Política Social: Democracia e desafios da participação (entrevista)
Entrevista para a Revista Ser Social
(UnB)Entrevistado: Evaldo Amaro Vieira
Ângela Vieira NevesReginaldo Guiraldelli
1
- No campo da teoria social há
concepções distintas acerca da relação entre democracia e socialismo. Na sua
análise, a democracia seria um caminho necessário para a realização e
construção do socialismo?
RESPOSTA: Acho que sim, a
democracia é um caminho necessário para a construção do socialismo e, sem
democracia, o que historicamente existiu foram ditadura e capitalismo de
Estado. Resta saber qual democracia, porque nem tudo aquilo que tem sido
denominado de democracia conduz ao socialismo. A mera democracia formal (Estado
de Direito), como se fosse uma etapa eleitoral, apenas baseada numa lei
interpretada por juízes indicados e vitalícios, não leva à superação das
condições de classe e à coletivização da propriedade. Somente a democracia
capaz de superar as grandes diferenças entre as classes e de extinguir os
privilégios, torna possível o socialismo.
2
- Na sua análise, é possível, a partir
da disputa de hegemonia, construir uma forma de sociabilidade verdadeiramente
emancipada “por dentro” do Estado capitalista? O aprofundamento da democracia
pode contribuir para o redimensionamento do Estado, o fortalecimento das
políticas sociais e a efetivação dos direitos sociais?
RESPOSTA: Nunca fui adepto da falsa
“teoria de conquista de espaço” no interior das instituições, principalmente do
Estado. Nunca considerei séria a disputa de hegemonia apenas no interior da
burocracia estatal, porque me parece constituir antes ingenuidade ou ambição
pequeno-burguesas, como se a burocracia capitalista não enquadrasse o coração e
a mente das pessoas, que afinal estão submetidas aos valores e às práticas da
sociedade capitalista. Além disto, a “teoria da conquista de espaço” quase
sempre adota a implantação do socialismo de cima para baixo. Sem a maioria da
população trabalhadora, que caminhe para o socialismo (ou que nome receba), ele
não surgirá. Assisti aos resultados dessa teoria, em todas as profissões,
inclusive entre assistentes sociais. Na aula, estive com um aluno dedicado às
crianças e aos jovens abandonados, militante de longa data; no aeroporto me
deparei com o mesmo aluno vestido e comportando-se como burocrata muito bem
posto na vida, dizendo que tudo estava muito difícil, como se não fosse. É
juízo superficial chamar isso de oportunismo, é adesão sincera à ideologia da
ascensão social, tipicamente da pequena-burguesia. Nunca agirá de acordo com o
socialismo, que lhe tiraria os privilégios sociais e econômicos.
3
- É possível se falar em democracia em
uma sociedade baseada na divisão de classes, na sustentação da propriedade
privada e na exploração do trabalho?
RESPOSTA: Sim, pode-se falar em
democracia neste tipo de sociedade, já que no caso se destacam o formalismo
jurídico e o cumprimento da maioria das garantias fundamentais do indivíduo,
com políticas sociais bastante restritivas, como no caso dos Estados Unidos da
América, nos moldes do liberalismo conservador ou da democracia liberal. O
funcionamento real das garantias fundamentais do indivíduo pode oferecer
segurança pessoal e algum desenvolvimento social, embora a opressão permaneça
ou até cresça em função do mercado econômico. Essa mera democracia formal não
se destina ao socialismo, porque a economia de mercado alarga a desigualdade
social, dentre outras desigualdades.
4
- No Brasil, são observados avanços no
campo dos direitos de cidadania após o processo de redemocratização ocorrido no
final dos anos 1980 e ao mesmo tempo são implementadas medidas neoliberais que
incidem na contramão da garantia destes direitos. Como você analisa esse quadro
na atualidade?
RESPOSTA: O quadro no Brasil é
muito diferente em diversos aspectos. Ocorreu de fato o processo de
redemocratização? Ocorreu abertura política com certas garantias jurídicas e
sociais. Mas a dita redemocratização não mudou o aparelho de Estado. Os Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário não passaram por transformações essenciais,
e a legitimidade política, social e econômica está reduzida à simples eleição.
