sábado, 26 de abril de 2014

Classe Média

Há alguns meses atrás, eu caminhava pela calçada em São Paulo, passando diante da saída de automóveis de um banco. Um carro que deixava o estabelecimento quase atropelou um transeunte. Espontaneamente o quase atropelado revidou: “Compra o carro à prestação e quer ainda me matar!!” O motorista saltou do carro e por pouco não praticou um homicídio doloso, só porque o outro disse que ele pagava prestação. Decerto o quase atropelado se lembrou da “filosofia de traseiro” de caminhão, que prega:“ É velho, mas está pago”.
Não é fácil saber o que significa classe média. Os anglo-americanos estão atentos à qualidade da residência, das propriedades, dos automóveis, dos fundos bancários e eles fazem aquelas perguntas comuns aos cadastros de bancos, isto para quem infelizmente conhece. Quantos quartos têm a casa? Quantos banheiros existem (é importantíssimo!)? Se os banheiros estão revestidos com azulejo até o teto ou não; se possuem peças de prata. Os econometristas, também conhecidos como os “discípulos, os meninos de Chicago e Michigan”, grandes especialistas nos relatórios e agendas das Agências Internacionais de Financiamento, como Banco Mundial, FMI, BIRD, etc., criaram tabelas referentes às classes médias de determinado país ou região. Essas tabelas, também utilizadas pelas corporações econômico-financeiras, definem classes sociais pela renda familiar, classificadas em classe A, em classe B, C, D, F, G, H, I, etc. A classe A consome mais do que a B, e a B consome mais que a C, e assim por diante. Tal classificação não é muito diferente do jargão, agora um pouco esquecido, de estar no “primeiro mundo” (é coisa de “primeiro mundo”!), quando na Europa, América do Norte, Ásia, se encontram igualmente classes de primeiro, segundo, terceiro, quarto e último mundo.
É complicado dizer onde está a classe média. Muitos europeus acham que a classe social depende da soma dos prestígios de cada indivíduo. Uma pessoa pode ter elevadíssimo prestígio como profissional, baixíssimo prestígio como desportista, digamos médio prestígio como pai de família ou como empresário, e assim por diante. Daí se chega à conclusão de que tal pessoa situa-se na classe alta, alta alta, média, média média, baixa, baixa baixa... Porém, a mais refinada concepção de classe média é a de que ela não existe, é uma ficção, com a qual estou de pleno e fiel acordo.
Mas muitos querem saber qual é a sua posição social, seja para manter a própria arrogância, seja para avaliar sua discreta simplicidade. Ou por mera curiosidade, científica, vamos lá.Tanto me amolaram que comecei há muitos anos a pesquisar: o que poderia exprimir a classe média bem segura e convicta? Tentei diversas hipóteses para atingir uma conclusão científica. Qual o quê? Tive de apelar para a fantasia a fim de descobrir a tal classe média. Por fim, me tenho utilizado da seguinte formulação: “aquele que buzina no túnel pertence à classe média!” Isto, porque quer mostrar a buzina, ou melhor, que a buzina funciona, sendo ela nova ou velha. Porém a melhor e mais sofisticada explicação diz: “para a classe média nada há de estável”; melhor dizendo: “na classe média nada existe para sempre”.
Em certa ocasião, visitei um ex-aluno, que se achava bem de vida e com sucesso profissional. Vi seu carro maravilhoso, no tamanho, cor, acessórios e outras coisas mais. Exclamei entusiasmado: “que lindo, onde você conseguiu isto?” “Ah, disse ele, já está superado. Saiu um carro agora do tipo WXXX, que é completo, até ri para as pessoas. Quando puder, vou buscá-lo. Ainda não há igual”. Perguntei se o atual não está novinho. “Claro, respondeu, mas o outro só falta falar”.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

31/03/64: o dia em que tudo mudou

Caminhei até o ponto de ônibus, poucas pessoas na rua. Existia um clima de golpe militar tanto nas televisões, nas rádios e nos principais jornais (capitaneados pelo “O Estado de S. Paulo” e o “O Globo”), assim como nas famílias católicas ou tradicionais. Nas televisões, políticos como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e alguns jornalistas, clamavam pela intervenção militar com a finalidade de evitar “um Brasil comunista”. Como disse, não vi revoltados nem comunista, nem sindicalista, nem ateu, nem trabalhador, só de vez em quando um camburão da polícia, um punhado de soldados da Força Pública (antiga Polícia Militar) e a Polícia do Exército cercando a sede do 2º. Exército, na Rua Conselheiro Crispiniano, em São Paulo.
