de maneira ampla, transformando-o em termo um pouco impreciso. Genericamente, quer empregar os métodos usados nas ciências naturais às ciências humanas, nem sequer tolerando a possibilidade de forças invisíveis e de causas finais, e menos ainda suportando análises além da aparência das coisas. O positivismo não transpõe os limites da percepção, concentrando sobretudo sua atenção nos dados e, às vezes, nos dados da experiência, negando a possibilidade do conhecimento da essência do real.

Examinando o positivismo, Edgar Bodenheimer registra em nota:

Em nossos próprios dias têm surgido interpretações da existência e da sociedade humana contrárias ao positivismo, as quais, para usar a terminologia dessa mesma escola, devem ser denominadas "metafísicas". Cumpre também notar que a própria lei de Comte, envolvendo afirmações categóricas e não comprovadas acerca da evolução do pensamento humano, deve ser definida como sendo "metafísica" (idem, 109). 

Apesar disso, o denominado Circulo de Viena, criado depois da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e extinto em 1938, gerou a forma radicalizada de positivismo, conhecido por positivismo lógico, principalmente nos estudos de Moritz Schlick e de Rudolf Carnap. Aplicando a lógica simbólica em suas análises, o intitulado positivismo logico do Círculo de Viena desacreditou a filosofia de qualquer época, as proposições de caráter dogmático e as especulações em geral, tachando de metafísicos a maioria dos pensadores. Afirmar algo sobre a realidade, para o Círculo de Viena, somente era válido, se comprovado e verificado pela experiência dos sentidos. Para este Círculo, a atividade filosófica reduzia-se à classificação lógica das ideias.

Por seu lado, o positivismo jurídico contrapôs-se à especulação, à metafísica e à busca das razões finais, restringindo o direito unicamente ao direito positivo, ou seja, restringindo o direito unicamente às normas jurídicas originárias do Estado. Assim, o positivismo jurídico afastava dos preceitos éticos e sociais a lei positiva, e a justiça orientava-se pela legalidade.

O positivismo jurídico desdobrou-se em outras manifestações, como o positivismo analítico, nos casos de John Austin (na primeira metade do século XIX), de Herbert L.A. Hart, de John C. Gray, de Hans Kelsen (com ampla influência no século XX); e como positivismo sociológico, no caso de Ludwig Gumplowicz (1838-1909).

O positivismo analítico era sobretudo indutivo e comparativo, ao extrair de certa ordem jurídica alguns conceitos e elementos, para em seguida aproximá-los de outros conceitos e elementos de distintas ordens jurídicas, estabelecendo o que havia de comum entre elas.

O inglês John Austin deu início à escola analítica da ciência do direito, propondo que a teoria do direito positivo, a ciência do direito, a ciência da jurisprudência, ou simplesmente a jurisprudência, cuidava apenas de leis positivas, sem levar em conta se eram leis boas, más, justas, injustas, ideais ou não. Mas as leis positivas procederiam de um soberano, tinham caráter imperativo e geral, significando ordem soberana. Para Austin, não seria possível a ciência do direito desvinculada da legislação, criada por órgão oficial, com poder de legislar, incluindo aí as normas enunciadas pelos juízes. Por sinal, segundo John Chipman Gray, os juízes e os tribunais é que realizavam o direito, dando-lhe forma definitiva e mais correta. 

Hans Kelsen, de sua parte, considerou a denominada teoria pura do direito como teoria do direito positivo,  expurgando da ciência do direito os elementos estranhos, como o conceito de justiça, os conceitos oriundos da psicologia, da sociologia, da moral

Mas Austin ao menos esteve um pouco presente, consoante informou Kelsen: "A orientação da pura teoria do Direito é, em princípio, a mesma da chamada jurisprudência analítica. Como John Austin, em suas famosas lições sobre jurisprudência, a pura teoria do Direito procura alcançar seus resultados, exclusivamente, por meio de uma análise do Direito Positivo" (KELSEN, apud Friedrich, p. 118).

Kelsen apresentou a justiça como objeto incognoscível e, no mínimo, contraditório. Esclareceu ele sua opinião a respeito dela: "A afirmação frequente de que na realidade existe isso que se chama justiça, embora não possa ser definida claramente, constitui uma contradição em si mesma. Embora indispensável para o querer e o agir dos homens, ela escapa à cognição. Do ponto de vista do conhecimento racional, só existem interesses, daí o conflito de interesses" (KELSEN, apud Bodenheimer, p. 120). Em suas explicações sobre a justiça, Kelsen acabou entendendo-a como legalidade, como "manutenção de uma ordem positiva pela sua conscienciosa aplicação", enquanto o direito não passou de "uma ordem exterior coercitiva" e o Estado de "governo de leis" (KELSEN, apud Bodenheimer, p. 120-121, 123). 

O positivismo sociológico do direito não difere muito do positivismo analítico, em matéria de relativismo

Ludwig Gumplowicz igualmente encontrou base sociológica para a proposição segundo a qual o direito emana diretamente do Estado e não nasce fora dele, sendo irreais os conceitos de direito natural e de direitos inalienáveis. Segundo Gumplowicz, as ideias de direito natural, de direitos inalienáveis, de livre-arbítrio, de liberdade, de igualdade e de razão significavam corpos estranhos à lei, pois esta realizava o oposto do pretendido por essas noções. Nos termos de Gumplowicz, a lei representava "em geral o contrário mesmo da liberdade e da igualdade, como de fato naturalmente deve ser" (GUMPLOWICZ, apud Bodenheimer, p. 126; cf. ainda 78, 80, 90, 92, 95-96, 101, 110, 116, 119, 125).

