domingo, 17 de fevereiro de 2019

TOLSTOI SOB SUSPEITA - 1998, 2019



De quando em quando a figura de Leon Tolstoi (1828-1910) vai à memória de algumas pessoas e às páginas de uns poucos jornais. Lembram-se de suas obras, de Guerra e Paz, de Ana Karenina, de Ressurreição, de A Felicidade Conjugal, de A Morte de Ivã Ilitch, de Sonata a Kreutzer, dentre outras, além de destacar suas crises e contradições pessoais - quem não as tem? É bom recordar que Tolstoi também viveu conflitos familiares, incoerências teóricas e até acabou excomungado. 



Fala-se em escritor genial, repete-se incessantemente que Tolstoi e Dostoievski foram os maiores escritores russos, num país onde existiram também no mesmo século autores como Gogol, Tourguéniev, Tchékov e Gorki, mencionando uns poucos. 




Os adeptos da plena paz social têm em Tolstoi um pensador suspeito por suas manifestações igualitaristas. Ele, além disto, não fica bem com os progressistas dogmáticos por seus desvios místicos. Muito menos agrada os rígidos cristãos que não irão apreciar um excomungado. 




A reinterpretação da obra de Leon Tolstoi pode representar belo exemplo das identificações ideológicas de vários grupos sociais. Os discípulos da absoluta paz social, isolando os perigosos arroubos igualitaristas, amarão deveras a imagem do "gênio sem paz", a gosto do individualismo decaído. Como pessoas, os gênios podem afligir-se, e isto encerra delicioso sabor de crise existencial, tão em moda em épocas de instabilidade social. 




Aos amantes da crise particular, Tolstoi expõe suas desavenças com a Condessa Sofia, a esposa que copiou à mão Guerra e Paz, por cinco vezes.  que o impedia de doar suas propriedades, além de exibir o trágico quadro de sua morte, na estação ferroviária de Astrapovo, quando o velho Tolstoi viajava sem rumo, vestido de simples camponês. 


Depende do critério. Uns preferem frases de Tolstoi, como a que principia o romance Ana Karenina: "Todas as famílias felizes se parecem, as famílias infelizes são infelizes cada qual ao seu modo".
 Outros, não muito ligados a viagens metafísicas, talvez achem que pensar muito e ler livros acabam por dar calos nos pés e na cabeça, causando a loucura prematura ou o desassossego interior. 



Os progressistas dogmáticos, de sua parte, sempre tacham de contradições de aristocrata suas elucubrações místicas. É inegável que nem todos pensam assim. O próprio Leon Trotsky (1879-1040), na obra Minha Vida, reporta-se a ele:

"O Santo Sínodo excomungou Tolstoi em fevereiro de 1901. O decreto do sínodo foi publicado em todos os jornais. (...) E essa gente (os metropolitas barbudos e encanecidos e as outras colunas do Estado) exigia, do grande artista realista que era Tolstoi, que ele acreditasse numa concepção sem fecundação seminal e na transmissão do Espírito Santo  pelos pães ázimos". 
 Acima da religiosidade, Trotsky descobre em seus escritos não somente elevada criação estética, como ainda valioso repositório de conhecimentos da vida russa. 



Tolstoi é o primeiro grande edificador da narrativa épica, especialmente em Guerra e Paz, em que os elementos existentes na memória popular fornecem a essência da narrativa. Até em livros predominantemente assinalados com ideias místico-populistas, concede autorrealização aos personagens: eles seguem a própria sorte, assumem seus aspectos determinantes. Os personagens fazem seu destino. 




