terça-feira, 3 de março de 2015

O método na interpretação das criações culturais

Existem distintas maneiras de fazer-se a interpretação das criações culturais, seja obra baseada no senso comum, seja obra baseada no bom senso, de maior coerência interna, na ciência ou na arte, nesta última tida como obra-prima ou obra de arte. 
O senso comum e o bom senso mostram que o homem produz sua criação cultural, qualquer que seja ela, em dois planos, como afirma Vasco de Magalhães Vilhena:

"...um constitui o chamado conhecimento espontâneo; é aquela forma de saber vulgar que resulta quase sem esforço, não-intencionalmente, da experiência humana de todos os dias (por isso se lhe chama também conhecimento empírico - da palavra grega empeiria, que significa experiência). A outra atividade, que já é fruto de uma concentração particular da atenção e que resulta de um esforço mais ou menos pronunciado, despendido em vista de um fim determinado, cabe o nome de conhecimento reflexivo ou saber crítico. (...) Uma primeira diligência fundamental do espírito é a superação do saber espontâneo". 

Porém não há obra gerada pelo ser humano, concluída ou não, capaz de ser inteligível à razão ou pela sensibilidade, a qual não seja interpretada, por meio do método, por meio de um antimétodo, e de acordo com alguma ideologia. 

Veja-se o exemplo da Sociologia da Literatura

Esse campo de interpretação da obra literária possui muitos estudos representativos, de autores diferentes como G. Lukács, L. Goldmann, J. Leenhardt, U. Eco, M. Waltz, T.W. Adorno, M. Horkheimer, W. Benjamin, etc.. Nesses estudos, e em outros, não se pode desconhecer as questões metodológicas e ideológicas, de maneira a não considerar iguais obras e interpretações desiguais.

As ideologias são visões de mundo; maneiras de sentir, agir e pensar o homem e o mundo, construídos por sujeitos plurais, como grupos sociais ou classes. Assim entendidas, as ideologias atuam como principais criadoras dos métodos de interpretação. 
Como caminhos teóricos de interpretação, construções racionais da realidade, os métodos distinguem-se pela sua unidade (excluindo elementos fundamentais de outros métodos, logo excluindo o ecletismo), pela visão de mundo e pelo seu grau de explicação, porque os métodos não são iguais na explicação, nem explicam tudo. 
Apesar de repelir os métodos, o antimétodo também expõe visões de mundo: o ceticismo; a negação de explicar o homem e o mundo; quase sempre recusa a realidade real; a vida humana e a vida natural acham-se em fragmentos e em pedaços. Para o antimétodo, as ideologias reduzem-se a simulacros e disfarces. 

Verifiquem-se nas palavras de Jean Baudrillard a rejeição da "realidade real" e a fragmentação do mundo:

Se a realidade existe, a gente não precisa acreditar nela. Pois, se assim fizermos, ela se torna objeto de credo.
Ou então:

Assim como se pode dizer `estamos na chuva´, pode-se dizer `estamos na pós-modernidade´. Trata-se de um conceito lata de lixo, onde podemos colocar tudo, principalmente os vestígios que restam das antigas ideologias e valores. O pós-modernismo é uma zona vaga onde se encontram esses restos errantes dos quais não sabemos nos livrar. 