Não existia no pensamento de Gumplowicz algo a ser entendido como visão estática da história. As classes exploradas, porém, valiam-se de instrumentos produzidos pela classe dominante, na falta de seus próprios instrumentos. Para alargar a liberdade e buscar a igualdade, as classes exploradas serviam-se desses instrumentos contidos nas ideias de lei e de direito, ideias com as quais atingiam certo sucesso, relativo e distante de seus objetivos. Gumplowicz cuidou de dar cunho relativista aos direitos e negar de modo sistemático qualquer materialidade mais abrangente do direito natural, da liberdade, da igualdade e da razão. 

DENTRO DESSA ORIENTAÇÃO, COMO EXPRESSÃO DE DIREITOS, A POLÍTICA SOCIAL PERMANECEU SUBJUGADA AO RELATIVISMO.

O teor relativista ainda transpareceu, entre outros escritos, na teoria do "direito intuitivo", de autoria de Leon Petrazycki (1867-1931), baseada na aplicação do método introspectivo, na consciência individual e nas vivências íntimas das pessoas.

Talvez uma das expressões mais influentes, produtivas e perspicazes do relativismo apareceu através do pragmatismo filosófico. William James propôs que o mais universal de todos os princípios encontrava-se no fato de que "a essência do bem está simplesmente na satisfação de uma necessidade".

James, apoiado na doutrina pragmatista, ou melhor ainda, em seu empirismo radical, acentuou o antideterminismo, o contingentismo, o ecletismo e a temporalidade, adotando o instrumental indutivo e empírico com fervor, à semelhança das chamadas ciências naturais. 

Acompanhando a teoria pragmatista da verdade, William James recusou a verdade como correspondência e como coerência racional, porque para ele as proposições eram verdadeiras quando funcionavam, ou quando funcionavam em nossa existência. Na filosofia de James, a verdade será então "o que pode chegar a ser verdadeiro", será o que pode ser verificável. Em franca oposição ao racionalismo, o empirismo radical de William James agarrou-se ao agnosticismo e a algumas de suas derivações, como a forçosa vinculação ao dado, à experiência, o reconhecimento de limites ao conhecimento etc. 

A denominada "escola sociológica do direito norte-americano" prodigalizou exemplos de relativismo, mesmo com sua insistente ênfase no esclarecimento dos fatores sociais e econômicos atuantes na lei. Benjamin Cardozo (1870-1938) ressaltava a força da realidade social na interpretação e na aplicação da lei, porque, quando há julgamento, era imprescindível avaliar os interesses em conflito e optar por alternativas, sob a pressão variada das necessidades sociais. Porém, Oliver Wendell Holmes (1841-1935) foi mais longe no pragmatismo, ou no empirismo radical, como melhor podem ser distinguidas suas ideias, apesar de admitir certos aspectos das decisões judiciais, igualmente referidos por Cardozo. 

Além do mais, existiam nas opiniões de Oliver Wendell Holmes um darwinismo social e um ceticismo moral, que o conduziram a ver o direito como coleção de leis e decretos, representativos dos interesses sociais dominantes e da força deles.   

Holmes explicou-se com suas palavras: "Em se tratando da evolução de um corpus juris, o que mais importa é saber o que pretendem as forças predominantes da comunidade e se o pretendem com suficiente interesse para desprezar quaisquer inibições que se lhes oponham". E ainda se explicou Holmes: "A vida do direito não tem sido lógica: tem-se caracterizado pela experiência. [...] O direito consubstancia a história do desenvolvimento de uma nação através de muitos séculos, e não pode ser tratado como se apenas contivesse os axiomas e corolários de um compêndio de matemática". Segundo Holmes, o agnosticismo ético revestiu todo o direito:

"Se você quer apenas conhecer o direito, e nada mais, deve examiná-lo como o faria uma pessoa imperfeita, a quem só interessam as consequências materiais que esse conhecimento lhe permite antecipar, e não como uma pessoa de bem, que encontra razões para a sua conduta, de acordo com a lei ou contra ela, nas sanções ainda mais vagas da sua própria consciência (omissis)" - (HOLMES, apud Bodenheimer, p. 137-138).   

Talvez nenhum outro representante da "escola sociológica do direito norte-americano" esteve tão perto do pragmatismo filosófico de William James, como Roscoe Pound, embora em algum momento se tenha acercado da concepção de direito natural. Em sua Introdução à filosofia do direito, Pound exprimiu com clareza seu pensamento sobre o direito: "Para os fins de compreensão do Direito atual,  contento-me com uma imagem em que se dê satisfação ao máximo que for possível de todo de necessidades humanas, com um mínimo de sacrifícios" (1965, p. 54). 