Interessa-se na verdade em contagiar o leitor. Em O que é a Arte?, Tolstoi obstina-se neste projeto estético, argumenta e doutrina: 

"A arte tem como objetivo contagiar os homens com o sentimento experimentado pelo artista." 
 E complementa depois:
"A obra de arte verdadeira anula na consciência de quem a percebe a distância entre ele mesmo e o artista, e não somente entre ele mesmo e o artista, mas ainda entre ele mesmo e todos os homens que percebem essa obra de arte. É nessa libertação do indivíduo de seu isolamento em relação aos outros que está a principal força de atração e a principal propriedade da arte."
 Reforça em seguida a afirmação fundamental:

"Mas o poder de contagiar não é somente o traço incontestável da arte - o grau desse poder é o único critério do valor da arte. Quanto maior for o seu poder de transmissão, maior será a qualidade artística da obra, sem levar em conta seu conteúdo, isto é, qualquer que seja o valor dos sentimentos que ela expressa."
Em geral, os trabalhos de Tolstoi mais conhecidos são os romances, as novelas, as reminiscências, representando apenas parte de suas obras. Ele destina muito da energia criadora à educação dos camponeses e ao teatro sobre suas crenças principalmente religiosas.  Aos interessados por coisas do povo, com que se identifica nas vestimentas, na labuta e nos infortúnios, Tolstoi lega o conselho:

"Se queres ser universal, fala da tua aldeia."
A  educação, para ele, brota da vida russa, embebida dos valores culturais do país e governada pelo espírito crítico, pela enorme vontade de mudar as vigentes condições de existência. 
Ao propor que "somente uma personalidade livremente desenvolvida e armada de informação e conhecimento científico pode modificar a vida".
Tolstoi repele toda censura e todo cerceamento de novas ideias. Imagina a escola sem notas e sem diferenciação de classe, centrada no aluno. O aprendizado se processa por meio da experiência, funcionando a sala de aula como uma espécie de laboratório. 



Os preceitos educacionais de Tolstoi dão relevo ao desempenho do professor, que deve atender à personalidade dos alunos e ver na educação o processo contínuo e a base do esclarecimento e da civilização. Eles também dão relevo à universalização da cultura e à generalização das atividades educacionais a todas as pessoas, incluindo os adultos. Para Tolstoi, o saber não pode ser propriedade da minoria; as pessoas almejam a verdade e um melhor modo de vida, o progresso humano procede do autoexame e do amor à humanidade, que transponha o sentimento de raça, de nação e de civilização.




Além de teorizar a educação, Tolstoi monta escola experimental e edita jornal educacional. Empenha-se nesta fase de sua vida em tornar melhor a situação dos servos recentemente emancipados na Rússia.




Seu populismo de cunho místico leva-o a formular uma concepção de História que supera as proposições individualistas de Thomas Carlyle (1795-1881), segundo as quais os heróis fazem a história, e os desmandos fatualistas do positivismo e do neopositivismo. O romance Guerra e Paz revela em várias passagens suas meditações sobre a História. No prefácio, denominado Algumas palavras sobre "Guerra e Paz", e na Segunda parte do epílogo da obra,  Tolstoi se demora na discussão da substância da investigação histórica.




Criticando terminologia e métodos históricos, Tolstoi patenteia questões fundamentais da Teoria da História, atribuindo-lhes respostas quase sempre metafísicas e insuficientes, mas fazendo sobressair certos estorvos presentes no estudo da condição humana. 




Para Tolstoi, a História é regida por leis, impossíveis de serem conhecidas e, assim, inalteráveis. Admitindo, de um lado, que o processo histórico se funda na ação do povo, crê, de outro lado, que o processo histórico se subordina à fatalidade ou, 


em suas palavras, à "existência de uma lei eterna que preside os acontecimentos." 
Isaiah Berlin analisa atentamente tais ideias e elucida aspectos delas, na obra The Hedgehog and the Fox - an Essay on Tolstoy´s View of History, publicado em Londres, em 1953.  Tolstoi recusa a história dos homens eminentes e dos homens poderosos, as chamadas "histórias universais", " histórias culturais" e "histórias científicas", tão a gosto dos séculos XVIII e XIX, e por ele desconsideradas. O ponto capital de seu pensamento volta-se para o dilema de harmonizar a liberdade humana com o determinismo histórico. 



