TRATA-SE DE INTRODUÇÃO CONTIDA EM DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE MICHEL BERNARD, ORIENTADO POR LUCIEN GOLDMANN, COM BASE EM GEORGY LUKÁCS, NA ÉCOLE PRACTIQUE DES HAUTES ÉTUDES, PARIS.
MICHEL BERNARD, INTRODUÇÃO, in:
INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA
DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS, tradução de Evaldo A Vieira.
Título original: Introduction à une Sociologie des Doctrines
Économiques –Des Physiocrates à Stuart Mill.
Traduzido da edição MOUTON & CO, 1963, E ÉCOLE PRATIQUE DES
HAUTES ÉTUDES, PARIS.
INTRODUÇÃO
Nas poucas páginas desta introdução, pretendemos indicar as
reflexões que nortearam nossa pesquisa e delimitar o âmbito do nosso estudo.
Teremos de realizar algumas análises metodológicas e definir alguns termos
utilizados com mais frequência.
O título escolhido não nos satisfaz, mas qualquer outro título teria
sido tão vago. Nosso principal objetivo é situar as doutrinas econômicas dentro
do futuro histórico e confrontá-las com a realidade política, econômica e
social dos tempos em que foram concebidas, assim como com as correntes
filosóficas que estão passando por esses tempos. Isso nos levará a identificar
o significado dessas doutrinas como
expressão da realidade política, econômica e social de seu tempo e seu
significado como expressão das aspirações humanas e dos valores morais. Se
esta dupla abordagem arruína parte do prestígio científico destas doutrinas,
talvez permita ao leitor compreender melhor a sua génese, com as intenções e
objetivos de seus autores. É evidente que o título escolhido, embora abranja
mais ou menos este assunto, tem acima de tudo um valor indicativo.
O PROBLEMA DOS LIMITES DA OBJETIVIDADE CIENTÍFICA
Em um primeiro sentido, nosso estudo é uma reflexão sobre o problema
dos limites da objetividade científica no campo das ciências humanas Vamos estabelecer
alguns marcos sobre esse assunto. Acreditamos que não é possível estudar fatos
nas ciências sociais e humanas como coisas de fora. Quer queiramos quer não, o
teórico da Economia Política, por exemplo, faz parte de uma totalidade humana
em construção, da qual descreve um aspecto.
Todo fato econômico é um fato humano e, portanto, carregado de intenções
e significados históricos. Se o teórico pretende descrever esses fatos humanos
como coisas de fora, do outro lado do espelho, se negligencia o fato das
consciências, ele se expõe aos mal-entendidos mais cruéis, corre o risco de não
entender nada sobre os comportamentos que descreve.
Afinal, ele próprio faz parte dessa totalidade humana em construção,
toda carregada de intenções. O pesquisador não pode alcançar um conhecimento
objetivo e completo dos fatos que ele está tentando explicar. Enfrenta certos
limites. Sejamos claros, não é a objetividade em si que é posta em causa, nem a
honestidade intelectual do pesquisador. Negar seria rejeitar qualquer ciência
do homem, condenar-se a algum moralismo estéril ou a algum pragmatismo
irracional. Se existe uma verdade objetiva em relação à qual tendemos, esta
verdade não pode ser perfeitamente apreendida, assumida por ninguém. Como o
investigador faz parte da totalidade humana, estudada por ele, prenoções,
preconceitos, sentimentos, postulados o influenciam, aparecem como telas
deturpadoras entre o investigador e a realidade objetiva. Não podemos ignorar
esse condicionamento mental, essas categorias básicas que distorcem
parcialmente o julgamento do pesquisador desde o início. Além disso, o mundo
das ciências humanas é, por excelência, o mundo do complexo e do movimento, de
cada autor, na formulação de suas hipóteses, na importância que ele atribui aos
vários fatores nos quais está interessado, na escolha de perguntas que ele faz
ou deixa de fazer, é influenciado por um viés, por uma mentalidade social
preexistente.
Existe, por assim dizer, uma dupla verdade científica nas ciências
humanas. Uma verdade científica objetiva em relação à qual tendemos e, em um
nível inferior, uma verdade ao nível de nosso grupo social, de nossa época.
Depois de colocadas as categorias implícitas, escolhidas as perguntas e as
hipóteses iniciais, a pesquisa pode ser realizada com um espírito perfeitamente
científico e, observando os fatos e as relações entre eles, pode-se chegar a
resultados perfeitamente científicos e objetivos. Mas essa verdade científica
permanece extremamente parcial, e qualquer síntese baseada na adição dessas
verdades parciais dá uma visão distorcida da verdade global.
Este é o caso das principais doutrinas económicas que nos propomos
estudar. Elas contêm um grande número de análises científicas perfeitamente
válidas. Mas, como os pensadores pertencem a uma dada sociedade, a uma dada
classe, a um dado meio, eles não foram capazes de descrever, sem dar uma
interpretação distorcida da mesma, a realidade objetiva de seu tempo.
Mas esses limites do conhecimento objetivo não são limites rígidos.
A atenção e a lucidez do investigador, se não lhe der a certeza de que será
capaz de assumir plenamente a realidade objetiva, poderá permitir que ele escapasse
das armadilhas mais grosseiras, para às vezes ir além do horizonte intelectual
de sua classe, para reconhecer perspectivas que são as de outras classes. Sem
dúvida, esta é uma hipótese extrema, um esforço prodigioso. Se for infantil
negar o condicionamento social de uma doutrina econômica, seria igualmente
absurdo pretender confinar a abordagem intelectual do pesquisador dentro de um
determinismo mecanicista. Seria absurdo negar o papel libertador da
consciência.