Porém, o pragmatismo filosófico de Roscoe Pound mostrou-se renovadamente em distintas formulações, como, por exemplo, no livro Justiça Conforme a Lei: "Com toda certeza, a lei natural, como sistema moral universal de preceitos, ajuda-nos pouco, se é que ajuda, em questões de ajustamento e mesmo de transigência de expectativas em conflitos que surgem constantemente". E ainda: "Chegamos, assim, à ideia de satisfação máxima das necessidades ou expectativas humanas. O que é preciso fazer no controle social e também na lei, é conciliar e ajustar, tanto quanto possível, desejos, necessidades e expectativas, de sorte a conseguir porção tão grande da totalidade deles quanto possível. Até ao presente é essa a ordem mais compreensiva" (idem, 10, 33).   

Roscoe Pound não buscou avaliar os interesses sociais predominantes em certa época, convertendo as decisões judiciais em ato vago, porque para ele o campo dos julgamentos não comportava padrões absolutos e genuínos. 

Mesmo assim, não se descobriu em Pound o extremismo de outros representantes da "escola sociológica do direito norte-americano", conhecidos adeptos do "realismo jurídico", aliás casos de Jerome Frank ou de Thurman Arnold, dentre outros.

Ao longo do tempo, Jerome Frank passou de "céptico da norma" a "céptico do fato". Isso quer dizer: primeiro duvidou da norma; depois, duvidou do fato. Antes, Frank asseverava: "Ninguém sabe qual é a lei num caso qualquer ou numa dada situação, transação ou acontecimento, enquanto não proferida a decisão específica (sentença, mandado ou decreto) no próprio caso". E, posteriormente, anotava Frank: 

[podem existir] "testemunhas fementidas, testemunhas coagidas, testemunhas influenciadas, testemunhas enganadas pela sua própria observação dos fatos sobre que depõem, ou pela memória do que observam, testemunhas que faltam ou faleceram, documentos desaparecidos ou perdidos, advogados velhacos, advogados estúpidos, jurados desatentos, juízes instrutores ignorantes, ou fanáticos ou influenciados, ou "obstinados" e indiferentes às provas" (FRANK, apud Bodenheimer, p. 140-141). 

A dúvida e a falta de confiança na razão humana e na população alcançaram tal ponto que, de sua parte, Thurman Arnold chegou a acreditar que o "ordenamento jurídico perde prestígio e influência toda vez que grandes ideais unilaterais empolgam um povo" (ARNOLD, apud Bodenheimer, p. 143; cf. 129, 132, 136, 142).

O ELEVADO COMPONENTE DE IRRACIONALIDADE ATRIBUÍDO ÀS DECISÕES JUDICIAIS E O INTENSO NIILISMO DE VALORES NEGARAM APAIXONADAMENTE A JUSTIÇA, OS DIREITOS E QUALQUER POLÍTICA SOCIAL, ASSENTADA NESSES DIREITOS. 




Direitos sociais, política social e universalidade



A universalidade regressou timidamente ao cenário do pensamento, também do pensamento jurídico, pois sobreviveu bom tempo nas masmorras materiais e imateriais. 

Não se pode negar veracidade ao comentário de Miguel Reale, no livro O direito como experiência: "O mal é que o filósofo do Direito às vezes é levado a confundir `exigência de universalidade´com indiferença para com os problemas particulares que compõem a trama viva da experiência social, perdendo-se, dessarte, em abstrações infecundas" (idem, 79). E complementa Reale: 

"Foi isso exatamente que ocorreu - consoante observação feita por Recaséns Siches - com grande número de jurisfilósofos a partir do século passado (século XIX), quando vieram, pouco a pouco, perdendo contacto com os problemas políticos, em geral, e com a problemática forense, em particular, isto é, com o direito vivido dia-a-dia por legisladores, juízes e advogado, acabando por se isolarem num "Filosofia jurídica acadêmica"" (idem, 79).  

Essa "exigência de universalidade" transpareceu também no direito natural e em suas tentativas contemporâneas, às vezes com a denominação de "renascimento do direito natural", como alternativa contrária ao positivismo, desde os princípios do século XX. No entanto, o aludido "renascimento do direito natural" foi revelando a realidade de sempre, ou seja, a exigência de uma determinada justiça, sólida e superior, capaz de avaliar o direito positivo. Buscou-se, quase sempre, dar o direito  natural por mutável, no sentido de que esse direito possuía conteúdo alterável, de acordo com o tempo e as circunstâncias, sempre guiado por uma ideia de direito na qual caiba a presença da lei justa. 

Provavelmente aqui não importe tanto a exibição de pormenores sobre autores como, por exemplo, Rudolf Stammler, Giorgio Del Vecchio, François Gény ou Léon Duguit, mas importe sobretudo o fato de que eles, em geral, não queriam voltar ao pensamento dos séculos XVII e XVIII, reconhecendo verdades eternas e leis imutáveis da natureza (cf. 57, 61, 67, 79-80, 83-84, 101, 104, 122-123, 130, 132, 142-143, 149, 151, 154-155, 157).  

