sábado, 6 de agosto de 2016

DEMOCRACIA Evaldo Vieira - ed. 2009, 2016


A sociedade capitalista tem sido pródiga de ideologias a respeito do conflito entre liberdade e autoridade. Em qualquer sociedade historicamente moderna sempre ficou consignado o antagonismo entre homem e Estado: o homem em busca da conservação de sua vontade e o Estado pretendendo a uniformidade das vontades humanas e a confirmação incontrastável da sua força institucional. 

A oposição extremada entre liberdade e autoridade no século XVIII gerou especialmente ideais mais aprimorados de governo e de Estado, que são representados na democracia e estão presentes, sobretudo, na Revolução Francesa de 1789. Estes modelos de governo e de Estado são múltiplos, configurando democracias e não a democracia, mesmo se reconhecendo igual origem teórica para elas. A história contemporânea tem assinalado a existência de cada uma e também o atrito sucedido entre elas

Quanto às democracias, a obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) constitui o incessante manancial ao qual forçosamente se tem de recorrer. Seus escritos, mais do que guias das democracias, fazem ver a concepção democrática de mundo, com suas demarcações, sua complexidade e suas vicissitudes, de modo particular no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755) e no Do contrato social (1757). Diferente da ideologia do terceiro estado na Revolução Francesa de 1789, que se opõe à tirania dos reis, Rousseau sempre é contrário à tirania em si, ao propor a liberdade dos homens, independente de tempo e de lugar.  Inicia o Discurso sobre a origem da desigualdade... afirmando: "É do Homem que devo falar...". No pensamento de Rousseau e em suas preocupações se vai tocar um pouco, com reserva. 

No século XVIII novo tempo é aberto. Nasce o projeto de uma sociedade igualitária e homogênea, presididea pela razão natural e pela propriedade individual. Tal projeto se sustentou do declínio da religiosidade da vida, que aconteceu simultaneamente com o desaparecimento da sociedade baseada no status e organizada por meio da noção de "Estado". Em lugar de Deus e da Igreja, instalou-se a razão filosófica. O princípio do status foi substituído pelo individualismo, e a ideia de nação converteu-se em orientadora das ações humanas.

As relações entre a liberdade, a virtude e a razão formaram uma das convicções desse novo tempo principiado no século XVIII, concebidas como relações harmoniosas e tranquilas, embora o curso da vida logo desmentisse tal entendimento. Os conflitos daí originados agregaram-se aos conflitos decorrentes da propriedade privada, fundamento do mundo econômico que se evitou mudar inteiramente. Diante desse quadro conturbado, uns acreditaram no recurso do acerto e do erro para guiar os indivíduos nos caminhos da liberdade, da virtude e da razão. Outros, no entanto, deram preferência ao uso da violência contra aqueles que se recusaram ser livres, virtuosos e racionais, a partir de seus parâmetros considerados corretos. 

No começo dos anos de 1950, no livro As origens da democracia totalitária, alicerçado em várias dessas considerações expostas, J.L. Talmon estabeleceu a principal distinção presente no interior do campo democrático. Esta distinção tem consistido nas "diferentes atitudes ante a política".  A distinção, portanto, não está na afirmação ou na negação do "valor da liberdade", porque os democratas sustentam acima de tudo a importância da liberdade, mas eles mostram divergências a respeito de sua interpretação por causa das "diferentes atitudes ante a política". Em As origens da democracia totalitária, Talmon construiu uma explicação sócio-histórica da teoria democrática, das mais eruditas e renovadoras do assunto, partindo de seus indícios e acompanhando a segmentação entre democracia liberal e democracia totalitária. Sobre esta última ainda se estende em outra obra. Notem-se suas formulações acerca destas democracias, apoiadas no uso de tipos específicos a cada uma delas. 



DEMOCRACIA TOTALITÁRIA



Para J.L. Talmon, a democracia totalitária baseia-se "na suposição de uma verdade política única e exclusiva" admitindo "um só plano de existência: o político", que assim envolve toda a vida humana. Pensamentos e atos dos indivíduos recebem exclusivamente significado social, integrando determinada concepção de mundo e localizando-se na esfera da ação política. E a política vem a ser a aplicação desta concepção de mundo na organização da sociedade.

Para a democracia totalitária, a liberdade somente se torna verdadeira com a realização coletiva de um projeto ou de uma concepção de mundo, instituindo a situação de harmonia quase ideal ou mesmo ideal, aliás uma necessidade e um estímulo à ação.  Grande parte dos estorvos e das inconsistências da democracia totalitária procede da penosa conciliação da liberdade com um fim absoluto, representado pela harmonia idealizada. Na prática, resta saber se a violência vai desaparecer porque todos "aprenderam a atuar em harmonia", ou vai desaparecer porque "todos os antagonismos forma eliminados".  A propósito disto, J. L. Talmon não aventa a possibilidade de ambas, a ação harmônica e a eliminação dos antagonismos, aparecerem ao mesmo tempo. 

Se Talmon, por um lado, descobre dois caminhos diversos para a supressão da violência nos moldes da democracia totalitária, por outro encontra também duas manifestações divergentes de totalitarismo: o de esquerda e o de direita. O totalitarismo de esquerda toma, para ele, como ponto de partida o homem, sua natureza e sua salvação. Na realidade, dentro do universo do totalitarismo de esquerda, os fundamentos da natureza humana são constituídos pela bondade e pela perfeição, explicando-se por eles o emprego da força apenas com a pretensão de acelerar o progresso humano rumo à harmonia da sociedade. 

Em sentido contrário, o totalitarismo de direita indica, como ponto de partida, um ser coletivo, o Estado, a nação ou a raça. Para o totalitarismo de direita o homem é fraco e corrompido, condição capaz de transformar a força em instrumento constante na manutenção da ordem, levando-o a agir diferentemente de seu ser precário. 

Ambos os totalitarismos exercem a coerção motivada por causas divergentes, e de ambos resultam outras ideologias contrapostas de universalidade. O totalitarismo de direita despreza a humanidade entendida como soma dos indivíduos racionais, negando assim a universalidade dos valores do homem. Já o totalitarismo de esquerda se eleva a fé universal, sedimentado no princípio da capacidade unificadora da razão. 

Talmon não mostra claramente, no citado livro, a composição do que denomina de democracia totalitária. Inseridos no contexto do exame desta democracia, tudo leva a acreditar que os totalitarismos de esquerda e de direita constituem sua substância fundamental.

Se assim for, os elementos formadores da democracia totalitária estão sujeitos à crítica de relativismo exacerbado, como se à noite todos os gatos fossem pardos, porque o totalitarismo de esquerda não equivale ao totalitarismo de direita, no que diz respeito ao projeto para os homens.  E  se equivalessem em alguma coisa, não se apresentaria este ponto capital: a concordância no projeto humano. Tal discrepância pede demonstração na obra de Talmon, discriminando seus resultados ante a história e a realidade humanas, a fim de não difundir alteração e simplificação dos fatos e abuso na interpretação

Em que pese esse relativismo exacerbado, é aceitável admitir com Talmon a permanente continuidade da democracia totalitária sobretudo desde o século XVIII, e também sua respeitável receptividade social. No curso deste tempo a democracia totalitária tem convertido a razão e a vontade humanas em meios para atingir o fim supremo: a felicidade terrena, construída através de mudanças sociais. 

O mundo é este mundo e as propostas são absolutas. O conflito básico então se concentra no embate entre a liberdade dos homens e o ideal totalizador

Distante do absolutismo de um rei, cujo poder nasça do direito divino, ou de um tirano, cujo governo repouse sobre a fraude, a democracia totalitária recebe configuração particular a partir do século XX. Ela representa uma ditadura sustentada pela ideologia e alimentada pelo entusiasmo popular.

As distinções entre totalitarismo e autoritarismo passaram pela análise de variados estudiosos principalmente depois da Segunda Guerra Mundial, ganhando especial projeção na década de 1950. Numa obra desta época, Teoria da Constituição, Karl Loewenstein estabelece uma conceituação de regime autoritário, contrapondo-o ao regime totalitário. De acordo com Loewenstein, o termo "autoritário" refere-se muito mais à estrutura de governo do que à sociedade, porque o regime autoritário se concentra no controle político do Estado, não visando a dominar o conjunta da vida sócioeconômica de certo grupo, nem determinar sua vida espiritual. 

Nas próprias palavras de Loewenstein: "O conceito de "autoritário" caracteriza uma organização política na qual um único detentor do poder - uma só pessoa ou ditador, uma assembleias, um comitê, uma junta ou um partido - monopoliza o poder político sem que seja possível aos destinatários do poder uma participação real na formação da vontade estatal". Assim, o regime autoritário tolera a presença de outros órgãos dentro do Estado, próximo ao único depositário do poder, desde que eles se sujeitem a este, em caso de conflito ou não. 

A ideologia do regime autoritário, para Karl Loewenstein, não se apresente "consistemente formulada", nem é executada "em todas as suas consequências". Ela se restringe em grande parte a preservar e a justificar a forma instalada de poder, dando-a como expressão da tradição ou como a mais conveniente ao bem de todos. Anota ainda Loewenstein que historicamente a forma autoritária de governo "é encontrada, por um lado, no período de transição do absolutismo monárquico à democracia constitucional e, de outro lado, nesse processo regressivo do Estado constitucional à hegemonia do Poder Executivo, acontecido em nossa época".

A formulação de Karl Loewenstein a respeito do regime totalitário vale-se da noção de autoritarismo, tomando-a como elemento participante dele. O regime totalitário exibe técnicas de governar de caráter autoritário, embora vá mais longe do que "excluir os destinatários do poder de sua participação legítima na formação da vontade estatal". No pensamento de Karl Loewenstein, "o conceito de "totalitarismo alude a toda a ordem socioeconômica e moral da dinâmica estatal; o conceito, portanto, dirige-se mais a uma conformação da vida do que ao aparato governamental".