Ao chegar à Faculdade de Direito, encontrei-a fechada, com aviso de suspensão das aulas. Conversei com colegas defronte da Faculdade, uns pasmos, outros satisfeitos, outros preocupados com os acontecimentos. De fato, o que ocorria para quem tinha esperança de construir sua vida dentro dos padrões até então imaginados, era sinistro, desastroso e ameaçador. Tudo, em nome do “combate aos comunistas”, bastante pulverizados em 1964, na realidade ocultando uma verdade que era fazer uma “ocupação branca” do país, em nome dos norte-americanos, no contexto da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética. Abusando da ignorância e da crença da população brasileira, e orientados pelo Departamento de Estado e pela Agência de Informação (CIA), ambos dos Estados Unidos da América, os ditos “defensores da democracia” (senadores, deputados, governadores e civis arrivistas) invadiram o gabinete da presidência da República em Brasília, no momento em que o presidente João Goulart ainda se encontrava em território nacional. Buscou-se um jurista da ditadura Vargas, Francisco Campos, de formação fascista, auxiliado por mais outro, Carlos Medeiros, a fim de instruir a sessão do Congresso Nacional para declarar vacância da presidência da República e redigir o denominado Ato Institucional N. 1, dentro das regras ditadas pelo general Castelo Branco e por Milton Campos. Desde o Estado Novo e a “Constituição Outorgada” de 1937, Francisco Campos se aprimorara em elaborar instrumentos de exceção, suprimindo direitos civis e políticos, que ele considerava desnecessários.
Logo depois, viajei para Taubaté, onde em meio a alegrias, tristezas e temores falava-se “oh, os militares tomaram o poder para acabar com a bagunça”, com a qual não me deparei naquele momento, apenas depois, tanto no aparelho estatal com a indisciplina militar, como nas ruas reprimidas à vontade, em defesa da lei e da democracia.  Imaginei que o desemprego poderia talvez diminuir, tamanha a quantidade de agentes e informantes contratados para vigiar seus compatriotas. Começava assim a ser construída “a democracia” de 31 de março de 1964. Naquele mesmo dia em Taubaté, fui até o prédio da antiga Escola Normal, na qual discursava o deputado federal do Partido Democrata Cristão, Plínio de Arruda Sampaio. Suas palavras exalavam esperança, acreditava ele que o assim chamado “dispositivo militar” do presidente Goulart, mais a indignação popular pelo desrespeito à Constituição Federal de 1946, resistiriam a desordem civil e militar. Qual o quê!
Resolvi que, após aquele dia, eu abandonaria, como fiz, meu projeto pessoal de atuar na diplomacia, bem como em qualquer profissão capaz de representar qualquer poder direto do Estado. Acho que me dei bem, não colaborei e não colaboro com nenhuma manifestação de cunho discricionário, nada de tirania. Minha convicção não foi em vão, nem meu 31 de março deixou de ensinar-me o preço de ditadura.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A eleição dos “homens bons”?


José de Alencar, o escritor brasileiro do século XIX, escreveu o romance “O tronco do ipê”, contando que o Barão da Espera, grande fazendeiro de café no Vale do Paraíba, exercia a posição de chefe político local, embora não ocupasse cargo nenhum. O Barão favorecia nas urnas seu amigo Conselheiro, a quem estava unido por laços de amizade e de compadrio, porque o Conselheiro era padrinho de sua filha. Em épocas de eleição, seus compadres e seus parentes votavam nos candidatos indicados pelo Barão, que por sua vez indicava os candidatos determinados pelo Conselheiro, seu amigo.