No caso de Rudolf Stammler, o certo era pôr em prática a lei justa, sem participação do positivismo histórico ou analítico. Por isso, Stammler saiu à procura da lei justa e do direito justo. Para ele, a lei justa era "aquela lei que, numa determinada situação, coincide com a ideia básica do Direito, em seu todo"; ou ainda explicitando: a "lei, como instrumento a serviço de propósitos humanos, requer, para sua justificação, a prova de que é um meio justo para um propósito justo". O direito justo, segundo Stammler, não se equiparava obrigatoriamente ao direito natural. Em suas palavras: "A lei justa não se situa fora do direito positivo, como uma espécie de norma com exigências não legais ante o Direito; conceptualmente, de maneira alguma se identifica com uma lei que possa ser desejada, em contraste com uma que se realizou historicamente". Ou também: "O direito justo é direito positivo, cujo conteúdo possui determinadas qualidades objetivas" (STAMMLER, apud Friedrich, p.176, 177).

Os preceitos trazidos por Stammler constituíam construções idealistas, sugerindo que a forma significasse a união de seus elementos duradouros, sem o comparecimento de nenhuma particularidade, enquanto o conteúdo sim teria base histórica e concreta. Havia, portanto, na obra de Rudolf Stammler, de uma parte, alguma aproximação com o direito natural, mas, de outra parte, havia do mesmo modo abertura ao relativismo e ao ceticismo. 

Em outra rota, Léon Duguit quis fornecer à teoria do direito natural um sustentáculo sociológico, recusando os direitos individuais para reconhecer, em seguida, uma interpretação idealista e um pouco peculiar do mesmo direito natural, agora sob a feição socializada. Para Duguit, a lei deve concretizar a solidariedade social, como elemento central da convivência humana. Entende-se assim: "O fato da solidariedade social é incontroverso e na verdade não pode ser posto em dúvida; é um fato resultante da observação que não se pode negar [...]. A solidariedade é um fato permanente sempre idêntico em si mesmo, o elemento constitutivo irredutível de todo grupo social" (DUGUIT, apud Bodenheimer, p. 163). 



Neotomismo e direito natural


Uma experiência vistosa de "renascimento do direito natural" emergiu no neotomismo, centrado na escolástica medieval e particularmente no pensamento de Santo Tomás de Aquino. 

O neotomismo - pode-se dizer - no campo do direito natural, enunciou amplos princípios bem gerais dentro de uma ordem mutável de leis concretas e específicas. Vejam-se alguns casos. O direito positivo, nascido do Estado, conforme Victor Cathrein, materializava e integralizava o direito natural. Para Cathrein, o princípio superior e inevitável consistia no seguinte: "Observe em seus atos a ordem que lhe é própria, como ser racional, nas suas relações com Deus, com os seus semelhantes e consigo mesmo" (CATHREIN, apud Bodenheimer, p. 158). Algo semelhante estava em Jacques Maritain: "Há, em virtude mesmo da natureza humana, uma ordem ou disposição que a razão humana é capaz de descobrir, e segundo a qual deve a vontade humana agir, para se harmonizar com os fins necessários da criatura humana. A lei não escrita, ou direito natural, não é nada mais do que isso" (MARITAIN, apud Bodenheimer, p. 158-159).

O neotomismo, em seu direito natural - diga-se assim -, teve certa vizinhança com a teoria institucional de Maurice Hauriou e de Georges Renard. Em Hauriou, a "instituição" era "a ideia de um empreendimento ou de uma empresa que se realiza e persiste num meio social", ao passo que, para Renard, a "instituição" representava "a comunhão dos indivíduos numa ideia" (HAURIOU, RENARD, apud Bodenheimer, p. 161). 

De qualquer forma, Renard elucidou o que é "instituição" ao apontar a melhor definição dela no artigo primeiro da Carta do Trabalho da Itália, produzida no Fascismo de Mussolini: "A nação italiana é uma organização dotada de um fim, de existência e de meios de ação que transcendem os dos indivíduos ou grupos de indivíduos que a compõem" (idem, 161). 


Teoria dos valores e direitos


A teoria dos valores de Max Scheler e Nicolai Hartmann, e também de Luis Recaséns Siches, afirmava a existência de valores objetivos, apriorísticos, desligados do espaço e do tempo, como, por exemplo, a verdade, a bondade, a beleza, a justiça e a segurança. A teoria dos valores assegurava que os homens se moviam entre dois mundos, o mundo da natureza e o mundo dos valores, e estes valores decorriam da intuição, não da experiência ou dos sentidos.

Nos estudos de Recaséns Siches, havia participação do existencialismo e do personalismo, na busca de um critério de valor a ser empregado na fixação do conteúdo do direito positivo. O direito, para ele, guiava-se por determinado sistema de valores universais, a despeito de estar enraizado na existência humana historicamente condicionada. Assim, segundo Recaséns Siches, o direito deveria proteger o indivíduo, garantindo-lhe a liberdade, a integridade pessoal, o bem-estar material e a expansão da personalidade. 

Max Scheler igualmente elaborou uma teoria dos valores, na qual intuições essenciais, desvinculadas de significação, constituíam valores intemporais e válidos. Tais essências puras - valores - deveriam relacionar-se com a existência do mundo do homem e da história, onde os valores se descobriam e ser realizavam. Com isto, pretendia Max Scheler  ter superado o relativismo historicista e o apriorismo formalista. De sua parte, Nicolai Hartmann em igual sentido produziu uma teoria dos valores e uma ética, como ética dos valores (BODENHEIMER, cf. p. 157, 162, 164, 173-174).