Tal dilema em nenhum momento passa despercebido por Tolstoi. Longe disso, é sua indagação constante, de maneira que comenta claramente:

"Parece irredutível a contradição: estou certo, ao executar um ato, de ter livre-arbítrio; mas se considerar meu ato como participação do conjunto da vida da humanidade (em sua significação histórica), devo concluir que era predestinado e inevitável. Onde esta o erro?"
Nem por isto Tolstoi atenua sua crítica aos estudos históricos. Afirma ele:

"Todas as obras dos mais modernos historiadores, desde Gibbon até Buckle, apesar de sua aparente divergência e da aparente novidade de suas concepções, baseiam-se em dois postulados definitivos. Em primeiro lugar, o historiador descreve a atividade dos indivíduos, que, na sua opinião, conduzem a humanidade. Um, só considera como tais os monarcas, os grandes generais, os ministros. Outro, além dos monarcas, inclui os oradores, sábios, reformadores, filósofos e poetas. Em segundo lugar, é conhecido do historiador o objetivo para o qual a humanidade é dirigida. Para um, esta é a grandeza do Estado romano, espanhol, francês. Para outro, a liberdade, igualdade, a civilização de certa espécie, de um pequenino recanto do universo, chamado Europa."
Tolstoi carrega na censura a outras compreensões da História, para, em seguida, oferecer sua opinião, em si improvável na prática, mas notável na formulação. 

Graceja ao notar que a "estranheza e comicidade destas respostas" (dadas pelas histórias dos homens eminentes e dos homens poderosos, pelas "histórias universais, culturais e científicas") provêm de que a história moderna é como um surdo que respondesse a perguntas que ninguém lhe fizera."
E em outro passo ele firma sua base de interpretação: "A única noção capaz de explicar o movimento dos povos é a de uma força igual ao conjunto desse movimento." 

O ARTISTA TRANSFIGURADO EM PROFETA 

Está claro, e é preciso que se diga logo: as incoerências de Tolstoi são as incoerências de nobres progressistas de sua época na Rússia.  Mas se é verdade que os homens valem pelo que fazem e não pelo que dizem, Tolstoi agiu no sentido de transformar o comportamento dos homens e assim alterar os rumos da História, mesmo quando afirmava a primazia da lei eterna para ela. 

A religiosidade de Tolstoi conduz à necessidade de criar nova religião, principalmente após ter sido excomungado. Busca a fé do homem simples, sua universalização e sua aplicação a todas as épocas. Acha religião nos livros de Literatura, louva o amor ao próximo, revelado nas narrativas de Charles Dickens, de Victor Hugo e de Fédor Dostoievsky, declarando sobre este assunto:
"As melhores obras de arte de nossa época transmitem sentimentos religiosos que incitam à união e à fraternidade entre os homens." 
Sua nova religião consiste no retorno ao cristianismo primitivo. Filia-se ao regressismo conservador, ainda mais se atentar-se para sua pregação visando a recobrar a inteireza dos costumes e das crenças dos cristãos primitivos. Imagine tal fato na Rússia Tzarista, em situação revolucionária.

O livro O Trabalho Segundo a Bíblia, ditado Timóteo M. Bondareff e redigido por Leon Tolstoi (pois Bondareff era camponês analfabeto), menciona o diário de Tolstoi onde ele se explica:

"A conversação sobre a divindade e a fé me levou a uma grande ideia para a realização da qual  estou pronto a consagrar todos os meus dias. Tal ideia é a fundação de nova religião, correspondendo ao nível do desenvolvimento dos homens, a religião do Cristo, mas libertada do dogma e dos mistérios; uma religião prática, não prometendo os bens da vida futura, mas dando a felicidade aqui mesmo".

Diante de condições sócio-históricas adversas e da burocracia eclesiástica, tal religião não medrou. Não poderia medrar em situações em que seus discípulos estão submetidos aos ditames burocráticos. 



Talvez a mais significativa contribuição de Tolstoi, em suas heresias, encontre-se na doutrina da estrita defesa da dignidade humana perante o Estado. O naturalismo de J.J. Rousseau permanece em Tolstoi. O reformismo social de John Ruskin igualmente muito o inspirou. Sobretudo as diretrizes da desobediência civil, elaboradas por Henry David Thoreau, compõem as bases da atuação de Tolstoi.