A Sociologia da Literatura  compreende investigações diversas, tanto do tipo literatura como produto do consumo como do tipo literatura como criação social. Existe uma longa série de tendências interpretativas da obra literária desde o século XIX, originadas de métodos filosóficos mais distintos. Os escritos de Georgy Lukács demonstram bem a utilização de métodos diferentes: no início se serviu do método neokantiano e posteriormente do método hegeliano-marxista. Tal deslocamento metodológico não ocorreu simplesmente por mero arbítrio e sim pelas alterações ocorridas no mundo ideológico de Lukács.
Ele contribui à Sociologia da Literatura com os conceitos de forma e de estrutura significativa. Para Lukács, as formas constituem verdadeiras essências, relações intemporais entre o homem e o absoluto (o universal). L. Goldmann, um aluno de Lukács, examinou com mais pormenores as estruturas significativas. 
Ainda empregando a metodologia hegeliana-marxista, certos pesquisadores da chamada "Escola de Frankfurt", como T. W. Adorno, M. Horkheimer, W. Bejamin, H. Marcuse, buscam outras dimensões da vida social, além de questões meramente sociológicas, inda da criação das obras culturais até seu consumo público. Nascem daí os estudos sobre a "obra de arte na época da reprodução mecânica" e sobre a "indústria cultural". Dentro desses limites é possível integrar o livro Mimesis, de E. Auerbach. 
Lucien Goldmann inspira-se nas contribuições metodológicas do jovem Georgy Lukács, embora dentro do universo da língua e da Sociologia francesas, distinto dos autores da Sociologia de língua alemã, acima mencionados. Mediante a análise interna do texto (um conjunto de significações), Goldmann pretende explicá-lo, e isto somente é possível para ele por meio da inserção deste conjunto em um conjunto significativo mais abrangente: - o grupo social
Como se pode verificar, a Sociologia da Literatura investiga seu problema inicial: que relações mantêm a literatura e a sociedade?
As pesquisas contribuem para a ampliação destes problemas, qualquer que seja a perspectiva de análise. O estudo microssociológico de grupos tem justificado importantes análises de visão de mundo, onde o objeto empírico são as mediações entre o grupo e o escritor. Este objeto empírico normalmente exige dupla análise: a sociológicas e a psicológica, mesmo que não se deva fragmentar a realidade estudada entre Sociologia e Psicologia, como se fosse cabível desvincular inteiramente uma e outra. 
O pensamento não opera no "vago" e no "abstrato", ou no espaço "isolado" e "transcendente". 
A Filosofia sempre deu atenção à noção de totalidade, isto é, a unidade e a multiplicidade indissoluvelmente ligadas, resultando num conjunto ou num todo. A começar de G. F. Hegel, a totalidade  implica que "o caminho do conhecimento vai do fenômeno à lei, da manifestação ou aparência superficial à essência escondida". A essência ou a lei estão contidas no fenômeno ou na aparência, independente do nome dado a elas. 
Deste maneira, segundo Hegel,


tudo é um todo - e tudo está no todo,


- ou segundo K. Marx - ...o homem apropria-se do seu ser universal de maneira universal, portanto como homem total [Manuscritos de 1844].


Há ainda pesquisas em sentido diverso: visa-se a leitura minuciosa do texto. Mas estas pesquisas não ultrapassam o significado interior e isolado da obra analisada. Neste sentido, as técnicas da Semiologia da Literatura poderão fornecer à Sociologia da Literatura seu principal auxílio, pois elas levantam as estruturas profundas do texto. Os recursos da Semiologia e da Sociologia da Literatura poderão conceber pesquisas mais precisas, porque as hipóteses passarão por verificações tanto nas estruturas profundas do texto quanto na inserção do texto na realidade dos grupos, das estruturas mentais ou das visões do mundo. 
Não se pode admitir, portanto, que os estudos de Sociologia da Literatura sejam confundidos com as análises impressionistas realizadas na área. Ao contrário, os escritos sociológicos procuram o máximo possível de rigor metodológico, e se este rigor só é alcançado na significação geral da obra (incluindo grupos e classes sociais), nem por isto o grau de explicação é menor. 