Direito natural clássico e princípios especiais




As construções do direito natural, nos Períodos Clássico, Medieval, Moderno e Contemporâneo,  apresentaram diferenças, como aliás não poderiam deixar de acontecer, sobretudo em razão de condições sócio-históricas diversas e de visões de mundo distintas. Uma dessas diferenças deve encontrar-se, por exemplo, na abrangência dos princípios do direito natural. Também outras diferenças devem achar-se nas várias formações sociais, nas várias maneiras de produzir, nos vários modos de pensamento, na diversidade do trabalho, dentre outras, a ponto de as próprias noções de vida, de morte, de liberdade, de bem, de homem, de escravo e de trabalho etc. diversificarem de época para época. 

Na Grécia Antiga, o conceito de nomos, que significava uma ordenação de deveres universais, passou por transformação radical sob o impacto do racionalismo do século V a.C., em Atenas, assumindo a acepção de opinião majoritária do povo.  

O direito natural clássico em geral mostrava um conjunto de princípios especiais e pormenorizados, diferentemente do que ocorreu depois.  

Platão evidenciou esse racionalismo grego e esses princípios específicos e pormenorizados, como no caso de As leis, em que observou: "Em minha opinião, só pode ser considerada justa e reta uma lei tal que, como um bom atirador de arco e flecha, vise sempre atingir algo de eternamente belo e menospreze tudo o que, seja riqueza ou outras coisas desse tipo, estiver desprovido de virtude [arete]" [PLATÃO, apud Friedrich, p. 35]. Por seu lado, Aristóteles descobriu na natureza da lei o corretivo para sua generalidade, criando certa espécie de justiça, a ser usada com critério e razão, conforme descreve na Retórica:

"Mostrar-se equitativo é ser indulgente com as fraquezas humanas; é também ter menos consideração pela lei do que pelo legislador; ter em conta, não a letra de lei, mas a intenção do legislador; não a ação em si, mas a intenção premeditada (o propósito moral); não a parte, mas o todo; não o estado atual do acusado, mas sua conduta constante, ou sua conduta na maioria das circunstâncias. É também se lembrar do bem, mais que do mal que foi feito, dos benefícios recebidos, mais que dos concedidos. É ainda suportar a injustiça que fere, preferir resolver uma desavença amigavelmente a apresentar uma ação no tribunal; recorrer a uma arbitragem, mais do que a um processo, porque o árbitro considera a equidade, e o juiz a lei. [...] Que seja suficiente essa maneira de definir a equidade (ARISTÓTELES, apud Friedrich, p. 42).

Com efeito, Aristóteles discerniu na natureza da lei não apenas uma antinomia entre equidade e justiça, para corrigir a generalidade legal. Discerniu muito mais na natureza da lei, como vários significados e espécies de justiça, indicando a distributiva e a comutativa. 

Em palavras de Aristóteles, na obra A ética de Nicômaco:

"Mas incomparavelmente mais importante é a justiça, cujo significado primário e mais geral é de obediência às leis; e, pois que as leis ordenam o bem da comunidade civil e as virtudes que tal bem promovem, e proíbem as más ações, assim no seu mais amplo sentido, pode dizer-se que a justiça abarca todas as virtudes, e que ela é a virtude ótima e perfeita: perfeita porque, quem a possui, pode usar da virtude não só nas coisas próprias, senão também com respeito aos outros todos. [...] Em sentido mais restrito, a justiça é de duas espécies: uma se reporta à distribuição das honras, das riquezas e de todas as outras coisas divisíveis entre os cidadãos; a outra,  comutativa,  regula as aquisições e os contratos. - A justiça distributiva está na igualdade das relações. As honras devem ser dadas na razão do mérito: a repartição mal feita gera injustiça, porque quem tem mais é uma ofensa a quem tem menos. - A justiça corretiva, ao contrário, está na igualdade aritmética, de modo que as partes tenham igual o proveito ou o dano: a ela não lhe faz diferença que um homem probo tenha sido roubado por um biltre, ou então que sucedesse o contrário. Os culpados são tratados como iguais (idem, 99, 100). 

E nesse mesmo passo, Aristóteles acrescenta a correção para a generalidade da lei, conforme já se mencionou anteriormente a propósito da equidade: "Afim da justiça é a equidade, que nasce quando a justiça diz respeito a um caso que foge do comum e da generalidade própria da lei; de sorte que a equidade é como uma correção, de que a lei, pela sua abstratividade, necessita continuamente" (idem, 100, 101). 

O direito natural romano é nutrido em grande parte pelo estoicismo, transplantado da Grécia para Roma e sistematizado por Marco Túlio Cícero (106-43 a.C). No entanto, o pensamento filosófico de Cícero tem sido considerado um pensamento eclético, e no tratamento da moral ele se voltou para as doutrinas estoicas, dando existência a um direito estoico praticável, no interior do direito romano. Distanciando-se da pólis, tão viva para Platão e Aristóteles, o estoicismo elegeu a humanidade como comunidade universal e a natureza como princípio fundamental do universo, consagrando o panteísmo, ao igualá-lo a deus. 

Tanto para os estoicos como para Cícero, a lei da natureza nascia da razão, como por sinal aparece quando ele cita Crisipo, explicando: "A lei é a suprema razão, imanente na natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário" (CÍCERO, apud Friedrich, p. 46).