Não era a lógica das ideias, da religião ou da ética, e sim a lógica dos interesses dos grandes proprietários, o que de fato possuía valor. Ainda no romance “O tronco do ipê”, de Alencar, o Barão da Espera tinha um afilhado, destinado por ele a ser seu genro. Mandou-o à Europa para estudar, tornou-o “doutor” e não tardou a ser escolhido pelo Conselheiro como candidato à cadeira de deputado. Casado e deputado à Assembléia Geral, o genro foi viver na Corte, para exercer o cargo e não regressou mais. O Barão da Espera cuidava das propriedades, das lavouras e dos votos do eleitorado do genro, à medida que este representasse seus interesses. As flores do “genrismo”, do “compadrio”, “afilhadismo” mostravam o “homem bom”.
“Homens bons” eram como se chamavam os mandões locais no Brasil tradicional, ao longo da Colônia portuguesa e do Império brasileiro. Neste período, não existia prefeito nem presidente da Câmara, só existiam os “homens bons”. Eles representaram a origem do poder político e a primeira escola de políticos no país, gerando o que teima em funcionar (de modo diferente) até nossos dias: o “mandonismo local”. Convocavam-se todos os “homens bons” para elegerem os funcionários, deslocando para o Brasil a instituição portuguesa da Câmara Municipal, de acordo com as Ordenações Manuelinas.
Naquela época, o “homem bom” consistia no homem da família e do seu grupo familiar, como se diz “chefe de família”, transformado então em verdadeiro chefe de bandos armados, formados de escravos, agregados, afilhados, filhos, genros e mercenários. Eles compareciam às Câmaras Municipais para eleger seus representantes: no início, dois juízes ordinários e três vereadores, que iriam cuidar dos negócios públicos do lugar, por um tempo. A vontade do chefe local (o mandão) é que valia e não as idéias políticas.
Depois, quando a administração brasileira passou a exigir, com a finalidade de ocupar cargos em todo o território, o “mandonismo local” resistiu sob manto sempre elástico do diploma de bacharel em direito. Manto elástico porque ao bacharel em direito se seguiram o padre, o médico, o engenheiro, o farmacêutico, agrimensor, etc., principalmente o etc..
Em conversas amenas e bem intencionadas, em lugares de descanso e relaxamento, digamos com os amigos, perguntam-se às vezes por que o Brasil é tão diferente dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e dos países de tradição anglo-saxã. Melhor dizendo, para não ir longe: por que o Brasil e os países de tradição anglo-saxã são tão diferentes, por exemplo, na prática política e no funcionamento do judiciário.
Um dos motivos dessa diferença é que, nos países anglo-saxões, as localidades produziram do princípio da colonização em diante o direito local ( o “common law”, o direito costumeiro ou dos costumes), ao passo que no Brasil não há direito local, há direito do(s) mandão(ões) local (is). Uma das conseqüências fica por conta de não haver justiça local e sim práticas políticas temerárias e julgamentos demorados, de dez, quinze ou mais anos, chegando, muitas vezes, até os juízes, promotores e advogados dos casos falecerem.
Com a proclamação da República, a única igualdade estabelecida no país,  sempre aos poucos, foi o direito de votar e de ser eleito, menos o analfabeto. Assim mesmo lavrava e lavra a discussão dificílima de saber qual analfabeto: o quase analfabeto, o analfabeto essencial, o analfabeto de alma, o analfabeto funcional. Publicam-se livros e livros sobre analfabetismo. Ouvem-se os tecnoburocratas da educação, conhecidos às vezes como especialistas, que não se cansam de dar cursos e conferências. Como eu dizia a ele: pobre, Paulo Freire!