Método e Sociologia da Literatura


Dentre os livros de Sociologia da Literatura, a obra de L. Goldmann obtém maior coerência por ter produzido uma multiplicidade de conceitos mirando a capacidade operativa de seu método estruturalista genético. Esta capacidade operativa é evidente, basta ler as várias análises feitas por ele. Outras abordagens metodológicas existem e, mesmo no estruturalismo genético, surgem pressupostos importantes.
O estruturalismo genérico apresenta proposições fundamentais. O princípio de que os fatos empíricos isolados e abstratos consistem no ponto de partida da investigação, é tão fundamental quanto o princípio de que o valor de um método deve ser depreendido da capacidade de compreender os fatos e de fixar suas leis e sua significação
Para Goldmann, o elemento básico do pensamento está em que não se atinge pontos definitivos de partida e de chegada, acontecendo consequentemente verdades relativas por intermédio de reflexões nada lineares. A relatividade das conclusões obriga o reconhecimento de que os temas são inesgotáveis em sua totalidade e em seus componentes. É esta totalidade que reveste de significação os componentes, do mesmo modo que o grau de conhecimento destes fornece o grau de conhecimento do todo. 
O estruturalismo genético aceita que o pensamento apenas representa uma parcela da realidade (a consciência possível). Levando-se em conta este fato, é que se considera alcançada a real significação da obra quando ela é integrada no conjunto de uma vida e de um comportamento, entendendo-se aqui comportamento de um grupo ou de uma classe social. 
Os escritos de um autor formam apenas parte de seu comportamento, sendo necessário o conhecimento de sua estrutura psicológicas e de suas relações com o meio social e natural. Neste caso, a biografia do autor poderia auxiliar a pesquisa no entendimento, em parte, de sua obra, caso isto seja possível. O que se obtém nas biografia é a visão arbitrário e fragmentada do autor, exigindo assim amplo controle metodológico e pouco valor dado às suas informações. 
É preciso lembrar também que a relação entre a vida de um autor e sua imaginação criadora é extremamente mediatizada. Existem inúmeras mediações entre as pretensões do autor e sua obra, motivo por que L. Goldmann distingue significação subjetiva de significação objetiva. A separação entre significação subjetiva e significação objetiva localiza-se no centro da questão do significado. Admitir que a intenção do autor nem sempre coincida com o sentido conseguido pela obra ao inserir-se na totalidade da vida social, é propor que o texto atinge uma relativa autonomia, não se devendo, por conseguinte, iniciar-se do autor para realizar a análise de sua obra. O mesmo sucede com as influências sobre o autor, desprovidas de valor explicativo
No livro El Hombre y lo Absoluto (Le Dieu Caché), Goldmann assenta o ponto fundamental na fixação conceitual de estruturas significativas, assim definidas por ele:

...os fatos humanos formam sempre estruturas significativas globais cujo caráter é ao mesmo tempo prático, teórico e afetivo e (...) estas estruturas só podem ser estudadas positivamente - ou seja, ser explicadas e compreendidas - no contexto de uma perspectiva prática fundada na aceitação de determinado conjunto de valores.

Teoricamente, o conceito de estrutura em qualquer campo de pesquisa das ciências humanas, não se distingue qualitativamente do mesmo conceito em ciências naturais. Somente pela função normativa que lhe é peculiar, a estrutura poderá explicar-se, uma vez que o sujeito do estudo e o seu objeto pertencem à mesma realidade social. Nas ciência humanas qualquer análise se processa dentro da sociedade, vinculando-se à sua vida intelectual, a qual não passa de parcela da vida  social, que poderá vir a transformá-la, segundo sua importância e eficácia. 
Em ciências humanas, consequentemente, o autor da investigação parcialmente e por meio de inúmeras mediações participa do objeto analisado. O pesquisador deve esclarecer em seu trabalho o caráter significativo do comportamento humano, lembrando-se que todo comportamento significa resposta de um sujeito individual ou coletivo destinada a transformar as condições dadas, no sentido de suas aspirações. 
O principal instrumento de pesquisa de inteligibilidade desse comportamento é a estrutura significativa, que é de uma só vez realidade e norma, porque determina ao mesmo tempo o sujeito e o ponto de tendência da sociedade. As criações culturais e, claro, as criações literárias, como fatos humanos, integram-se num conjunto de estruturas significativas capazes de dar-lhes a significação objetiva. Esclarecer a estrutura significativa específica quer dizer delimitar o objeto presente na realidade social e também separar o que existe nele de essencial e de acidental. 
Em outra direção, porque se refere ao universo semântico, e resguardadas as diferenças orgânicas de cada método, A. J. Greimas estabelece o mesmo raciocínio ao tratar das vinculações entre Linguística Estrutural e Poética, como abaixo:

Admite-se que os objetos poéticos, embora possuam sua especificidade, pertencem ao domínio literário, o qual se desprende, com sua articulação própria, do universo semântico que compreende a totalidade das significações recobertas por uma língua natural