Como os estoicos, igualmente Cícero percebia a lei como a razão da natureza, o logos da natureza,  constante, eterna, "distribuída entre todos", da qual somente se participa conscientemente, podendo-se compreendê-la. A ser assim, Cícero não imaginava que a lei da natureza surgisse da razão humana, do povo ou do Estado. Para ele, a lei era "algo eterno que rege o mundo inteiro por meio da sabedoria e prudência daquilo que ordena e daquilo que proíbe" (idem, 47). Ainda asseverava Cícero: "Nascemos para a justiça, e a lei não se fundamenta em opinião, mas na própria natureza do homem" (idem, 47; cf. 30, 41-42, 44).  O choque entre a razão da natureza e o direito positivo permitia declarar que a norma positiva não era verdadeira lei. Essa razão da natureza engendrava o direito natural, que, no pensamento de Cícero, por exemplo, poderia ser o direito de legítima defesa própria ou a regra de que não se deve fazer mal a ninguém.

Quando mais não seja, em se tratando do caráter universal do direito natural, como fonte dos demais direitos, o Período Medieval gerou formulações bastante típicas da época, também dentro da "exigência de universalidade".

No caso de Santo Agostinho, o direito positivo inseria-se no um tanto secundário mundo dos homens, enquanto o direito divino, a "lex aeterna", tinha absoluta primazia, como própria da vida eterna, restringindo e controlando a lei positiva. 

Santo Tomás de Aquino, por outros caminhos, transformou o direito positivo, o direito humano, em implemento do direito eterno, do direito natural ou do direito divino. O encaminhamento das vidas humanas, no tomismo, efetiva-se pela lei divina (lex divina), revelada nas Escrituras, no Velho e no Novo Testamento, ao passo que a lei humana (lex humana) era a última espécie de lei, interpretada por Santo Tomás como "um ordenamento da razão para o bem comum, ditado e promulgado por quem tenha a incumbência de cuidar da comunidade" (TOMÁS DE AQUINO, apud Bodenheimer, p. 39).  Da mesma maneira que Aristóteles, Santo Tomás encontrou a justiça distributiva e a justiça comutativa (corretiva), atribuindo à justiça distributiva uma igualdade proporcional. Mesmo no século XVI, Francisco Suarez glosava a concepção tomista de direito natural, ao defini-lo: "O direito natural é aquela forma de direito que existe dentro do espírito humano, para que o bem possa ser distinguido do mal" (SUAREZ, apud Bodenheimer, p. 44). 

De modo geral, portanto, também na era medieval a lei e o direito posicionavam-se bem acima da vida social, econômica e política. 




Direitos e universalidade moderna



Os Períodos Moderno e Contemporâneo mantêm a mesma procura de universalidade, mas têm lá suas escolhas específicas. 

Jean Bodin, no século XVI, considerava o direito como expressão divina da bondade e da razão, classificando-o de natural e humano. O direito natural, para Bodin, era justo e equânime, presente em todos os seres racionais desde os princípios da humanidade, ao passo que o direito humano originava-se das necessidades imediatas e do sentido de utilidade das pessoas. Na República, Bodin igualmente fazia a distinção entre direito estatutário (de um Estado) e direito comum a todos os seres humanos (o jus).

No século XVII, Hugo Grócio descobriu de novo no estoicismo um direito natural secularizado, leigo, sem subordinação eclesiástica, mas - é bom que se diga - isso significava que o governante se prendia a esse direito natural apenas por meio da consciência. Em seus termos: o direito natural tinha o sentido de "um ditame da reta razão, que nos mostra que um ato, conforme esteja ou não em conformidade com a razão natural, contém em si mesmo uma qualidade de baixeza ou de necessidade moral" (GRÓCIO, apud Bodenheimer, p. 49). Logo, em Grócio, a justiça acabava sendo a decorrência da vontade e da força de quem podia produzir leis. 

Além disso, o século XVII assistiu a casos modelares, dos quais podem ser assinaladas as noções de John Locke e de Samuel Pufendorf, a respeito do direito natural. 

Locke apontou o direito natural de autoconservação do homem como a base da constituição, da deliberação do povo e da legitimidade da legislação positiva, que representava para ele a maior parte do direito. à lei moral na sua faculdade de eleger ou de rejeitar. 

Jean Jacques Rousseau (1712-1778) reputou racional a vontade de cada indivíduo. Se todos os homens têm uma vontade racional, a vontade geral revelava tais vontades individuais, no ato de legislar. Expunha Rousseau no Contrato social: a vontade geral "é sempre constante, inalterável e pura, mas encontra-se subordinada a outras que a sobrepujam" (1973, p. 124). O que quer dizer: a vontade geral contém algum interesse particular, embora ela se apresente em todos os indivíduos e constitua a essência das consciências individuais. E ainda explicava Rousseau: "Mesmo quando vende seu voto a peso de dinheiro, não extingue em si a vontade geral - ilude-a.  A falta que comete é mudar a natureza da questão e responder coisa diversa daquilo que se lhe pergunta, de modo que, em lugar de dizer, com seu voto, `é vantajoso para o Estado´, ele diz ´é vantajoso para tal homem ou tal partido que seja aprovada tal ou qual proposta´" (idem, 124). 