A meta a ser atingida pelo regime totalitário é moldar a vida particular, o espírito das pessoas e os costumes dos governados de acordo com uma ideologia dominante, a qual se torna obrigatória para todos. Isto significa que se torna obrigatória também para aqueles que não se submetem livremente a tal ideologia, utilizando os diferentes instrumentos do exercício do poder. A exclusividade da ideologia oficial do Estado opõe-se à livre circulação de outras ideologias e não permite qualquer concorrência com ela. Esta ideologia oficial chefa ao íntimo do Estado e no dizer de Loewenstein, "sua pretensão de dominar é total"

Nesse sentido, para ele "o Estado totalitário é um Estado polícia"; já o partido único constitui, ao mesmo tempo, "o voluntário aparato policial" e o meio dirigido pelo Estado para "doutrinar, coordenar e integrar ideologicamente" os governados. Dessa maneira, em seu livro Teoria da Constituição, Karl Loewenstein  pondera que não há "dificuldade insuperável" para discriminar entre o regime autoritário e o regime totalitário. Em geral, o critério para distinguir entre um e outro está na existência ou não de uma ideologia oficial do Estado: o autoritarismo não possui tal ideologia oficial, enquanto o totalitarismo a exige

A ideologia oficial é tão importante que Loewenstein destaca, a partir dela, o cuidado com o uso do conceito de "totalitário". E isto acontece mesmo admitindo não haver "dificuldade insuperável" para separar o autoritarismo do totalitarismo. Segundo ele, o regime totalitário dispõe de "um mecanismo continuado de coação", seu "elemento essencial", na imposição da ideologia oficial a todos os governados, de modo especial aos recalcitrantes. No caso de os governados receberem bem esta ideologia, por qualquer motivo, sem condicionantes e sem resistências, "o regime político poderá ser materialmente totalitário, mas faltará a ele o elemento essencial de uma coação deliberada e planejada". Ausenta-se, pois, a força perene, refletida, arquitetada.

Nesta sua obra, Karl Loewenstein comenta o que denomina de "a questão da possibilidade de um totalitarismo democrático, isto é, se é possível chegar à aceitação unânime da ideologia democrática por parte dos destinatários do poder".  


A alusão a J. L. Talmon e ao livro dele faz-se de forma clara e direta, até em referência específica. Loewenstein nega a realidade de uma "democracia totalitária" nos termos de Talmon. Para Loewenstein, a democracia totalitária torna-se impossível, na medida em que é impossível a "aceitação unânime da ideologia democrática" pelos governados, como se a "aceitação unânime da ideologia democrática" ocorresse em qualquer democracia

Caberia, com tal entendimento, pôr em prática o inefável: estacionar a história, expurgar suas contradições e divergências, alcançando a tão desejada unanimidade entre os homens. O conceito usado para a recusa da democracia totalitária conduziu à recusa de qualquer democracia, inclusive daquela única enunciada por Loewenstein: a democracia liberal, porque aí também não se constata unanimidade em torno da "ideologia democrática". Além de eleger uma forma única de democracia, a democracia liberal, fundada na "livre disputa das ideologias e das forças pluralistas que as representam num circuito aberto do poder", Loewenstein divisa um "completo fracasso" na atuação jacobina, durante a Revolução Francesa de 1789, embora a exalte como "um dos episódios mais fascinantes da história política moderna".  

Ao evocar a "aceitação unânime da ideologia democrática" como obstáculo ao estabelecimento da democracia totalitária, Loewenstein sequer mira certeiramente as palavras e as ideias postas por J.L. Talmon, a propósito do assunto. Loewenstein estuda o autoritarismo e o totalitarismo e assevera que o regime autoritário é revestido de indeléveis traços ditatoriais, aliás uma verdade denotada pela história. Ele se ilude, porém, ao propor que tal regime se concentra no controle político do Estado, não tendo a intenção de dominar o conjunto da vida socioeconômica de determinado grupo, nem ordenar sua vida espiritual. E ainda se ilude quando sugere que o autoritarismo não conta com ideologia oficial. 

Como é possível acreditar que o governo, o Estado, as relações sociais e econômicas, o próprio pensamento se achem distantes ou mesmo desligados no regime autoritário, como quer Loewenstein?  Como isto é possível? Não passa de uma quimera!  Eles não estão distantes ou desligados em quer formação social onde existam, sob qualquer regime político. De outra parte, a ideologia oficial é uma exigência do totalitarismo na opinião de Karl Loewenstein, embora não o conceba com traços ditatoriais, não constituindo ditadura de ninguém, mas constituindo sim "um Estado polícia".

A formulação de J. L. Talmon é bem diferente do que diz Loewenstein. Talmon não trata diretamente do autoritarismo; mas ao discorrer sobre o totalitarismo, ou sobre a democracia totalitária, reputa-os uma ditadura. Talmon também diverge de Loewenstein quanto as conceituações de democracia totalitária e de democracia liberal. Talmon não explica uma e outra com base na "aceitação unânime da ideologia democrática" como faz Loewenstein, negando então a existência do "totalitarismo democrático", ou da "democracia totalitária". Por seu lado, Talmon afirma a realidade de democracia totalitária e de democracia liberal, distinguindo-as através das "diferentes atitudes ante a política".

Franz Neumann, em  seu livro Estado democrático e Estado autoritário, empenha-se em criar uma teoria da ditadura, que ficou inconclusa, tendo recebido o título de "Notas sobre a teoria da ditadura". Parecem indiscutíveis as advertências de Loewenstein na menção rápida constante em Teoria da Constituição, sobre estes estudos de Neumann. 

De fato, Neumann distingue dois tipos de ditadura: a ditadura cesarista e a ditadura totalitária, examinando ligeiramente a ditadura constitucional romana e a monarquia absoluta, mais para apartá-las das duas primeiras. Como ele mesmo afirma, a ditadura romana de antes de Sila constitui "uma forma de Governo de Crise" e não "uma ditadura propriamente dita", significando uma magistratura, muito bem definida na autorização, nos fins e na duração. A monarquia absoluta é uma ditadura "do ponto de vista do exercício do poder", mas não é ditadura "do ponto de vista da legitimidade".  Neumann chama a atenção para o caráter vagos dos critérios definidores do governo monárquico legítimo assim como de sua real situação, embora para ele tal governo não configure uma ditadura, "do ponto de vista da legitimidade". No seu entendimento, o governo monárquico legítimo sucede quando "o acesso ao poder for constitucionalmente regulado por hereditariedade ou por eleição e geralmente aceito como a forma normal" de governar. 

O que Franz Neumann faz é criar "tipos ideais que apenas se aproximam da realidade histórica", demorando-se nos tipos de ditadura cesarista e de ditadura totalitária, formulados a partir do tipo de ditadura simples. De acordo com suas reflexões, a ditadura é "o governo de uma pessoa ou de um grupo de pessoas que se arrogam o poder e o monopolizam, exercendo-o sem restrições". Este é o tipo ideal mais amplo, de onde derivam os demais tipos. A ditadura simples resume-se, então, no monopólio do poder político pelo ditador, que o exercita apenas por intermédio da polícia, do exército, da burocracia e do judiciário, designados por Neumann de "meios tradicionais de coação"

A ditadura simples, portanto,  é o princípio da classificação dos tipos ideais na teoria da ditadura, feita por Franz Neumann. A seguir, aparece a ditadura cesarista que possui "forma pessoal" e também os mesmos componentes da ditadura simples (controle absoluta da polícia, do exército, da burocracia, do judiciário), acrescidos do "apoio popular", da conquista de "uma base na massa"

Depois, no final da classificação, surge a ditadura totalitária, que pode ser praticada coletiva ou individualmente (ganhando neste último caso "cunho cesarista"), envolvendo ainda aqueles componentes da ditadura simples (controle absoluto da polícia, do exército, da burocracia, do judiciário) e mais o da ditadura cesarista ("apoio popular"). Além deles, a ditadura totalitária pretende alcançar o domínio total sobre a educação, os meios de comunicação, a economia, submetendo "toda a sociedade e a vida privada do cidadão ao sistema de dominação política".  Tal noção se evidencia em outra obra de Franz Neumann, Behemoth - a estrutura e a prática do Nacional-Socialismo: 1933-1944, onde ele indica que o "Estado totalitário tem sido descrito como um tipo de dominação e uma forma de comunidade de pessoas".  

Quanto à ideia de totalitarismo, portanto, não existem importantes discrepâncias entre as proposições de J. L. Talmon, de Karl Loewenstein ou de Franz Neumann.

Isto não significa que a concepção de democracia totalitária exposta por Talmon seja admitida no pensamento de Neumann. Do mesmo modo como ocorre com Loewenstein, também para Neumann o Estado totalitário é "antidemocrático, porque a democracia, com seu princípio de igualdade entre o governante e o governado, destrói a necessária autoridade da chefia", conforme declara em Behemoth. Assim, Neumann arma extraordinária distância entre democracia e totalitarismo, como se a democracia não portasse analogamente "a necessária autoridade da chefia".  

Um ponto é fundamental nos estudos de Neumann a respeito do assunto em exame: a ditadura totalitária. Loewenstein adverte que muitas das conclusões de Neumann na obra Estado democrático e Estado autoritário põem-se próximas das suas ideias apresentadas na Teoria da Constituição. Para Loewenstein, no entanto, é improvável que a classificação das ditaduras, concebida por Neumann, atingisse "a necessária totalidade e matização, pois não distinguiu entre os tipos totalitários e autoritários". E ainda segundo Loewenstein, esta improbabilidade permaneceria, casa tivesse sido possível a Neumann elaborar de modo definitivo suas "Notas sobre a teoria da ditadura".

É certo que Neumann não separa o totalitarismo do autoritarismo ao longo dos escritos sobre ditadura. Mas Neumann percebe que o totalitarismo traz na essência uma ditadura e, neste particular, adianta-se a Loewenstein, o qual não compreende o totalitarismo com traços ditatoriais, não constituindo para ele ditadura de ninguém, constituindo sim "um Estado polícia".  A ditadura totalitária descrita por Franz  Neumann fica perto da democracia totalitária de J.L.Talmon (neste caso da ditadura), porque Talmon igualmente a expõe como uma ditadura sustentada pela ideologia e alimentada pelo entusiasmo popular. É incontestável, porém, que tanto para Loewenstein, quanto para Neumann, o regime totalitário não pode acolher características democráticas, ao contrário do pretendido por Talmon com sua concepção de democracia totalitária. 

Quanto à configuração das ideologias no autoritarismo e no totalitarismo, restam ademais algumas palavras. Como já se notou, Talmon não trata diretamente do autoritarismo. Já Loewenstein acha que a ideologia do regime autoritário não se apresenta "consistentemente formulada", nem é cumprida "em todas as suas consequências", enquanto a ideologia do regime totalitário consiste na ideologia exclusiva e oficial do Estado, cuja "pretensão de dominar é `total`".