O caráter de totalidade aqui se dá quanto ao universo semântico, e do mesmo modo é possível estabelecer-se um conjunto de partes, com traços específicos e autônomos. 
No entanto, se o processo de elaboração teórica proporciona semelhança entre L. Goldmann e A. J. Greimas, nem por isto as discordâncias deixam de aparecer. 
Note-se que em Greimas a totalidade das significações forma o universo semântico (verdadeiro demiurgo), enquanto em Goldmann a totalidade das significações encontra-se no comportamento individual, e mais fortemente no comportamento de grupo ou de classe do autor, que é um sujeito singular e um sujeito plural, ao mesmo tempo
As operações teóricas de ordem metodológica em Sociologia da Literatura poderão ser enriquecidas com o estudo do universo semântico fornecido pelo texto, desde que, partindo do conjunto de significações pertencentes a uma língua natural, se estudem os valores contidos nestas significações e a gênese deles. 
O estruturalismo genético não opõe a compreensão à explicação de determinado fato humano. Aliás, ambas são processos intelectuais idênticos, mas com perspectivas diversas. 
Compreende-se certo objeto quando se descreve o mais minuciosamente possível uma estrutura significativa, imanente ao fenômenos estudado. Em seguida, a explicação ocorre à medida que se integra esta estrutura constitutiva na estrutura imediatamente abrangente. Continuando, ao se considerar como objeto de pesquisa a estrutura abrangente, o que até então era tido como explicação se torna compreensão, e proposições explicativas deverão decorrer do seu relacionamento com nova estrutura ainda mais ampla.
A estrutura significativa de caráter explicativo não necessita forçosamente de ser explorada em todos os seus pormenores. Ela precisa sim ter levantados aqueles traços componentes da gênese da obra analisada. 
Assinala L. Goldmann:

...o estudo de um objeto - texto, realidade social, etc. - só pode considerar-se suficiente quando se deslindou um estrutura que informe de modo adequado acerca de um notável número de dados empíricos, sobretudo dos que parecem apresentar importância particular, a fim de que seja, senão inconcebível, ao menos improvável que outra análise possa propor uma estrutura distinta que chegue aos resultados ou a resultados melhores.  

A compreensão do texto, com a finalidade de configurar a estrutura significativa, deve ser exaustiva e ordenada, sem que haja possibilidade de encontrar-se outra diferente no texto. A compreensão do texto busca destacar apenas os traços ligados à gênese dele. Em vista disto, a compreensão coloca-se como problema no texto, devendo surgir de dados empíricos, submetidos a processos de estruturação e de desestruturação. Tais processos  não permitem que seja realizado um estudo destes dados nas condições em que se apresentam. 
A explicação situa-se em realidade externa à obra, quando a estrutura de compreensão e a estrutura de explicação devem ter variações concomitantes ou relações funcionais. 
L. Goldmann e J. Piaget possuem noções semelhantes de estrutura, desde que se exclua a característica de processo autônomo de equilíbrio, exposta por Piaget. 
Comentando o conceito de estrutura apresentado por J. Piaget, em seus Étude d´epistemologie génétique [p.34], Goldmann concorda que ele traz componentes indispensáveis à definição, acrescentando, porém, que existem estruturas dinâmicas e não de equilíbrio. 
Por fim, é preciso dizer que os estudos metodológicos introduzem em geral questões relacionadas à ideologia, ampliando o campo de pesquisa. 



Bibliografia 


GOLDMANN, Lucien. El hombre y lo absoluto (Le Dieu caché). Barcelona: Península, 1968, p. 7.
GREIMAS, A. J. Las relaciones entre la Linguística Estructural y la Poética. In: Linguística y comunicación. Buenos Aires: Nueva Visión, 1971, p. 9. 
LAPOUGE, Gilles. Com provocações, Baudrillard anunciou o fim da "realidade real". In: Estado de S. Paulo, 11 mar. 2007, Cultura, p. D7 e D10.
LEFEBVRE, Henri. A noção de totalidade nas Ciências Sociais. In: Materialismo Dialéctico e Sociologia. Lisboa: Presença, s/d, p. 34-35, 39-41, 44, 48.
VILHENA, Vasco de Magalhães. Pequeno Manual de Filosofia. Lisboa: Sá da Costa, 1958, 2a. ed., refundida e ampliada, p. 48. 









segunda-feira, 2 de março de 2015

Roteiro para estudar Política Educacional do Brasil

A elaboração de um roteiro, ou melhor de um itinerário, para o estudo da política educacional do Brasil, forçosamente concentra determinada matéria eleita pelo seu autor. 
No presente caso, a temática selecionada jamais põe fora outros tantos elementos, tão imprescindíveis, ou mais, do que os aqui esboçados. Este roteiro se sujeita, portanto, ao destino de ser roteiro, isto é, de ter serventia para indicar situações e direções, a respeito da política educacional. 