Havia, pois, na obra de Jean Jacques Rousseau simultaneamente a vontade transcendente e racional. Para ele, a verdadeira lei era sempre constituída de regra geral, que todo governo deveria saber como consegui-la. 

O povo seria o autor das leis e submeter-se-ia a elas, na condição de vontade geral e de norma geral. Assim discorreu Rousseau: "Já disse não haver vontade geral visando objetivo particular. [...]  O povo, por si, quer sempre o bem, mas por si nem sempre o encontra. A vontade geral é sempre certa, mas o julgamento que a orienta nem sempre é esclarecido" (idem, 60, 62). Ao tratar da lei e de sua divisão, Rousseau analisou as leis políticas ou fundamentais, as leis civis, as leis criminais, reparando, porém, que a essas três espécies de lei ajuntava uma quarta: "a mais importante de todas, quão se grava nem no mármore, nem no bronze, mas nos corações dos cidadãos" (idem, 75). 

Acreditando nisso, Jean Jacques Rousseau afirmou categoricamente que a democracia apenas poderia subsistir em pequenas comunidades, pois ela não adotava o princípio da representação

A universalidade com relação ao direito sucedeu de igual forma nos estudos de Immanuel Kant (1724-1804), que distinguia a razão pura e a razão prática, a observação e  a ação, o fenômeno e o númeno. Kant tinha em conta que o ser humano não demonstrava empiricamente ser dotado de princípios gerais de moralidade e de direito, buscando assim descobri-los nos deveres apriorísticos emanados da razão. 

O direito, de acordo com Kant, localizava-se no campo da razão prática, que se fundava na liberdade e na autonomia do homem e de sua ação.  Não se realizando como sistema de direito, o direito só se realizava por meio de princípios integrados ao domínio da moral. Em A metafísica da moral (Fundamental principles of the metaphysic  of morals), Kant reparava: "Desde que o conceito de lei é puro, mas está orientado para a prática, isto é, para aplicação a casos que ocorrem na experiência, um sistema metafísico de Direito teria de tomar em consideração a multiplicidade de aspectos empíricos desses casos" (KANT, apud Friedrich, p. 144). 

Na obra de Kant, a lei moral tomava a forma de imperativos categóricos e impunha procedimentos de acordo com a própria lei universal. Na expressão kantiana: "Uma vontade livre e uma vontade sujeita a leis morais vêm a ser a mesma coisa" (KANT, apud Bodenheimer, p. 79). Já a lei jurídica abrangia o princípio da igualdade formal, perante a qual todos são independentes e senhores de si mesmos. Daí ter conceituado o direito como "a totalidade das condições sob as quais a vontade arbitrária de um pode coexistir com a vontade arbitrária de outro, consoante uma lei geral de liberdade" (idem, 79). No kantismo, a rigidez da universalidade e do formalismo terminou por desconhecer possíveis correções ou alterações no direito positivo por meio da equidade. 

Embora diferentemente de Immanuel Kant, o direito para Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) do mesmo modo pôs a lei dentro da estrutura moral, mas a ética e a filosofia do direito compunham uma unidade. Tanto a lei e o Estado quanto a ética reproduziam o desenvolvimento histórico, por sua vez a revelação de um espírito nacional, parte do espírito universal. A ideia de espírito universal constituía a liberdade, que era a meta buscada pela realização dialética do espírito universal na história e está dentro da lei. 

Consoante Hegel, a ética consistia na materialidade da norma, enquanto o Estado, como a própria concretização da ética e da norma, consistia na comunidade ética. Então, a lei procedia da vontade racional e do consentimento, devendo assim ser declarada lei. Na formulação de Hegel: "O direito e a lei tornam-se, mediante tal determinação, direito positivo" (HEGEL, apud Friedrich, p. 152). 

Se a construção estatal da teoria política, imaginada por Hegel, insinuava endeusamento do Estado, tão sonhado, elogiado e visado pelo pensamento alemão, a teoria do conhecimento proposta por ele com base em textos fragmentados de Heráclito de Éfeso, mostrava outra coisa. Para ele, o pensamento não consistia numa sequência de quadros fixados na parede, e sim o movimento transfigurado no pensamento, uma dialética do concreto no pensamento, na qual a verdade é o Todo, das Wahre ist das Ganze (HEGEL, apud Menezes, D., p.21).  

Portanto, mesmo com essa breve sinopse, é possível dizer que não oferece muita dificuldade concluir que os períodos moderno e contemporâneos têm recorrido insistentemente à universalidade em matéria de direito e de justiça, apesar da obstinada atuação do relativismo em quase todas as práticas jurídicas




Direito social e política social: a totalidade necessária



Talvez se deva evitar censura excessiva a muitos desses casos de universalidade de direitos, aceitando com moderação o parecer de Edgar Bodenheimer a respeito dos juristas clássicos do direito natural: "Ignorando a história e concentrando os seus esforços na descoberta de um sistema ideal de direito e de justiça, eles  realizaram uma tarefa superior, na sua significação social, aos esforços desenvolvidos pelos simples historiadores do direito" (idem, 73; cf. 27-28, 40, 60, 70).