Será que no autoritarismo a ideologia se encontra "inconsistentemente formulada" a ponto de não cumprir-se "em todas as suas consequências", como deseja Loewenstein?  Afinal qual é a ideologia que se cumpre "em todas as suas consequências"? Já escrevi, em meu livro intitulado Autoritarismo e corporativismo no Brasil, que o Estado autoritário repele qualquer tipo de partido político, mesmo único, e ainda qualquer ideologia organizada, substituindo o princípio da liberdade pelo princípio de autoridade. Isto quer dizer: tal Estado em certas ocasiões expulsa qualquer tipo de partido político, mesmo único, mas em outras circunstâncias pode até tolerar simulacros partidários, vários arremedos de partidos que não chegam a formar governo algum. E quer dizer mais: o Estado autoritário exibe ideologia ou ideologias desorganizadas, sem ordenação, bastante mutáveis e até mescladas. Elas apenas são "inconsistentemente formuladas" como na acepção de Loewenstein, no sentido de aparecerem sem estabilidade e incoerentes. De fato, as ideologias autoritárias são formuladas de modo desordenado, mostram-se volúveis e às vezes mescladas, mas nunca totalmente sem base, sem fundamento.

Tenho cogitado sobre as ideologias do Estado totalitário levando em conta algumas análises do meu mencionado livro, Autoritarismo e corporativismo no Brasil.  Ao contrário da situação autoritária, o Estado totalitário prima pela valorização do partido único e de sua ideologia, bastante envolvente, ordenada, quase imutável, algo próximo da cristalização, apesar de suas contradições. O partido único coloca-se em geral na condição de divulgador, de intérprete e de fiel depositário da ideologia ou das ideologias totalitárias, reiterando-as maquinalmente, sem perceber os dias que correm. 

Próximo a essa linha de raciocínio, Talmon fala da democracia totalitária e de seu mundo ideológico, concentrando-se "na suposição de uma verdade política única e exclusiva", que reconhece "um só plano de existência: o político" e contém em si toda a vida humana. Assim pensa igualmente Loewenstein, para quem a ideologia do regime totalitário é ideologia exclusiva e oficial do Estado. 

Bosquejado esse quadro tão complexo em suas repercussões, jamais devem ficar esquecidos os limites conceituais de totalitarismo, de autoritarismo e de liberalismo. Não é possível estendê-los a situações demasiadamente variadas, sem indagar nestas situações as características socioeconômicas de tais regimes. Em meu citado livro, procurei não abandonar as origens sócio-históricas do autoritarismo. 

As palavras de Umberto Cerroni, em Teoria política e socialismo, são definitivas quanto a este assunto, aplicáveis ao totalitarismo, ao autoritarismo e ao liberalismo, embora no caso se dirijam apenas ao primeiro: "...resulta desorientadora a categoria de `totalitarismo´, que unifica com extrema arbitrariedade regimes muito diferentes, tanto no aspecto social como no político"

O estudo da gênese sócio-histórica desses regimes fornece a orientação capaz de aproximar aqueles que são bastante semelhantes e de afastar os demasiadamente distintos, evitando assim confusões conceituais e garantindo análise esclarecedora e segura. 

O exame das determinações históricas do totalitarismo, do autoritarismo e do liberalismo indica ainda as construções ideológicas e os destinos concedidos aos homens e às sociedades em cada um deles. Além do mais, demonstra como o autoritarismo não adota caráter democrático, o qual pode irromper no totalitarismo e no liberalismo dentro dos rigorosos parâmetros aqui expressos. 

Enfim, é preciso assinalar que o estudo dos regimes políticos refere-se diretamente à forma de governo (democrático, republicano, monárquico, aristocrático, ditatorial etc.), à organização do Estado e às relações entre os seus órgãos. A forma de governo traz consequências para a organização do Estado, otanto ao convertê-lo, por exemplo, em Estado federal ou Estado unitário, quanto ao determinar os limites de seus poderes ou de suas competências, como  no caso do reconhecimento, ou não, de direitos e de garantias constitucionais aos indivíduos. Há, na realidade, íntimos vínculos entre a forma de governo e a organização do Estado, os quais exigem consideração. 

Totalitarismo, autoritarismo e liberalismo compõem ideologias representativas de específicas maneiras de pensar, sentir e agir. São concepções de mundo com condições, em certo momento histórico, de enquadrar e guiar um dado governo, chegando a outorgar-lhe  a própria denominação, sugerindo uma forma de governo e até, por extensão, o nome do Estado.



DEMOCRACIA LIBERAL



A democracia e o liberalismo demoraram para unir-se.  Mas depois de realizado o casamento, se acharam um par exclusivo. De fato,  o pensamento liberal ofereceu resistência à ideia e à prática democráticas durante muitos e muitos anos, e tal repulsa se tem mostrado mesmo quando a palavra "democracia" é evitada na caracterização de certo regime liberal. 

Em sua obra A realidade democrática, C.B.Macpherson anota a respeito disto: "Democracia costumava ser uma palavra nociva. Todos aqueles que gostavam de ser alguém, sabiam que a democracia, em seu sentido original de governo do povo ou de acordo com a vontade da maioria, seria uma coisa má - fatal à liberdade individual e aos atrativos da vida civilizada. Esta era a posição adotada por quase todos os homens inteligentes desde os primeiros anos da história até aproximadamente cem anos.  Ao longo de cinquenta anos, a democracia tornou-se algo bom e positivo. Sua plena aceitação nas fileiras da respeitabilidade aparecia já no tempo da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), uma guerra que, segundo os dirigentes ocidentais aliados, tinha por fim salvar a democracia".   E acrescenta adiante Macpherson: "As democracias liberais que nós conhecemos, primeiro foram liberais e depois democráticas".  

Macpherson sintetiza dessa maneira o secular percurso do liberalismo, a princípio em prolongada oposição à democracia e, a seguir, em sentido contrário: rumo a ela. O encontro do liberalismo com a democracia não parece tão tranquilo como vê Macpherson, pois até na atualidade se manifesta a aversão liberal ao mundo democrático. Existem dimensões distintas da relação entre liberalismo e democracia: de um lado, a duradoura rejeição liberal aos preceitos democráticos; de outro lado, a aliança entre a concepção liberal e a concepção democrática, a ponto de ocorrer a identificação da democracia com o regime liberal-democrático, transformando-o unilateralmente em exclusiva forma de democracia. Tamanha tem sido a monopolização do exercício democrático pelo regime liberal-democrático, que os regimes restantes, nada ou muito pouco semelhantes a ele, acabam entendidos como contrários à democracia, quando nem sempre o são.  

Também não parece aceitável a visão linear apresentada por C.B. Macpherson de que as democracias liberais inicialmente foram liberais e depois democráticas. algumas democracias liberais (talvez pontos de referência para Macpherson) já detinham mesmo tradição liberal; outras antes experimentaram limitada e dispersamente a ordem liberal; ainda outras passaram por fortes momentos antiliberais, não contando ou contando com pouquíssimas tentativas no campo do liberalismo. Não aconteceu sempre a evolução do liberalismo para a democracia liberal, conforme pensou Macpherson, se é que o evolucionismo aconteceu em algum lugar!

O pensamento liberal é produção ideológica que reflete os interesses e as pretensões da sociedade burguesa aparecida com a Revolução Industrial na Inglaterra, sobretudo a partir de meados do século XVIII. Expressão do industrialismo, o pensamento liberal consagra as liberdades individuais, a liberdade de empresa, a liberdade de contrato, sob a égide do racionalismo, do individualismo e do não-intervencionismo estatal na esfera econômica e social. Consagra além disto a liberdade de mercado, fazendo-o reinar soberanamente, elevado a um dom da natureza, responsável pela lei da oferta e da procura. A naturalização do mercado e de sua lei coloca ambos em situação distante, se não impossível, de sofrerem alteração por obra dos homens, afinal eles são obra da natureza.

Imunes das paixões e dos interesses humanos, o mercado e  sua lei devem governar a sociedade, definindo as relações nela existentes e suas condições de desenvolvimento. Assim ao liberalismo não se põe a explicação da gênese da riqueza industrial nem a apropriação do excedente do trabalho pelo capital

O próprio século XVIII, que assiste à expansão do industrialismo e do liberalismo, testemunha do mesmo modo o penoso ensaio de conciliar a liberdade, a virtude e a razão, como ainda o desmembramento da democracia em democracia liberal e democracia totalitária. Na já mencionada obra de J.L. Talmon, As origens da democracia totalitária, a democracia liberal   filia-se à "filosofia do ensaio e do erro", concebendo a política como assunto "em que se possa acertar e errar".  Segundo esta democracia, "com a ausência de coerção" os homens e a sociedade até chegarão a alcançar "um estado de harmonia ideal", por intermédio de "um processo de acertos e erros". A democracia totalitária e a democracia liberal  sustentam a supremacia da liberdade sobre os demais valores, mas a democracia liberal descobre a liberdade na "espontaneidade" e na "ausência de coerção", tornando os sistemas políticos em "estratagemas pragmáticos devidos ao arbítrio e ao engenho humanos"

Para Talmon,  a democracia liberal não aceita um só plano, uma só verdade política, mas, ao contrário, aceita "a variedade de planos", onde as atividades coletivas e pessoais se distribuem, ultrapassando os limites do universo político. Para ele, portanto, a ideia de democracia liberal prende-se à espontaneidade, à ausência de coerção, aos acertos e erros, à variedade de verdades e de níveis de verdades e de níveis de atuação, em que a política é somente uma verdade e um nível. Ela supõe então a falta de noção de sistema, a ausência de normas preconcebidas, a privação de unicidade e carência de um propósito exclusivo e absoluto da coletividade. Por fim, a democracia liberal convive com a diversidade e com a controvérsia. 

A formulações de Talmon a respeito da democracia liberal lembram pelos menos palavras de Jeremy Bentham (1748-1832), arauto do pensamento utilitarista inglês.  Em seu escrito de 1776, Fragmento sobre governo, Bentham dá a conhecer o princípio de utilidade: "A maior felicidade do maior número constitui a medida do certo e do errado".