Desejo de servir à sociedade, espírito público, solidariedade social? São raríssimos como os diamantes negros, meros privatismos, meros interesses particulares, sobretudo num Brasil onde quase todos os empresários vivem de dinheiro público desde o início da industrialização no século XIX, havendo poucos empresários com capital próprio, cuja acumulação nasceu do trabalho deles. Se o possuem, não o utilizam, preferindo o dinheiro público, por isso muitos empresários adotam a especialidade de percorrer os corredores dos prédios municipais, estaduais ou federais. Um capitalismo sem risco!
Com o crescimento populacional, a custosa industrialização e a globalização econômica e cultural, a sociedade brasileira mudou um bocado. A desindustrialização, a massificação cultural, a alta natalidade da população pobre ou miserável, aumentaram as necessidades de emprego, saúde, educação e assistência social. Saúde e educação invariavelmente são as palavras de ordem, apesar de seculares: quando não se sabe o que fazer, basta dizer que vai lutar pela saúde, pela educação e pela habitação (às vezes pela natureza). No entanto, tudo ficou como antes, não se pode afirmar que ocorreu mudança de estrutura, porque, a cada melhoria num setor, aconteceram inúmeras pioras em outros setores. O emprego e assistência em geral (é suficiente olhar as rodoviárias e os prontos-socorros ou prontos-atendimentos) constituem as principais moedas eleitorais, dentre outras, nas campanhas. Dominam largamente o empreguismo e o assistencialismo. Como reclamava há muito tempo uma aluna, esposa de deputado federal: “Ele (o deputado) reclama de fazer serviço de despachante e não de deputado, mas paciência!
 Porém os antiquados mandões locais sumiram em alguns Estados, surgiram os dirigentes partidários, novos mandões locais. No caso dos partidos políticos, altamente burocratizados, mandões querem dizer direção partidária. Inexistindo na prática programa partidário a ser obedecido e existindo mesmo em algumas circunstâncias os partidos fantasmas, dentro de sua hierarquia os variados líderes realizam a gestão política e econômica, financeira, etc., etc.
Habitualmente a indicação de candidatos às eleições representa uma das tarefas da alta burocracia dos partidos políticos, que se orienta, aqui e lá fora, pela “lei de ferro da burocracia partidária”, ou seja: “quem está em cima não desce e quem está embaixo não sobe”. Tal qual na burocracia de outras atividades, no aparelho burocrático dos partidos políticos, aquele que atinge algum poder diretivo é sempre candidato a algum posto, se desejar, ou pode consagrar outro candidato qualquer, usurpando as vontades e os interesses da população. A maioria dos candidatos, como um antigo reitor de grande universidade, fala unicamente o que os ouvintes querem ouvir, conforme observa as vontades e as carências deles: segurança, educação, saúde, habitação, maternal, empregos, desempregos, mais indústrias, e daí para frente.
Entre os brasileiros, a participação política foi e é por demais reduzida. A indicação de candidatos pela hierarquia dos partidos, reais ou fantasmas, é mesmo muito mansa, com programa de eleição ou não, a exemplo do ‘confisco de boi no pasto”, no repetido cansativamente pelo candidato vitorioso a governador no passado. Há pouca preocupação com a vontade popular e seus interesses. Há muita preocupação com os interesses dos dirigentes partidários e dos eleitos. O ex-presidente Jânio Quadros, numa formidável confissão, disse certa vez que se elegia de uma forma e governava de outra.
A generosa confissão de Jânio preceitua que as pessoas mais valem pelo que fazem e menos pelo que dizem. É evidente que os brasileiros viverão melhor e mais felizes, aliás um direito fundamental, se votarem em quem na prática dos anos demonstrou de maneira clara e indiscutível ter posições políticas definidas, com espírito público, desejo de mudar essencialmente as condições de vida da maioria da população, repelindo comportamentos antiéticos e ilegais perante a lei.
O espírito da República significa votar em candidato que não seja escravo de suas ambições. Como se vê com facilidade, o eleitor que vota mal corre o sério risco de ser punido pelo seu candidato eleito. O caminho deve ser por aí, até que se estabeleça no Brasil o mandato revogável para o legislativo, ou coisa parecida, afinal o legislativo é o sustentáculo da República.