PORÉM, É INEVITÁVEL RECONHECER QUE, NO CAMPO DOS DIREITOS, O RELATIVISMO, O CETICISMO, O EVOLUCIONISMO, O UTILITARISMO, O POSITIVISMO JURÍDICO, O POSITIVISMO ANALÍTICO, O POSITIVISMO SOCIOLÓGICO, O PRAGMATISMO, O EMPIRISMO RADICAL BASEIAM-SE NA REITERAÇÃO CANSATIVA, E ÀS VEZES SOFISTICADA, DE PRESSUPOSTOS VAGOS E INSUFICIENTES. COMO SE OBSERVOU ANTES, TAIS PRESSUPOSTOS FAZEM DAS DECISÕES JUDICIAIS VERDADEIROS ATOS DE IRRACIONALIDADE, CERTAS VEZES ELIMINANDO A JUSTIÇA EM NOME DO NIILISMO DE VALORES.

SEM JUSTIÇA E SEM DIREITOS, A POLÍTICA SOCIAL NÃO PASSA DE  AÇÃO TÉCNICA, DE MEDIDA BUROCRÁTICA, DE MOBILIZAÇÃO CONTROLADA OU DE CONTROLE DA POLÍTICA, QUANDO CONSEGUE TRADUZIR-SE NISTO.  

DE OUTRA PARTE, A UNIVERSALIDADE DOS DIREITOS TEM GERADO ONTOLOGIAS APARENTEMENTE SEM SEM SOCIEDADES, VALORES E ÉTICAS SEM RELAÇÕES SOCIAIS, FORMALISMOS EMPEDERNIDOS, ASSENTADOS NA PREEXISTÊNCIA DOS PRINCÍPIOS E NO APRIORISMO DAS LEIS. 

De modo geral, os direitos têm padecido da eliminação das mediações responsáveis por suas maneiras de ser e de existir, omitindo-se as negatividades e consequentemente seus movimentos. Como produto da sociedade, os direitos têm sofrido a ação da busca do imediato, da direção única, da naturalização, da homogeneidade, mas sobretudo têm sofrido da falta de mediações

Georg Lukács desenvolveu esse assunto, muito examinado na obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel: "[...] seria totalmente falso supor que os objetos da atividade cotidiana sejam objetivamente, em si, de caráter imediato. Ao contrário, existe somente a consequência de um ramificado, múltiplo e complicado sistema de mediações que se complica e ramifica cada vez mais no curso da evolução social" (1966, p. 44). Para ele, o cotidiano, visto como imediato, traz em si o mediato. Assim: 

"[...] se o conhecimento e a ciência não surgissem das questões estabelecidas pela cotidianidade, se esta não se enriquecesse constantemente com os resultados que produzem aqueles, nem se alargasse e se aprofundasse com eles, então a cotidianidade perderia precisamente seu verdadeiro traço essencial, o que faz dela a fonte e a desembocadura do conhecimento na ação humana" (LUKÁCS, 1966, p. 71-72). 

HÁ RELAÇÃO ENTRE O SINGULAR, O PARTICULAR E O UNIVERSAL (ISTO É, ENTRE SINGULARIDADE, PARTICULARIDADE E GENERALIDADE), E SEM ESSA RELAÇÃO NÃO SE PODE ENCONTRAR MEIOS DE ULTRAPASSAR, NO CASO COM RELAÇÃO AOS DIREITOS, OS LIMITES DO SINGULAR, DE UM LADO, E DO UNIVERSAL, DE OUTRO. DESLIGÁ-LOS É DESLIGAR A TOTALIDADE DO HUMANO. O PARTICULAR CONSTITUI A MEDIAÇÃO NECESSÁRIA ENTRE O SINGULAR E O UNIVERSAL, NÃO SENDO APENAS ELO ENTRE ELES.

Os campos dos direitos e da política social não se apresentam diferentemente. Como realizações sociais, são seres singulares e seres universais, que se desenvolvem por intermédio de particularidades históricas e por mediações. 

Essas particularidades históricas impõem inicialmente o reconhecimento das determinações de espaço e tempo, assim como as mediações (também particularidades) nos campos dos direitos e da política social tornam obrigatória, por exemplo, a crítica da gênese do formalismo e da burocracia judiciais, do estamento jurídico (incluindo juízes, promotores de justiça e advogados), da natureza das sentenças, do funcionamento do processo legislativo, do tipo de dominação política e econômica etc., como produtos de certa sociedade. 

NA REALIDADE, NÃO EXISTE DIREITO SEM SUA REALIZAÇÃO E SEM SUAS MEDIAÇÕES.  DO CONTRÁRIO, OS DIREITOS E A POLÍTICA SOCIAL CONTINUARÃO PRESA DA LETRA DA LEI IRREALIZADA, DO DIREITO POSITIVO, DO NIILISMO DE VALORES; OU ENTÃO DO DIREITO NATURAL, HISTÓRICO OU NÃO, DO APRIORISMO DOS PRINCÍPIOS E DAS LEIS, QUE ESTÃO SEMPRE ONDE NÃO SÃO ESPERADOS. 

O SINGULAR E O UNIVERSAL NÃO SE CUMPREM SEM O PARTICULAR, SEM A TOTALIDADE DO HUMANO, NEM CONDUZEM À EMANCIPAÇÃO HUMANA. 
 




(Cf. Vieira, Evaldo - Os direitos e a política social - São Paulo: Cortez, 2016, Capítulo I).