Em outra obra impressa privadamente em 1780 e publicada em 1789, Introdução aos princípios de moral e legislação, Bentham esmiúça o que nomeou de "medida do certo e do errado", indicando os fundamentos de suas reflexões:"A natureza pôs a humanidade. sob o mando de dois principais soberanos, a dor e o prazer. Somente por eles podemos determinar o que fazer, bem como o que faremos. De um lado o padrão do certo e do errado, de outro a relação de causas e efeitos, estão ligados ao seu poder"

Nos estudos de Bentham, a "medida do certo e do errado" relaciona-se com uma teoria bastante esquemática do prazer e da dor, convertendo-os em elementos de causação e imaginando que prazer e dor permitiriam mensuração. Uma dose de um contrabalançaria a de outro perfazendo a soma dos prazeres que definiria a maior felicidade do indivíduo ou do grupo. Esta teoria de Bentham de alguma maneira tem estado sempre presente no liberalismo, mesmo sem a espécie de psicologismo imprimido por ele, e isto provavelmente pode justificar o gosto de Talmon pelo acerto e erro, ao conceituar democracia liberal. 

Porém a espontaneidade, de que se encontra impregnado este tipo de democracia de acordo com Talmon, não se representa nela tão vivaz quanto ele deseja. A espontaneidade, ou se se quiser o voluntarismo, não anda tão solta na democracia liberal quanto pensa Talmon. Nem essa espontaneidade, filha da ausência de coerção, de onde provêm os acertos e os erros, irrompe tanto na democracia liberal, porque ela possui normas a serem obedecidas e o seu descumprimento é habitualmente doloroso. Talvez haja desequilíbrio na democracia liberal, uma vez que os acertos não trazem muita felicidade e os erros doem apreciavelmente!

É certo que esta democracia adere à variedade de verdades e de níveis de atuação, mas é preciso notar a fragmentação da realidade e o relativismo que em geral daí decorrem. A divisão do real muitas vezes de maneira rígida e compartimentada, assim como a plena relatividade das verdades e das ações, transformam a democracia liberal em campo propício à máxima individualização, na qual os homens são presas de suas decisões e de seus atos. Eles passam a ser presas de suas próprias conclusões: tudo é relativo.

A noção de democracia, que constitui a base da democracia liberal, se vincula à igualdade de oportunidades segundo a capacidade de cada indivíduo, e não à igualdade real na sociedade. 

Reconhecer a igualdade de oportunidades significa admitir como certo o direito de todas as pessoas participarem da competição, visando a retirar dela o maior benefício possível. Tal é a sociedade competitiva, apregoada pela democracia liberal, que herdou do liberalismo esta concepção. É a ideia de que os indivíduos se colocam no livre mercado, cada um com sua capacidade e seu esforço, concorrendo em função de interesses e de aspirações. O mercado e sua lei fornecem e regulam o valor das pessoas e das coisas. Como o liberalismo, a democracia liberal está alicerçada no capitalismo, agora na modalidade monopolista, acompanhando as vicissitudes e seguindo o destino da economia de mercado.

Por seu lado,   o regime liberal-democrático implica que os governados respeitem um preceito essencial: no interior deste regime, eles se obrigam a fazer aquilo que não fariam em outras circunstâncias e deixam de fazer o que fariam em condições diferentes.  Ela implica também outro preceito essencial: no seu interior, os governantes se sujeitam à fiscalização dos governados, que têm a posse de meios de controle sobre eles, especialmente o ligado à faculdade de elegê-los.  Logo, pressupõe equilíbrio de forças entre governantes e governados, cujas relações de reciprocidade detêm igualmente o caráter de troca, de jogo de interesses e de mútua honorabilidade. 

Esse equilíbrio de forças no plano político não se repete no plano econômico. A desigualdade no campo econômico deriva da situação desproporcional dos indivíduos ante o mercado: alguns não necessitam ir até ele a fim de alienar seu trabalho, já que são possuidores de capital, enquanto uma maioria considerável carece de vender sua força de trabalho para subsistir, enfrentando a lei do mercado capitalista. 

A sociedade criada pelo capitalismo  leva a marca de uma grande maioria de despojados de capital, a qual trabalha para o capital de uma minoria bem reduzida, cada vez mais concentrada devido à exigência de crescente volume de investimento.

Um certo pensamento liberal-democrático coloca restrições à ética da competição que aflora na sociedade capitalista. Faz ver por exemplo que o mercado não retribui devidamente ao trabalhador o seu empenho, a sua habilidade e seu tempo de serviço. Faz ver ainda por exemplo que o mercado atende acima de tudo a quem conta com recursos para comprar algo, tendo utilidade quando foi atingido determinado estágio de distribuição de renda. Fica de fato evidenciado na democracia liberal que há desigualdade no exercício da liberdade, pois em princípio todos são livres, mas uns são mais livres do que outros dependendo das próprias determinações das existências, se vendem ou não a força de trabalho. 

No âmbito da democracia liberal, a desigualdade social, a dominação de uma classe social sobre outra pode ser admitida desde que esteja assegurada a igualdade da cidadania. Como consequência da ordem burguesa e do capitalismo, a cidadania revela-se indispensável à continuidade da desigualdade social, e não entra em conflito com ela. A cidadania exprime a liberdade humana apenas no sentido de os homens terem direito e estarem protegidos pela lei comum a todos. Revestida da forma de igualdade jurídica, ela se desenvolve a partir da luta pela conquista de certos direitos e posteriormente através da luta para usufruir deles.   A condição de cidadão encerra forte apelo para participar da vida social, o qual nasce e frutifica na convicção de que a sociedade consiste em patrimônio pertencente a todas as pessoas. Assim, a cidadania representa um princípio de igualdade, desdobrado em diversos direitos que se foram acrescentando aos poucos.  

O século XVIII seguramente ostenta o momento em que a cidadania ganha proeminência e divulgação. Desta época em diante veio acumulando direitos, compondo um leque de prerrogativas dos cidadãos para atuar na sociedade e no Estado. O direitos de natureza civil dizem respeito às liberdades individuais: liberdade de locomoção, liberdade de pensamento e de crença, liberdade de ter propriedade, liberdade de empresa, liberdade de contrato, liberdade de imprensa, liberdade de recorrer à justiça a fim de garantir direitos. 

De sua parte,  os direitos políticos integrantes da cidadania giram em torno do direito de participar no exercício do poder político, na qualidade de eleitor ou de membro do Estado, investido então de autoridade política. Já os direitos sociais contidos na cidadania aludem a tudo que ocupa vasto espaço, desde o direito de desfrutar situação de mínima segurança e de algum conforto socioeconômico até o direito de fruir plenamente o legado sócio-cultural e o padrão de vida civilizada, prevalecentes na sociedade. É preciso destacar, porém, o processo de formação desses direitos da cidadania, dizendo que em suas origens eles não se distinguem, sendo um só direito. As lutas sociais, ao longo dos últimos séculos, deram mais abrangência e complexidade a ele, acabando por dividir tal direito de cidadania em direitos civis, direitos políticos e direitos sociais. 

O caso dos direitos sociais serve de ilustração sobretudo quanto ao percurso feito por eles. No princípio, não compartilham da concepção de cidadania, porque se destinam a oferecer um mínimo capaz de aliviar a pobreza conservando o nível de desigualdade social e denotando meras tentativas esparsas. O ingresso dos direitos sociais nos contornos da cidadania acontece quando se pretende alterar o nível geral de desigualdade. Isto ocorre por exemplo ao instituir-se o direito do trabalhador a um salário que não corresponda diretamente ao valor do salário pago no mercado de mão de obra.

Não se trata de tentativa de simplesmente atenuar a miséria ou os mais baixos estados de pobreza pela aplicação dos direitos sociais. A desigualdade permanece com o ingresso destes direitos no campo da cidadania, mas passa a existir em seus objetivos a diminuição das diferenças entre as classes. Os direitos sociais buscam o aprimoramento do padrão de vida civilizada, a restrição da insegurança, a aproximação das diversas situações sociais em que os indivíduos se acham. 

A cidadania compreende vigoroso chamado à participação na vida social e no Estado, obras dos homens e patrimônio comuns a todos. Além do mais, a cidadania constitui um princípio de igualdade, realizado na igualdade jurídica e materializado numa sucessão de direitos. Assim, é relevante o papel da participação no conjunto da democracia liberal.

Alguns estudos resumem os indicadores de participação política empregados em quase todas as pesquisas preparadas sobre este assunto. A listagem dos indicadores ganha significação ao se inserir a maioria deles na cultura política norte-americana, embora eles também se encontrem em outros lugares. Devido com certeza às peculiaridades da política norte-americana, os indicadores de participação dedicam-se quase sempre ao processo eleitoral, uns poucos mostram necessidades, reclamações e pressões da sociedade sobre o Estado. 

Em síntese, esses indicadores de participação política, em graus variáveis de compromisso com a ação política e com a atividade pública, podem ser arrolados da seguinte maneira, a partir de levantamento efetuado naqueles estudos específicos acerca da matéria: (1) assinar requerimentos de cunho político; (2) votar; (3) iniciar discussão política; (4) convencer alguém a votar de determinado modo; (5) portar distintivo político; (6) fazer contato com funcionário ou com dirigente político; (7) comunicar-se pessoalmente com legisladores; (8) contribuir com dinheiro para um partido ou para um candidato; (9) integrar-se num comício ou numa assembléia política; (10) atuar com tempo em campanha política; (11) sustentar grupo de pressão e fazer parte dele; (12) ser membro ativo de partido político; (13) ir a reuniões onde haja deliberações políticas; (14) solicitar contribuições em dinheiro para causas políticas; (15) ser candidato a cargo eleitoral; (16) ocupar cargo de partido ou cargo político.

Para a democracia liberal, o exercício do voto por todos iguala as pessoas, livrando-as da desigualdade social em que estão mergulhadas. Note-se como isto se dá. Por intermédio da participação política e, de maneira especial, por meio do voto, são aferidas a gradação do consenso e consequentemente a legitimidade do poder governamental. E ainda a participação política utiliza meios políticos a fim de confrontar com a desigualdade social. Por um lado, a participação política dá a medida do consenso; por outro lado, ela coloca a igualdade política (e também a jurídica) ante a desigualdade social. 

A propósito dessa temática, em seu ensaio Introdução ao estudo da participação política, Alessandro Pizzorno considera o seguinte: "(...) só se participa quando se está entre iguais". A igualdade é fundamental à participação política e por conseguinte à cidadania e à democracia liberal. Mas a igualdade de que se fala é a igualdade política e, principalmente, a jurídica, que protege a liberdade, expressão do fato de todos possuírem direitos e estarem preservados por lei comum. 