1. Tenho asseverado em várias ocasiões que a política social manifesta estratégias governamentais, com a finalidade de interferir na correlação de forças sociais. A política social acompanha as determinações do chamado processo de desenvolvimento econômico. Neste mesmo sentido, certa vez expus essas ideias da seguinte forma: - apolítica econômica e a política social compõem uma totalidade: o econômico é social e vice-versa, ambas as políticas representam estratégias manipuladas pelos governos brasileiros, com perdão de declarar o óbvio.  Tais políticas se nutem dos interesses e dos valores da classe dirigente, que exercita o poder político. 

2. Eis, pois, um campo sem neutralidade. colocadas no papel através dos procedimentos da planificação e posterior avaliação, as estratégias governamentais são às vezes destorcidas, e de tal maneira que nem sempre a estratégia exposta significa a estratégia traçada pelos dirigentes. Há aí certo despotismo do saber legalizado, exercido pelo tecnoburocratismo. E as forças da sociedade, em especial aquelas alijadas de qualquer influência no poder político, ficam submetidas em geral a deliberações que lhes são hostis ou ao menos indiferentes, suportam e reagem contra uma e outra estratégia. Os protestos normalmente tocam as pretensões da classe dirigente e também da tecnoburocracia, convertendo-se ou não em conquistas sociais, segundo as condições do processo histórico. 

3. De modo geral, a política social, enquanto estratégia governamental, corporifica um conjunto de diretrizes, de propostas, de metas a serem alcançadas por certo governo, em algum momento. Abstratamente, e por meio de parcelamento da realidade, a política social tem servido para designar diretrizes, propostas, metas, referentes à Educação, à Saúde, à Previdência Social, às Condições de Trabalho e de Lazer, à Habitação e à Assistência Social. 
Passar por exame a política social de determinado governo, requer examinar esta globalidade, raramente homogênea, em algumas oportunidades até com incoerências flagrantes e com propósitos e objetivos irrealizáveis. Analisar a política social do Brasil tem o sentido muitas vezes de responsabilizar-se pelo estudo de algo cansativamente repetido, com mostras de vulgaridade, ainda quando se tem presente a veemência das determinações históricas. Vejam-se as coleções de planos, de mensagens e de deliberações governamentais, que são representativas para avaliar a política social. Aliás essas coleções constituem expressivas fontes ao estudo neste âmbito, de indiscutível valor histórico. 

4. A política educacional, como parte integrante da política social, passou e passa pelas contingências desta, mas traz peculiaridades evidentes. A política social somente se delineou no Brasil a partir do princípio do século XX, ao acorrer intensa urbanização em diversas cidades; vigorosa industrialização sobretudo no Rio de Janeiro (capital da República) e em São Paulo; organizado (embora restrito) movimento operário sustentado por imigrantes; e notórias conturbações econômicas provocadas pela crise na produção cafeicultora. 
Este momento histórico assistiu ao aparecimento das primeiras medidas protecionistas, por sinal muito tímidas, de uns poucos setores do operariado, cujo exemplo mais famoso delas foi a Lei Elói Chaves (1923), criando Caixas de Aposentadoria e Pensões. Apenas depois de 1930, se registrou intervenção estatal mais sistemática nas relações de trabalho, e ainda nas áreas de educação, de saúde pública, de previdência social e de habitação. As raízes históricas de tal intervenção estatal se achavam nas características próprias da formação da sociedade capitalista no Brasil. 