No ensaio Desobediência Civil, publicado pela primeira vez em 1849, publicado pela primeira vez em 1849, Henry David Thoreau diz:


"Aceito calorosamente o lema: "O melhor governo é o que governa menos", e gostaria de vê-lo aplicado

Este fragmento do ensaio de Thoreau dá a impressão de que desconhecia as dificuldades da realização de suas ideias. Não é verdade, ele próprio afirma, que a imediata ausência de governo era inviável, embora fosse inadiável um governo melhor. Seu Pensamento dirige-se a outro rumo: 

"Não é desejável - escreve Thoreau - cultivar pela lei tanto respeito quanto pelo certo. A única obrigação que tenho o direito de assumir é a de fazer em toda ocasião o que eu julgar certo".

Tolstoi  assenta em tais conceitos expostos por Thoreau as campanhas contra a Igreja Ortodoxa Russa e contra o alistamento militar na Rússia. 



Das experiências de Tolstoi, a contribuição mais marcante reside nas táticas e no ideário de Mohandas Gandhi. Este extrai das vivências e do pensamento de Tolstoi as justificativas essenciais às suas lutas em defesa dos indianos na África e à libertação da Índia, então dominada pela Grã-Bretanha.

Note-se o que assevera Gandhi:


"Uma lei injusta é uma espécie de violência. Prender alguém por causa da infração dessa lei injusta é, ainda mais, ato de violência.   Ora, a lei da não-violência declara que se deve resistir à violência não por oposição violenta, mas pela não-violência..."

Tudo é muito semelhante, como se verifica em passagem da carta de Tolstoi remetida a Gandhi, em 7 de setembro de 1910, pouco antes da morte do escritor:

"O perigo consiste em se julgarem autorizados a defender os seus interesses com a violência, a retribuir golpe com golpe, e a recuperar pela força o que havia sido arrebatado pela força..."

Em outro escrito, The Kingdom of God is within You, Tolstoi explicita ainda mais suas ideias:

"Quando  um governo é derrubado pela violência e a autoridade passa para outras mãos, essa nova autoridade não será de modo algum menos opressiva do que a anterior. Pelo contrário, obrigada a defender-se de seus inimigos exasperados pela derrota, será ainda mais cruel e despótica  do que a sua predecessora, como sempre tem acontecido  em período de revolução...Seja qual for o partido que ganhe a ascendência, será forçado, para introduzir e manter o seu próprio sistema, não somente a se servir de todos os métodos anteriores de violência, mas também a inventar outros novos".

O princípio  da não-violência  firmara-se e o próprio Gandhi, ante uma pergunta referente à sua dívida com Tolstoi, responde:

"É certo que lhe devo muito e recorro às suas luzes que lhe devo muito e recorro às suas luzes como um dos meus mestres".

Apesar da gênese místico-populista de seus preceitos, Tolstoi desenvolveu formas de resistência não-violenta e fixou o primado da integridade individual, mostrando que o homem deve viver mais humanamente e menos patrioticamente, numa época de nacionalismo exacerbado diz ele:

"A vida é um todo e você não contém senão uma de suas parcelas. E somente nesta parcela que está em você, pode melhorar ou viciar, acrescer ou diminuir a vida. Melhorá-la você só pode, suprimindo as barreiras que separam a sua vida da dos outros seres vivos..."

Em  tudo, pode transparecer humanismo passadista ou metafísico, como se deseje. Em tudo, há mensagem de resistência e de alento, neste mundo desorientado pelo ímpeto de vontade de poder. Aos exigentes, fica a lembrança de que Leon Tolstoi viveu sua crença, relegando aos interessados o comodismo apropriado a um conde latifundiário, que também construiu extraordinária obra literária para, em seguida, rejeitá-la.


(Cf. VIEIRA, Evaldo. Poder político e resistência cultural, 1998, 2019, cap. 2)