A participação política, portanto, carece desta igualdade política e desta igualdade jurídica, assim como carece de solidariedade. A participação política consuma-se pela solidariedade com outras pessoas, tendo por objetivo manter ou modificar interesses e ideologias predominantes, dentro do quadro capitalista

De qualquer maneira, esta participação revela pressões, demandas, reivindicações oriundas da sociedade e dirigidas ao Estado. Um tipo particular de participação surge com os denominados "movimentos sociais". Estes movimentos germinam em terreno alheio à esfera estatal e têm como meta reformar a sociedade, o Estado ou algum aspecto deles. Os propósitos dos "movimentos sociais" podem ser muito extensos ou restritos em termos de reforma. É comum em seus começos eles não se misturarem ao aparato estatal, nem mesmo se incorporarem nas atividades parlamentares. 

Tomados em sua substância, os "movimentos sociais" exibem respeitável instabilidade, demonstrando que eles não compõem formas estáveis de participação.  Um certo número deles consegue realizar os objetivos que tinham em vista, mas outros tantos acabam por transformar-se, inclusive em partidos políticos.

Aliás, a democracia liberal respira através do sistema partidário, um caminho natural e uma orientação incessante para o governo. O regime liberal-democrático mune-se de sistema de múltiplos partidos que apresentam condições de gerar o governo e de dar direção a ele. Inexiste democracia liberal sem alguns partidos políticos, assim como ela inexiste com partidos políticos que não são dotados de meios capazes de levá-los ao governo ou que não tenham condições de exercê-lo. 

Esses partidos não só contribuem para a constituição do consenso em torno do poder governamental e para sua conservação, como ainda comprovam a presença da igualdade política e da igualdade jurídica, apesar da desigualdade social. Eles colhem votos em uma classe ou em diferentes classes, oferecem-se como o modo mais organizado de participação política, mas não podem desconhecer os limites impostos pelo capitalismo. 

A democracia liberal enraíza-se na sociedade capitalista, descobre sua lógica na lógica da sociedade competitiva, na qual o mercado se eleva a avaliador das capacidades, dos empenhos, dos interesses e ainda dos sonhos, recebendo feitio de demiurgo.  


(Cf. Vieira, Evaldo - Os direitos e a política social - São Paulo-SP: 
Cortez, 2009, 2016, Capítulo VII)





















 



segunda-feira, 11 de julho de 2016

O CONSERVADORISMO Evaldo Vieira - ed. 1998, 2016







Estudar o conservadorismo, mostrando a conduta que levou pensadores e políticos a esta posição, certamente constitui subsídio importante para a compreensão do nosso tempo. 

O conservadorismo é uma atitude baseada em doutrinas que exprimem concepções de mundo, pertencentes a grupos da sociedade. 
Falando de tal assunto, Lucien Goldmann observa:

"Quase nenhuma ação humana tem por sujeito um indivíduo isolado. O sujeito da ação é um grupo, um "Nós", se bem que a estrutura atual da sociedade tenda por meio do fenômenos da reificação o ocultar este "Nós" e a transformá-lo em soma de várias individualidades distintas e fechadas umas para as outras.

E acrescenta adiante Goldmann:

"Uma concepção de mundo é precisamente este conjunto de aspirações, de sentimentos e de ideias que reúne os membros de um grupo (ou o que é mais frequente, de uma classe social) e os opõe aos outros grupos" (1).

A atitude conservadora dá a impressão, e só a impressão, de não integrar doutrina ou sistema bem estruturado. Muitos exemplos vêm reforçar tal impressão, como a abolição da escravatura nos Estados Unidos e no Brasil, originadas respectivamente de um republicano e de um conservador, e não de democrata e de liberal. 

Na mesma situação da atitude conservadora se enquadram os termos "direita" e "esquerda", criações da prática parlamentar francesa dos inícios do século XIX. 

Embora tenham conquistado inteiramente o linguajar político, eles não possuem medida fixa e bem delineada para distinguir ambas as posições, já que o centro não apresenta exatidão. Também não é possível basear-se em simples diferenças com que se indicam estas expressões, variáveis em cada momento histórico. 

Em certas circunstâncias, as duas posições, direita e esquerda, podem formar um círculo, descrevendo-o pela união dos extremos: assim é que muitas vezes a extrema direita e a extrema esquerda se unem numa atitude, seja coincidindo os votos, seja praticando atos idênticos. 

As atitudes e doutrinas conservadoras representam-se em concepções de mundo, em construções ideológicas, em sistemas de ideias, cujos significados se enraízam num grupo ou numa classe social, e explicam estas atitudes e estas doutrinas. 

O Iluminismo do século XVIII destaca na Igreja Católica Apostólica Romana a base da doutrina conservadora, condenando-a com vigor e contrapondo a ela seu naturalismo, seu materialismo, sua crença no progresso inevitável.  Defendendo a liberdade e a igualdade, rejeitando a tradição e as hierarquias instituídas, os iluministas conflitam com um conjunto de ideias sustentadas pelo Catolicismo tradicional.  

A doutrina católica tem dado origem a posições tradicionalistas, porque a religião supõe a crença no poder sobrenatural, que prescreve verdades absolutas e eternas. Um caso deste tradicionalismo, de grande projeção, está na obra de Joseph de Maistre (1753-1821), famoso expositor do que diz ser princípios absolutos e eternos. 

Autoritário, antiprogressista, antirracionalista, inteiramente antidemocrático, Joseph de Maistre fundamenta seu pensamento em dogmas, sobretudo religiosos, nunca discutindo para não prejudicar a segurança e a ordem social. Em suas palavras:

"Os homens veneram o que não podem compreender...  As sociedade devem ser governadas pelos costumes e pelas instituições, cuja origem se perde nas névoas da história" (2). 

Conforme Joseph de Maistre, a sociedade deve prevalecer sobre o indivíduo, com progressiva concentração do poder e da autoridade, convertendo assim a monarquia absoluta na única forma aceitável de governo. Sua visão organicista concebe a sociedade como organismo real, dando aos indivíduos a condição de partes deste organismo, mas de partes sem liberdade. Ao analisar o poder, De Maistre observa:

"A razão humana, reduzida às suas forças individuais, é completamente nula porque produz apenas disputas e o homem, para se guiar, não precisa de problemas, mas de crenças...  E quando sua razão se manifesta, encontra feitas todas as suas opiniões, pelo menos sobre o que tem relação com sua conduta. Não há nada mais importante que estes preconceitos...  Sem eles, não pode haver culto, nem moral, nem governo"  (3).

De Maistre reduz a liberdade a uma clara manifestação de revolta contra o todo social. Deseja acima de tudo a teocracia, em que o Papa desempenha o papel de depositário do poder de Deus na terra. De Maistre não acredita em nenhuma inovação e, antes, pelo contrário, quer demonstrar que o mal moderno reside na ideia de ser possível o surgimento de algo novo e bom. 

Pensando dessa forma, ele põe sobre os ombros de Francis Bacon (1561-1626) a responsabilidade de inventar o mal moderno. Em Francis Bacon, De Maistre condena até mesmo o título de sua obra Novum Organum, pois nenhum outro novo instrumento de conhecimento existe que o passado não tenha descoberto. Segundo ele, Aristóteles já oferecera o instrumento humano, e não mais há novidade porque o homem é sempre igual. 

Joseph de Maistre somente admite novidade ou existência do homem novo no Evangelho; fora dele, a sociedade contém em si predominantemente característica de completa imutabilidade e o ideal, o eficaz para todos os tempos, está sintetizado na concepção de mundo católico da Idade Média. 

A este tipo de conservadorismo, expresso por De Maistre, pode-se associar o do Visconde de Bonald (1754-1840). 

Ambos os pensamentos conservadores não se diferenciam grandemente. De Bonald distingue-se de De Maistre sobretudo na maneira de iniciar sua teoria. O Visconde de Bonald começa com analogias entre o indivíduo, a família e a sociedade, identificando-se enfim com De Maistre e concluindo também pela necessidade de viver de acordo com as leis e as tradições herdadas dos antepassados, de fato vindas de Deus. 

De Bonald apregoa a importância da religião como fundamento de qualquer poder. Ele afirma, na Teoria do Poder Político e Religioso, que os filósofos "pregam o ateísmo aos grandes e o republicanismo ao povo. Resulta desta dupla instrução que os grandes, ao criarem o desprezo pela religião, criam também dúvidas sobre a legitimidade do próprio poder exercido por eles; e o povo, odiando ou invejando a autoridade política, cria por seu lado dúvidas sobre a utilidade de uma religião que prescreve a obediência ao governo. 
Da crença imperturbável na supremacia da religião e do poder, De Bonald extrai o caráter natural da desigualdade, decretando que "onde todos os homens consentem em dominar com vontades iguais e forças desiguais, é necessário que um único homem domine ou que todos se destruam" (4). 

Outro conservador cristão a ser lembrado, o Cardeal Newman (1801-1890), ocupa o lugar de personalidade importante no renascimento da Igreja Anglicana no princípio do século XIX, a qual depois abandonou, transferindo-se para a Igreja Católica. 

O Cardeal Newman critica o Liberalismo (em que se inclui o Iluminismo), seu principal ponto de ataque. É o Liberalismo com suas conclusões científicas quem desmente verdades divinas sobre a pobreza e a riqueza. É o Liberalismo quem permite a utilização dos bens da Igreja, quem aceita o povo como fonte legítima do poder, sustentando que a virtude resulta do conhecimento.

Mas o Cristianismo tradicional do Cardeal Newman não recusa qualquer mudança, como De Maistre. Ele reconhece a possibilidade de ocorrerem transformações progressistas e transformações corruptivas. A distinção entre uma e outra não nasce da prova científica, nasce do sentido ilativo que é a justificação psicológica unificadora do sentimento estético, do sentimento moral e da experiência real. 

O sentido ilativo consiste num traço individual, não tendo a universalidade da lógica científica. Assim, o sentido ilativo permite ao Cardeal Newman adotar uma política conservadora fundada na manutenção da ordem socioeconômica, a partir de verdades já confirmadas pelos santos, sábios e artistas. 

A formação cristã tradicional ou a formação católica tradicional não constituem as únicas fontes geradoras de conservadorismo. O estudo do autoritarismo, do totalitarismo, do aristocratismo, desligados do Cristianismo, revela elementos conservadores

Nos séculos XIX e XX, encontram-se ideias que sugerem o regresso ao passado, tido como a melhor época. Este ideário valoriza a aristocracia, o governo dos sábios e dos bons, a tradição do cavaleiro grego e romano, concordando por vezes até com o governo popular, porém esperando da democracia outro meio diferente de ganhar dinheiro e de dominar multidões. 