Não foram mudados a organização e o funcionamento das polícias e das forças
armadas, e não se suprimiu sequer a Justiça Militar, assegurando as justiças
especiais e corporativas, foro especial para determinadas pessoas nos tribunais
superiores, restando à maior parte dos brasileiros a justiça comum, a qual
deveria abranger todos. Os principais meios de informação, como televisão, rádio, jornal,
revista, etc., compõem monopólios que, durante a ditadura militar,
compartilhavam em muitas ocasiões seus interesses com os ditadores, porém agora
confundem seus objetivos com as liberdades públicas. Foram alteradas inúmeras
vezes a Constituição Federal de 1988 sem nenhuma consulta à população, a gosto
de cada um dos governos, da promulgação constitucional para cá. É possível constatar
que os direitos de cidadania, ou mesmo a concretização deles (realidades
diferentes), transformam-se em direitos essenciais. A transformação de direitos
de cidadania em direitos essenciais sucede quando os movimentos sociais atuam
com maior força e influência na sociedade e no Estado, impondo suas
necessidades e objetivos, alargando as exigências populares no Executivo, no
Legislativo e no Judiciário. Em caso contrário, com movimentos sociais
debilitados por qualquer motivo, sem reclamos objetivos ou com reclamos
simplesmente moralistas, os direitos sociais ficam limitados àquilo chamado,
com muito favor, de “políticas sociais neoliberais”, pois são na verdade certa
assistência aos miseráveis. É imprescindível lembrar que há movimentos sociais
de cunho nazifascista, ocupando o espaço perdido pelas ações populares. A dominação
social, a desigualdade e a penúria são inclementes no Brasil.
5 - Na conjuntura sociopolítica
brasileira atual, há possibilidade de uma coexistência da democracia
representativa e da democracia participativa?
RESPOSTA: Nos dias atuais no Brasil,
a coexistência da democracia representativa com a democracia participativa é
demasiadamente precária. Excetuando o descontrole da violência brasileira, que
exagera em excesso, a democracia participativa no mundo consiste em fator
preocupante para os governos, levando-os a modernizar mais a polícia do que
setores fundamentais da política social, como a educação e a saúde. Como
afirmava em palestras desde o princípio dos anos 1980, a derrocada do Partido
dos Trabalhadores desmontou grande parcela dos movimentos sociais defensores de
direitos sociais, desmontou grande parcela da esquerda ou até aqueles que
esperavam alguma melhoria de vida no país. E desmontou por quê? Lutou pelo
predomínio de seu programa, afastando sectariamente, cegamente, inúmeras propostas
alternativas até mais libertárias, servindo-se de milhares de militantes idealistas,
sem ter condições de fazer o que prometia, em nome da direção partidária
sindicalista e aventureira em muitas ocasiões. No momento, coexistem no Brasil
uma imperfeita democracia representativa (com enormes deformações de
representatividade, basta ver a composição por Estados) e o predomínio de
movimento social de caráter golpista, extremista de direita e ilegal.
6- Como você analisa as manifestações
que vem ocorrendo no cenário sociopolítico brasileiro nos últimos anos,
especialmente a partir de 2013?
No meu entendimento, presenciamos
em meados de 2013 um movimento popular em São Paulo principalmente, com alguma
organização sem burocracia, voltado para a conquista do “passe livre”. Tal
movimento popular foi sabotado por muitos partidos existentes, pelos governos e
pela imprensa patronal, que à maneira getulista o reconheceram, aceitaram-lhe e
desmobilizaram-no. Depois, se seguiram frequentes arruaças irracionalistas,
violentas e heterogêneas, lembrando às vezes as iniciais movimentações
pré-nazistas na Alemanha ou pré-fascistas na Espanha. Como comentou um
jornalista, se os membros dessas movimentações vissem mesmo a massa da
população, eles correriam para seus apartamentos e chamariam a polícia.
7
- A Política Nacional de Participação Social
(PNPS) foi duramente criticada por vários segmentos da sociedade brasileira e
considerada como um golpe à democracia. Qual sua análise acerca desse processo?
RESPOSTA: A Política Nacional de
Participação Social (PNPS) representa uma necessidade num país do tamanho e da
população do Brasil, com contradições e necessidades múltiplas. Porém como ser
aceita uma PNPS em país onde existem foro privilegiado na Justiça,
presidencialismo de coalizão, cargos vitalícios e efetivos, mandatos
irrevogáveis, etc.. Não existem mandatos revogáveis em qualquer instância
política, nem responsabilidade por indenizá-los em caso de mau uso; nem Justiça
com cargos temporários para julgar com rapidez. Distantes da população e
garantidos, os Poderes da República podem vislumbrar a PNPS como um golpe ao
maltratado Estado de Direito do Brasil atual.
EVALDO VIEIRA estudou direito,
ciências sociais e letras; é doutor em ciência política pela USP e professor
titular da FEUSP. Foi professor titular na UNICAMP e na PUC-SP; é tradutor,
colaborador em jornais, em revistas, em obras coletivas e autor de vários
livros, sendo o último deles denominado “A república brasileira – de Getúlio a
Lula (1951-2010)”.
Assistente social, mestre em
Serviço Social pela PUC-Rio e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Docente
do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política
Social da Universidade de Brasília (UnB).
Assistente social, mestre e
doutor em Serviço Social pela Unesp. Docente do Departamento de Serviço Social
e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília
(UnB).
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