5. A política educacional do Brasil geralmente participou da esfera governamental, aparecendo como quase ininterrupta preocupação do Estado brasileiro, desde a Independência. Se outras áreas da política social não suscitaram empenho, a Educação suscitou até na Constituinte de 1823, a primeira havida no Brasil. Após 1930, o intervencionismo do governo fez-se por inteiro e obsessivamente, gerando a falsa impressão de que a Educação fora alçada ao universo dos ideais maiores do país. 
A sociedade escravista do Império manteve cuidadosa vigilância com relação aos diversos setores da política social, cujas necessidades irromperam nas ruas da Primeira República, em inícios do século XX. Nos anos posteriores a 1930, estas necessidades, agora ampliadas, vieram a ser fecundo material à mobilização e à desmobilização popular, no jogo de poder decorrente da crise de hegemonia que se instalou. 
A situação da Educação é distinta, ao menos no sentido de que já na Independência a opção se realizara, bastando apenas as alterações de época. Optou-se pela educação de elite e, em torno dela, as políticas educacionais revelaram os anseios da classe dirigente, os quais não variaram excessivamente em termos educacionais. Esta educação de elite tem mergulhado, no curso do tempo, nas exigências da sociedade. Atravessou os reclamos da maioria da população brasileira e emergiu de novo com aparência renovada, praticando de novo a discriminação na educação. 

6. A política educacional do Brasil ocupou-se principalmente de reformas, depreciando a avaliação de outros temas. Como já observei, as reformas educacionais não reformaram, mas desmobilizaram eventuais movimentos neste campo. As propostas de melhorias de condições de ensino e de trabalho normalmente acabaram por tornar inseguros os educadores. As reformas deixavam entrever um novo mundo na educação, onde problemas elementares e seculares, como o analfabetismo, serão solucionados a curto prazo. A realidade, passado um pouco de tempo, faz ver que pequenas melhoras, se aconteceram, estavam acompanhadas de desmedidas alterações formais, recheadas quase sempre de modismos, experimentalismo e esquematizações. Note-se, por exemplo, algumas das principais reformas educacionais, implantadas depois de 1870: reforma "Leôncio de Carvalho" (1879), reforma "Benjamim Constant" (1890), código "Epitácio Pessoa" (1901), reforma "Rivadávia" (1911), reforma "Carlos Maximiliano" (1915), reforma "Luiz Alves/Rocha Vaz" (1925), reforma "Francisco Campos" (1931), reforma "Capanema" (1942), "Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional" (substitutivo Carlos Lacerda - 1961), reforma universitária (Lei n. 5.540/68 - sob a ditadura militar) e Decreto-Lei n. 464/69 - sob a ditadura militar), reforma do ensino de 1o. e 2o. graus (Lei n. 5.692/71 - sob a ditadura militar), Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n.  9.393/96 - sob governo de Fernando Henrique Cardoso).
Essa profusão de reformas indica que o problema não está nelas, mas no conservadorismo dos governos, partidários da educação de elite, que se gabam de empregar ideias e novas técnicas. Em nome da atualização e da satisfação das necessidades da população, reforma-se com a finalidade de conservar a situação existente no campo educacional. 

7. O analfabetismo, ou como se costuma dizer "a luta contra o analfabetismo" ou "a erradicação do analfabetismo", ilustra bem esse quadro da educação de elite. No Primeiro Império Brasileiro, as elites escolheram o estudo particular, com preceptor em suas casas, pois a educação da maioria das pessoas não surgia como necessidade fundamental. No Segundo Império, ensinar a ler e a escrever ganhou alguma importância, apesar dos efeitos do Ato Adicional de 1834, eximindo o governo imperial de qualquer obrigação a respeito do ensino primário, e transferindo-a às províncias. Com a República, cabe lembrar que em 1920 o atendimento escolar ficava bem próximo do praticado em 1909.
Em pesquisa recente, verificou-se que todos os governos brasileiros, estabelecidos no período compreendido entre 1951 e 1985, propuseram a "erradicação da chaga do analfabetismo", lançando campanhas de alfabetização e afirmando que isto representava a vontade política nacional...

Bibliografia

VIEIRA, Evaldo. Estado e miséria social no Brasil. 4a. ed. S. Paulo: Cortez, 1987.

VIEIRA, Evaldo. A República Brasileira: 1964-1984. 4a. ed. S. Paulo: Moderna, 1987.

PAIVA, Vanilda P. Educação Popular e Educação de Adultos. S. Paulo: Loyola, 1973.

RIBEIRO, Maria Luisa S.  História da Educação Brasileira. 7a. ed.  S. Paulo: Cortez, 1987. 

Evaldo Vieira - 1988 - atualizado.