Alexis de Tocqueville (1805-1859), considerado liberal, embora nobre, bem representa esta orientação. Em sua obra A Democracia na América, inquieta-se com a preferência norte-americana pela igualdade, não vendo com bons olhos a reinante desconfiança no requinte intelectual e o perigo da indiferença às qualidades do cavaleiro. 

Com relação aos Estados Unidos, Tocqueville não se sente bem com a pretensão de atingir a perfeição imediata ou com a crença na infalibilidade da maioria. 

Conciliando a influência tradicionalista recebida de Edmund Burke com as inclinações inevitáveis da sociedade, Alexis de Tocqueville prevê, em certo sentido, o progresso norte-americano, mas não deixa de suspeitar da superestima dos objetivos materiais em detrimento dos espirituais. Recebe de Burke também a crença no auxílio da Providência para a realização de mudanças no mundo e a desconfiança no povo, que é cultuado em lugar de Deus, como abstração. 

Com seu conservadorismo liberal, Tocqueville torna-se crítico e reformador da democracia, indicando o despotismo democrático resultante das tendências para a simplicidade de conceitos e estrutura, para a centralização, padronização e materialismo, em oposição ao excêntrico e ao misterioso, aos contrastes e à valorização da personalidade.

Diante dos perigos do despotismo, a liberdade na democracia deve ser salvaguarda. E aí está a principal função da aristocracia e da religião, da lei e do costume, e ainda da educação pública. 

O conservadorismo da aristocracia limita a arbitrariedade do poder, enquanto a religião refreia as propensões materialistas e inovadoras dos democratas. Tocqueville vê nas leis e nos costumes, quando estabelecidos segundo a natureza popular, seguros impedimentos à concentração do poder, ressaltando igualmente a valiosa contribuição da educação pública como meio de instruir o povo sobre seus direitos e deveres. 

Restringindo-se apenas ao tema, pode-se dizer que Tocqueville prefere proteger o mundo tradicional com suas forças e defeitos, ante a ideia de uma humanidade planificada. 

E nisto não está só, como se sabe, mas é seguido por outros como Henry Maine (1822-1888), exemplo de suspeita aristocrática da democracia. Ele chega à conclusão de que a segurança do Estado legal é mais desejada que a liberdade de contratar. 

Porém, maior atenção exige o conservadorismo dos movimentos de grupo. Alguns grupos como os "tories" democratas que, apesar de crerem no voto, opõem-se à desordem, à valorização desenfreada do dinheiro e às vezes à fealdade da época, não têm consequências tão amplas e profundas como os grandes movimentos totalitários de direita no século XX: o fascismo (Itália, 1922-1945), o nazismo (Alemanha, 1919-1945) e outros de mesma natureza. Grupos deste tipo empreenderam ao longo do século XX as ações mais penetrantes contra a democracia, apoiando-se em motivo ético, nacional, racial ou de diferenciação biológica. 

Para tais grupos, na condição de representante da unidade nacional, o Estado deve crescentemente influenciar a vida dos homens, cerceando a liberdade individual  mesmo em países com influência iluminista. Desenvolve-se a crença nas relações entre raça e nação, as quais condicionam os dotes espirituais e culturais. O período nazista e o período fascista configuram-se como casos típicos deste totalitarismo de direita (5). 

Eis a visão mais geral do conservadorismo. A seguir, são expostos três de seus momentos de grande repercussão. 



O Conservadorismo



Genericamente, a valorização da mudança e a preservação das tradições constituem os dois principais traços distintivos entre o progressismo e o conservadorismo. Mas existe mais complexidade nisto.

Nota Karl Mannheim (1893-1947) que há dois tipos de conservadorismo (6): o "conservadorismo natural", mais universalista, aquele a que Max Weber denominou "tradicionalismo"; e o "conservadorismo moderno", resultante das condições históricas e sociais, sendo mais particularista. 

No entendimento de Karl Mannheim, o Tradicionalismo admite velhas maneiras de viver, nascidas do hábito, em processo que se pode chamar de inconsciente. Reage à inovação devido ao formalismo da mente. Assim, o tradicionalismo não implica sempre conservadorismo político ou qualquer outro conservadorismo. Casos existem em que um progressista em política se conduz de modo tradicional em outro campo de atividade. 

O Conservadorismo consiste no conservadorismo moderno, de acordo com a acepção de Mannheim: é considerado como a conscientização do tradicionalismo. Traduz-se em intenção relacionada com circunstâncias, que mudam de uma época para outra.

Karl Mannheim, e outros que o acompanham nas definições de conservadorismo, até admitem nele mutações decorrentes das circunstâncias, como sucede com um dos dois tipos: "o conservadorismo moderno". Porém, não vinculam o conservadorismo especificamente à concepção de mundo produzida pelos membros de um grupo ou de uma classe social. Por exemplo, Russell Kirk (7) apresenta os pontos principais do conservadorismo da orientação de Edmund Burke, embora se saiba que variações e acréscimos ocorrem necessariamente. 

Para o conservador, o divino dirige a sociedade e o indivíduo, delineando eternos direitos e deveres. Portanto, o problema político também é religioso e ético. Nada de igualdade e de uniformidade, o que vale é a variedade e o enigma da vida tradicional. Assim, o conservador concorda com a existência de ordens e classes, mas acredita que a única e verdadeira igualdade é a igualdade moral, prestigiando ao mesmo tempo a autoridade, indispensável à vida social. 

No pensamento do conservador, a propriedade privada e a liberdade ligam-se intimamente, ficando a sobrevivência de uma dependente da sobrevivência da outra. Prefere os sentimentos à razão, não confiando no sofisma e no cálculo, rejeitando a ideia de reforma. 

O conservadorismo distingue reforma e mudança, e considera legítima para a sociedade apenas a mudança, que se deve processar lentamente como acontece no corpo humano, sempre sob a direção do divino. Na mudança conservadora, se substituem elementos individuais por elementos individuais, particulares por particulares, enquanto a mudança progressista atinge a totalidade, o indesejável e o mundo que o torna possível. 

O que importa ao conservador é o imediato e o real, desprezando e excluindo a especulação e a hipótese. Fustiga, portanto, a generalização e o pensamento sistemático. Colocando-se o pensamento na perspectiva do tempo, o conservador fixa-se no passado, à medida que ele participa do presente (8).



Edmund Burke


Edmund Burke (1729-1797) é considerado o maior representante do conservadorismo moderno, que se inicia em 1790, com a publicação das suas Reflexões sobre a Revolução na França e sobre o Comportamento de Certas Comunidades em Londres com Relação a esse Acontecimento, nas quais está exposta a oposição entre conservação e inovação. 

Robert Nisbet, aludindo a este escritor e político inglês, diz que ele 

"...preocupou-se, ao longo de uma das mais admiradas carreiras na História do Parlamento, com cerca de cinco diferentes revoluções, ao todo, tendo apoiado quatro delas de modo vigoroso e firme: a revolução inglesa de 1688, quatro décadas antes de seu nascimento; a Revolução Americana; a revolta dos bengalis, na Índia, contra a British East India Company; e as esporádicas insurreições dos católicos irlandeses contra as forças inglesas na Irlanda. O que Burke odiava era, em suas próprias palavras, "o poder arbitrário". Ele o detestava, na forma pela qual os ingleses o exerciam contra os americano - assim levando os colonos, no ponto de vista de Burke, à justa revolta contra a Coroa inglesa - ou na forma que ele tão rapidamente assumiu depois de 1789, na França dominada pelas assembleias e convenções revolucionárias" (9).

Fazendo referência ao "poder arbitrário", Edmund Burke declara: 

"A lei e o poder arbitrário estão em permanente inimizade. Mostrem-me um magistrado, e eu lhes mostrarei propriedade; mostrem-me o poder, e eu lhes mostrarei proteção. É uma contradição de termos, uma blasfêmia na religião, uma iniquidade na política, afirmar que qualquer homem pode possuir poder arbitrário" (10).

Como se observou antes, ao tratar de Tocqueville, a influência de Burke é ampla. Seu legado ao Liberalismo reside principalmente na ideia de que a liberdade não significa inovação, mas tradição a ser conservada. Outros legados de Burke ao Liberalismo consistem ainda no respeito pela propriedade privada, no temor pelo poder político alheio a ela, no desejo de que o governo governe menos. 

Vivendo na Inglaterra, em época de luta entre o Parlamento e a Coroa, pois Jorge III tentava recobrar o poder efetivo, Edmund Burke pode ser qualificado como "certamente um homem de teoria mesmo na sua desconfiança pelas teorias" (11). Apesar disto, não se pode dizer que tenha conseguido produzir uma completa e sistemática teoria do Estado. 

Na obra Estado Atual da Nação, Burke apresenta muitas das ideias que sempre defenderá. Delas, merece atenção a ideia de que constitui perigo não somente propor reforma da Constituição, como também a simples crítica a ela, por acarretar redução da confiança popular em suas qualidades. 

Em Pensamentos Sobre as Causas do Atual Descontentamento, Burke se nega a discutir o valor abstrato da voz do povo, não deposita total crédito no povo, fala de seus enganos, afirma finalmente que "o povo não tem interesse na desordem"

A confiança na tradição impele-o à solução conciliatória na questão das colônias americanas, concordando com concessões em razão de os colonos serem de descendência inglesa, dotados de arraigada noção de liberdade, não da liberdade abstrata, mas da liberdade das instituições tradicionalmente existentes na Inglaterra.

O início da Revolução Francesa de 1789 impõe a Burke uma atitude diferente daquela tomada perante a Revolução Americana, em 1775. Na verdade, ambas se diferiam muito. 

Na Revolução Americana sobrepõe-se o aspecto político, baseado no equilíbrio social, decorrente do compromisso entre as forças da sociedade e as da manutenção da desigualdade. A Revolução Francesa alcançou toda a vida humana, sob a égide da igualdade e dos direitos do homem.

Dentro desse quadro, Edmund Burke publica suas Reflexões sobre a Revolução na França, repudiando os acontecimentos revolucionários e tornando-se uma fonte para os que se opunham a eles. 

Thomas Paine (1737-1809) responde-lhe em Os Direitos do Homem (1791),  e critica seus princípios básicos de análise, como, por exemplo, ao discutir os limites da lei constitucional:

"O Sr. Burke diz-lhes, e diz ao mundo que há de vir, que certo grupo de varões, vividos mais de cem anos antes, fez uma lei; e que não existe agora na nação, nem jamais existirá, nem poderá existir, poder capaz de a mudar...
Basta um pouquinho de reflexão perceber que, embora as leis feitas numa geração continuem muitas vezes em vigor por sucessivas gerações, continuam a tirar a sua força do consentimento dos vivos" (12). 

Se no começo Burke deplorou o radicalismo individualista, depois se deparou com algo novo e não menos lamentável para ele: o fortalecimento do Estado, que feria igualmente seus princípios. 

Sua liberdade é a da Revolução Gloriosa de 1688 e seu centro de interesse é a Constituição inglesa, que deseja preservar mesmo com defeitos, por entendê-la uma herança dos antepassados a seus descendentes, exigindo especial zelo na reforma para não colocar em perigo sua conservação. Edmund Burke pensa que a estabilidade da propriedade garante a ordem social. Sua igualdade funda-se no fato de que os homens são iguais perante Deus, e só deste modo, pois o restante é fundado na desigualdade. 

Como John Locke, Burke reconhece os direitos do homem, mas não compartilha do caráter metafísico com que se apresenta. Segundo ele, a existência dos direitos do homem se impõe devido à sua natureza sagrada. 

Assim, admite a reforma, posiciona-se como anti-imperialista e partidário de Adam Smith, sem aderir à ideia de sufrágio universal. Pode assumir posições liberais, nunca democratas. 

Edmund Burke evita teorias, interessa-se pelo realismo. Entende a Política sem metafísica e sem absoluto. Entende-a como resultado da experiência. Não desconhece a razão do iluminista, mas defende para as coisas humanas o simples uso da experiência.   

Crê que a vontade de Deus se oferece aos homens por meio do desenrolar da História, transformando o divino na fonte da felicidade humana. Daí infere a conclusão: a origem do mal localiza-se no coração do homem e não nas instituições. Envolto na visão teocrática do mundo, Burke considera a Política como conjunto de problemas morais subsistentes na sociedade, a qual segundo ele tem o sentido de unidade "espiritual" em constante destruição e renovação, como a Igreja. O governo converte-se desta maneira em depositário do poder existente na sociedade, responsável também perante Deus, origem de toda autoridade

A grandeza de um governo repousa em saber discernir entre o que precisa de conservação e o que necessita de reforma, funcionando sempre com prudência e honestidade. As qualidades básicas do governo consistem na virtude e na sabedoria, para cuja descoberta a eleição popular é inteiramente ineficaz. Seu "modelo de homem de Estado" utiliza-se de materiais "dados" pela sociedade e não de ideias importadas (13). 

Sustentando este conjunto de proposições e admitindo a revolução como ato extremo, depois de esgotados todos os demais recursos, Edmund Burke julga a Revolução Francesa de 1789 a suprema manifestação do dogma e da doutrina, do ateísmo e da destruição. E constituindo apenas destruição, para ele a Revolução Francesa não poderia significar certamente evolução, mas sim aniquilamento de um sistema de liberdades e de direitos concretos e imperfeitos em favor de conquistas teóricas e dogmáticas, perfeitas e inexistentes (14).



John Adams




Compondo a união dos ideais liberais com o pensamento tradicional, John Adams (1735-1826) pode ser visto como o real pioneiro do conservadorismo nos Estados Unidos. Neste particular, prepondera sobre Alexander Hamilton (1757-1804) no sentido de que este, comumente mais destacado, representa confusão de financista prático, centralizador em seu federalismo, com tendência conservadora

Eleito delegado de Massachusetts no Congresso Continental em 1774, e no Segundo Congresso Continental em 1775, neste mesmo ano, John Adams designa George Washington  Comandante do Exército Colonial.  Participa em 1776 da elaboração da Declaração da Independência e é ainda o principal autor da Constituição de Massachusetts, adotada em 1780. 

Com as eleições de George Washington em 1789 e em 1792 para Presidente dos Estados Unidos da América, John Adams torna-se Vice-Presidente neste período. Elege-se Presidente dos Estados Unidos em 1796. Junto com George Washington e Alexander Hamilton, John Adams dirige os Federalistas, enquanto Thomas Jefferson lidera os Republicanos. 

Como conservador, Adams critica as posições radicais, condenando a crença na perfeição humana e no valor do Estado centralizado, mostrando o que há de visionário nas teorias políticas dos franceses. 

Segundo ele, a liberdade somente será alcançada e mantida por intermédio de homens sensatos, que vissem a humanidade realisticamente, como ela é. John Adams na verdade não ocupa a mesma posição de Edmund Burke. Coloca-se no ponto médio, entre os extremos do conservadorismo inglês e do conservadorismo francês. Burke e Adams combatem o radicalismo revolucionário diferentemente: enquanto o primeiro fala de preconceito, de costume e de direitos naturais, o segundo bate-se contra a concepção de perfectibilidade e de unitarismo. 

As Ideias Sobre Governo e a Defesa das Constituições do Governo dos Estados Unidos da América, entre outros escritos de autoria de John Adams, oferecem passagens bem esclarecedoras dos principais fundamentos de seu pensamento. 

Assevera Adams nas Ideias Sobre Governo que 

"...a divina ciência política é a ciência da felicidade social e as bênçãos da sociedade dependem inteiramente das Constituições de Governo... Todos os políticos, em suas especulações, concordarão em que a felicidade da sociedade constitui o propósito de governo, como todos os teólogos e filósofos morais concordarão em que a felicidade do indivíduo constitui o alvo do homem" (15).

Na Defesa das Constituições do Governo dos Estados Unidos da América, impugnando as teorias de Turgot e de Rousseau sobre o absolutismo democrático principalmente, John Adams diz que 

"...a natureza humana é tão incapaz, agora, de atravessar revoluções com moderação e sobriedade, paciência e prudência, ou sem fúria e loucura, como o foi entre os gregos, há tempos passados.   ...Os Estados Unidos da América exibiram, talvez, o primeiro exemplo de governos erguidos segundo os princípios simples da natureza... (...) M. Turgot em sua carta ao dr. Price, confessa que "não está satisfeito com as Constituições que até então foram formuladas para os diferentes Estados da América". Observa que "na maioria delas, são imitados os costumes da Inglaterra sem qualquer motivo especial. Ao invés de reunirem toda a autoridade num só centro, o da nação, estabeleceram diferentes organismos - um de representantes, um Conselho e um governador - porque existem na Inglaterra uma Casa dos Comuns, uma Casa de Lordes e um rei" (16).

Contestando Turgot, John Adams pergunta

"que costumes ingleses reteve ela (a nação) que, com propriedade, se possa chamar um mal?  (...) jamais existiu entre os homens uma democracia simples e perfeita. (...)  Houve, ou haverá, nação cujos indivíduos fossem iguais em qualidades naturais e adquiridas, em virtudes, talento e riquezas? A resposta de todos os homens, deve ser negativa. Cumpre, pois, reconhecer que em todo Estado (...) há desigualdades que Deus e a natureza ali plantaram e que nenhum legislador humano jamais poderá desarraigar.  (...) Enumeremos algumas delas:
1) Há desigualdade na riqueza;
2) Nascimento.
(...) Estas fontes de desigualdade, comuns a toda gente, não podem ser alteradas porque se fundam na constituição da natureza; discorreu-se sobre esta aristocracia natural entre os homens porque é fato essencial a ser considerado na instituição de um governo. Forma um organismo de homens que contém o maior acervo de virtudes e habilidades num governo livre, é o ornamento e a glória mais brilhantes da nação e pode, sempre, transformar-se na maior bênção da sociedade se for judiciosamente regulado na Constituição" (17). 

Adams propõe então o aproveitamento de tais homens numa assembleia legislativa, separada totalmente do poder executivo, mas sendo dependentes do primeiro magistrado desta poder. Ao lado, deve erguer-se a Casa de Comuns, representante do povo (18). 

Eis aí, nestes fragmentos dos escritos de Adams, de modo claro algumas de suas orientações essenciais. Para ele, os homens são conforme Deus os criou. Reconhecer a falibilidade do indivíduo, suas diferenças, constitui condição para a paz. 

Se admite certa melhoria nos assuntos humanos, ele jamais aventa a possibilidade de perfeição do espírito humano. O progresso demora e depende das instituições e dos desígnios divinos. A natureza impõe a desigualdade, as diversidades da poderes e de faculdades, muito embora - pensa ele - os homens nasçam iguais, vivam a mesmo moral oriunda de Deus e gozem de igualdade jurídica: cada um tem direito ao seu. 

Da desigualdade inabalável, existente na sociedade, infere sua teoria sobre a aristocracia.  De acordo com tal teoria, há aristocratas da virtude e do talento, resultante da natureza e da sociedade, sem meios de mudança decorrente da legislação

Apesar disso, talvez não seja certo dizer que John Adams defende a aristocracia. Constata-se em seus escritos a presença dela, ao notar que se processa sempre a substituição de um tipo de aristocrata por outro tipo, sem seu desaparecimento.

Ante tal situação em que a aristocracia fatalmente domina no regime de sufrágio universal, ou em qualquer outro regime, Adams não descobre eficácia no voto, embora não o combata. Interessa a ele, como se nota nos textos citados, a manutenção do equilíbrio social, representado no Governo pelo equilíbrio de poderes: executivo, senado e câmara, condicionantes da boa lei e da liberdade, esta nascida daquela (19). 

Finalmente, John Adams prefere a noção de virtude à noção de liberdade, da qual extrai esta última, pois "todos os investigadores sensatos da verdade, antigos e modernos, pagãos e cristãos, declararam que a felicidade do homem, bem como sua dignidade, consistem na virtude" (20).



Jackson de Figueiredo




O Catolicismo de Jackson de Figueiredo (1891-1928) retrata uma atitude viva de conservadorismo, que não pode ausentar-se de estudo como este, por sua repercussão entre os católicos brasileiros e até entre os não católicos.

Tal Catolicismo cresce em condições socioeconômicas geradas pela Primeira Guerra Mundial, que acelera a ampliação interna da economia nacional. Contrapõe-se  a esta ampliação um conjunto de obstáculos; um deles é o domínio de importantes campos do comércio interno e externo por estrangeiros, mais propriamente por portugueses.

Por volta de 1920, tais circunstâncias conduzirão ao esforço para a sistematização das questões nacionais. Já em 1919 se cria a Propaganda Nativista por um grupo do qual participa Jackson de Figueiredo. Deste mesmo grupo se origina a Ação Social Nacionalista, em 1920.  

O ano de 1922 encerra ampla significação: ano do Centenário da Independência; das transformações literárias do Modernismo; do início das insurreições político-militares que confluíram para a denominada Revolução de 1930; da criação do Partido Comunista Brasileiro e ainda do Centro Dom Vital. 

O Movimento Modernista de 1922 representa artisticamente estas circunstâncias determinantes tanto da Propaganda Nativista quanto da  Ação Social Nacionalista, formadas dos chamados pensadores da ordem e do progresso: eles rejeitam a revolução devido às destruições que ela promove. Em breve passagem, João Luiz Lafetá aclara o sentido sócio-histórico daquele movimento artístico: "os artistas do Modernismo e os senhores do café uniam o culto da modernidade internacional à prática da tradição brasileira"

Dentro deste universo de preocupações, Jackson de Figueiredo lança pela primeira vez em agosto de 1921 a Revista "A Ordem", sob sua direção, e funda em 1922 no Rio de Janeiro o Centro Dom Vital (21). Igualmente neste ano de 1922, aparece a Confederação Católica, mais tarde convertida em Ação Católica Brasileira

Ambos, o Centro Dom Vital e a Revista "A Ordem", são manifestações do que se deu o nome de Escola Católica, consequência do processo de restauração do espiritualismo, depois do quase predomínio do Positivismo ou do Evolucionismo no Brasil. A restauração é empreendida por Farias Brito (1862-1917), que acabou por revivificar o Catolicismo (22).

Na Escola Católica desperta interesse, dentre outros aspectos, a ação política de Jackson de Figueiredo, uma nova fase do Catolicismo, que projeta todo o seu ardor no combate ao Positivismo ou ao Evolucionismo, defendendo o conservadorismo, particularmente o de Joseph de Maistre, apelidado por ele de "Profeta da Esperança" (23).  

Joseph de Maistre e o Visconde de Bonald, por intermédio do Conde de Saint-Simon, legam muitas de suas ideias a Auguste Comte, criador do Positivismo.

O líder da "Action Française", Charles Maurras (1868-1952), bastante presente nas citações de Jackson de Figueiredo, filia-se ao Positivismo e ao Evolucionismo. Monarquista e católico, Maurras é submetido a dupla condenação durante sua vida: da Igreja Católica em 1926 e da França em 1945, neste último caso à prisão perpétua por colaboração com o inimigo, quando também acaba excluído da Academia Francesa. 

Em suas Reflexões Sobre a Revolução de 1789, Charles Maurras destaca a Lei Le Chapelier, de 14 de junho de 1791. Trata-se da lei responsável pela eliminação das corporações na França, que confirma a proibição de greves e de associações de trabalhadores. Suprimindo os preceitos feudais, esta lei colabora na construção da sociedade burguesa. 

Aludindo aos atos legislativos mais importantes da Revolução Francesa de 1789, nas Reflexões... Charles Maurras mostra que a Lei Le Chapelier significa crime contra a organização dos trabalhadores, sujeitando o operário e o empregador às mesmas normas, igualando um com o outro. 

Afirma então Maurras:

"A história dos trabalhadores no século XIX caracteriza-se pela ardente reação do trabalhador por ninguém romper seu isolamento de "indivíduo", imposto pela Revolução e mantido pelo liberalismo".

De sua parte, Jackson desaprova os positivistas brasileiros, mas reconhece o tradicionalismo da obra de Auguste Comte e dos postulados do Positivismo, seguidos por Charles Maurras. 

Jackson de Figueiredo contesta os que no Brasil, por meio da demagogia, provocam a anarquia militar, impedindo a vitória do candidato natural à sucessão de Epitácio Pessoa, durante a Primeira República, perturbando com isto a ordem existente. Na política brasileira, Jackson defende maior respeito à lei, fortalecendo a noção de ordem e o sentimento de autoridade na vida nacional. Exige sempre a ordem e nunca a revolução. 

A base conservadora de Jackson de Figueiredo repousa sobre o Catolicismo, visto por ele como opositor declarado da revolução, em todos os seus matizes...(...) "A crença obriga..." (...) "A própria História nos demonstra", diz Jackson, "que uma única moral política foi verdadeiramente vivificadora, organizadora, civilizadora: a moral política decorrente dos preceitos religiosos e morais da Igreja Católica"

Para Jackson de Figueiredo, a ruptura do mundo do Catolicismo inicia-se com a Reforma Protestante. De acordo com seu pensamento, surge desta Reforma o fantasma de uma liberdade sem nenhuma realidade concreta, a não ser suas criminosas consequências, como no Ocidente o desaparecimento da monarquia cristã e sua transformação na abominável monarquia liberal ou na "tirania da incompetência",  que tem sido a dos governos democráticos, a dos republicanos, criadores da ordem revolucionária, anticristã, impossível de manter-se por muito tempo

Jackson de Figueiredo declara que é necessário aceitar como máxima do viver a afirmativa de Joseph de Maistre, segundo a qual a revolução deve nos ser tão odiosa que "não é mesmo a contrarrevolução o que se tem a fazer; mas o contrário da revolução".  

Jackson condena o individualismo revolucionário, prevendo reação cada vez maior contra ele, em toda parte, pois a humanidade há de salvar-se, mesmo porque as portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja, e esta sempre abrigará eternamente, nela Deus colocou o segredo da ordem e da justiça. 

Seu conservadorismo repele qualquer tipo de revolução. Assim, sustenta que: "A revolução é mesmo o suicídio, pela menos a tentativa de suicídio dos povos".

Conforme Jackson, a história significa a experiência da razão social em marcha para o ideal da sociedade cristã... Entende que as classes conservadoras jamais foram opressoras; elas são o meio termo entre os opressores de cada momento e os sofredores de sempre: a massa inteligente e trabalhadora...

Ao discorrer sobre o Brasil, Jackson de Figueiredo quer ver determinada a tradição realmente brasileira, capaz de guiar o verdadeiro espírito histórico da nacionalidade. Diante das condições especiais dos povos americanos, chega a admitir que a revolução nem sempre tem caráter negativo, como o das nações da Europa. Também neste ponto permanece fiel a De Maistre que garante a existência de revoluções legitimadas pela Providência; com relação ao Brasil, Jackson diz que a tradição brasileira se constitui durante o Período Colonial, mas somente a revolução contra a metrópole portuguesa oferece-lhe o caráter formal (24).

Com sua atuação viva e até apaixonada, Jackson de Figueiredo doutrina e cria seu círculo, influi no interior do Catolicismo brasileiro e fora dele. Em nossos dias, o Centro Dom Vital e suas obras já não ressoam no público. Igualmente o grupo, antes reunido em sua volta, não mais subsiste. Mas disto não se conclui que sua influência cessou: manifestações conservadoras presentes na sociedade brasileira mostram, às vezes de forma difusa, traços da conduta e do pensamento de Jackson de Figueiredo. 



Três Momentos



Esses três momentos marcantes da atitude conservadora, como outros tantos momentos, se inspiram em doutrinas, que compreendem concepções de mundo ligadas a grupos da sociedade, exigindo o conhecimento do espaço e do tempo em que elas se apresentam. 

Usualmente, o conservadorismo encontra prosélitos em vários grupos e este fato não quer dizer que ele esteja mais ou menos distribuído por toda a sociedade, ou que não se misture com certa camada social ou com certa classe social. Ao contrário desta indeterminação, o conservadorismo prende-se particularmente à concepção de mundo produzida pelos membros camada ou de uma classe social.

Apesar das variadas condições de cada momento, nota-se uma linha de semelhança: consistem em reações decorrentes da necessidade de aceitar o existente como se fosse a ordem definitiva e natural, a ordem estática e anti-histórica, a ordem perfeita e basicamente hierárquica, a eterna verdade. 

Porém, nem sempre o conservadorismo aceita a ordem existente: em geral, ele busca restabelecer a ordem passada, definitiva e natural, estática e anti-histórica, perfeita e hierárquica, a eterna verdade, a ordem ideal a ser perpetuada.  

A partir dessa ordem presente ou passada, qualquer transformação significa antes de tudo maior possibilidade de destruição que de progresso.

O conservadorismo rejeita os acontecimentos revolucionários, como, por exemplo, o terror ou a destruição da propriedade. O conservadorismo incorpora a contrarrevolução, vê-se como defensor do que considera a ordem definitiva e natural.

Em A Decadência do Ocidente, Oswald Spengler (1880-1936) ataca o partido também com tal argumentação: "O partido não é o produto natural de uma raça, mas um agregado de cabeças..."; o partido "é o inimigo mortal da ordem social naturalmente estabelecida..."; "o partido é sempre prisioneiro da ideia negativa, destruidora e uniformizadora da igualdade..." 

Por outro lado, na década de 1920, em A Rebelião das Massas, José Ortega y Gasset (1883-1955) apresenta o conservadorismo de forma direta, sem rodeios; abandona qualquer tentação aristocrática, qualquer preconceito originário da aristocracia, e anuncia o perigo das ações pré-revolucionárias, que podem colocar em risco a subsistência da sociedade democrática e liberal.

Christopher Lasch parece defrontar-se com novos tempos para apregoar o tempo que passou. Se, para Ortega y Gasset, as massas põem em perigo a cultura ocidental, corrompendo-a com seu egoísmo e conduzindo-a à crise, para Lasch, as elites desempenham agora esta função nociva. 

Em A Rebelião das Elites e a Traição da Democracia, publicado em 1995, Christopher Lasch preocupa-se em demonstrar que as massas assumem o conservadorismo de forma mais clara do que seus dirigentes, abandonam a revolução e creem nos limites da natureza humana. De sua parte, as elites não se relacionam com as massas e não atuam como atuaram na vida já passada. 

O conservadorismo de Lasch transporta-o até o futuro histórico, para lá revelar-lhe o passado, em ritmo indignado:

"Uma vez foi a "rebelião das massas" que se considerava ameaçando a ordem social e as tradições civilizadoras da cultura ocidental. Atualmente, a principal ameaça vem daqueles que estão no topo da hierarquia social. Esta notável mudança nos acontecimentos confunde nossas expectativas quanto ao curso da história e coloca em questão antigas hipóteses" (25).  




(Cf. Vieira, Evaldo - Poder político e resistência cultural - Campinas-SP: Autores Associados, 2016, Capítulo III)