Acrescentemos para terminar este capítulo a seguinte observação: é
impossível no campo das ciências humanas separar absolutamente as noções de
verdade e eficiência. Mais uma vez, não queremos de forma alguma louvar o
pragmatismo, mas como o mundo humano é o da consciência e da história, o
próprio fato de uma doutrina ser expressa desperta alguma ressonância na
consciência dos homens, e assim muda a situação objetiva que a doutrina procura
analisar. Uma doutrina que não dá um relato objetivo dos fatos no início, pode
tender a ser baseada nos fatos, quando se encontra com um grande eco nas
consciências. Os homens projetam em atos as imagens do seu universo mental. Em
contrapartida, uma análise conduzida com extrema lucidez por um pensador
solitário pode expressar uma realidade objetiva com mais verdade do que outra
doutrina. Se essa análise do pensador solitário encontra poucos ecos, se não
está adaptada ao estado de espírito dos contemporâneos, permanece ineficaz e,
portanto, é dominada pela realidade objetiva. Damos muitos exemplos disso no
decorrer do nosso estudo.
VISÃO DE MUNDO E IDEOLOGIA
Como um ensaio sobre os limites da objetividade científica das
doutrinas econômicas, nosso trabalho procura compreender e descrever as
filosofias ou, melhor dizendo, as visões de mundo destas doutrinas. O termo
"visão de mundo" tem a vantagem sobre o termo "filosofia"
de ser mais concreto, mais maleável e capaz de maior extensão. Uma tradução
francesa aproximada da expressão alemã "Weltanschauung", a visão de
mundo é uma imagem global da natureza do homem, da comunidade e do devir e, se
necessário, da divindade, uma imagem global das relações entre estas
realidades.
Aos poucos veremos a riqueza metodológica deste termo.
Digamos desde o início que estamos cavando, e as várias pesquisas
realizadas reforçaram nossa convicção de que, no centro de qualquer sistema, de
qualquer doutrina econômica, social ou política, está uma visão do mundo. Esta
visão de mundo pode ser implícita ou explícita. Em muitas doutrinas, na
verdade, a visão do mundo não está claramente formulada e exposta, ela
permanece na sombra. Mas há casos em que uma visão explícita do mundo, exposta
completamente pelo teórico, parece estar em desacordo com o resto de seu
sistema, parece ser contrariada por várias análises, de pretensões científicas,
que ele faz em outros lugares. Através dessas análises, pode-se perceber uma
forte visão de mundo implícita, diferente da visão de mundo explícita. Neste
caso, é a visão de mundo implícita que o autor expressa mais profundamente.
Isso não significa tirar nenhum valor da visão explícita do mundo. Ela
desempenha o papel de uma tela. Serve para esconder as falhas do sistema apenas
para o público quando o autor está ciente deste papel de tela. Mas acontece que
o próprio autor é enganado, quando não está ciente das contradições internas do
seu sistema. O conceito de visão de mundo está ligado ao conceito de ideologia.
Nenhum conceito é mais ambíguo que este, para o qual Gurvitch
descobre pelo menos catorze significados diferentes ou complementares. Achamos
perigoso tentar restringir o significado desse termo de forma abusiva desde o
início. Que ideologias são a expressão conceitual dos valores em que um grupo
de indivíduos acredita, que traduzem posições sociais ou políticas que defendem
e procuram justificar, enquanto a ciência observa ou explica, e absolve uma
classe social com apologética ou mistificação, não contestamos isso, e a
consciência de tais mistificações pode guiar hipóteses de trabalho, levando a
muitas descobertas. Mas nos recusamo-nos a admitir desde o início que
ideologias são apenas isso. Como em qualquer doutrina econômica ou social, os
elementos científicos propriamente ditos são misturados aos elementos de auto justificação,
preferimos tomar o termo ideologia no seu sentido mais amplo. Por ideologia, entendemos
qualquer sistema de conceitos que expresse, de forma racional, uma doutrina das
ciências humanas. Esta definição não nos permite julgar a priori o valor.
Existe uma ligação lógica entre a visão de mundo e a ideologia, pois
é sempre através de uma ideologia que uma visão de mundo é expressa. Uma visão
de mundo é, de certa forma, o núcleo de uma ideologia ou, em outras palavras, a
ideologia é o desenvolvimento de uma visão de mundo. A ideologia é, por
definição, até consciente, enquanto a visão de mundo pode ser imagem implícita,
obscura ou confusa na consciência. Mas, neste caso, a clareza ou a coerência da
ideologia pode ser sentida.
Imagem mais ou menos implícita na consciência do sujeito, a visão do
mundo, em um segundo sentido, também é a imagem ideal, a imagem arquetípica,
que nunca é totalmente assumida, explicada, desenvolvida, nos conceitos de
ideologia. É o que a ideologia tende a expressar sem jamais alcançá-la
completamente. Esta imagem ideal só pode ser desenhada após o fato,
referindo-se às mentalidades coletivas de um período, como aparecem nas obras
dos pensadores daquele período. Assim, pode-se dar, por exemplo, após o fato,
uma visão de mundo ideal do liberalismo econômico. É então um artifício, mas o
essencial é tomá-lo como tal. As visões de mundo implícitas ou explícitas dos
pensadores de uma época aparecem então como "aproximações" dessas
visões de mundo ideais.
VISÃO MUNDIAL E CLASSE SOCIAL
É no nível do conceito de visão de mundo que operam as conexões
entre as correntes filosóficas de uma época e a doutrina econômica estudada.
Mas ainda é este nível que é possível compreender as relações entre esta
doutrina e a realidade política e social da época. Concordamos com Goldmann
e Georg Lukács que uma classe social ou, mais precisamente, um determinado
grupo social corresponde a uma visão de mundo. Cada grupo social, assim que
toma consciência de sua originalidade, autonomia, interesses e aspirações,
tende a formar uma visão de mundo correspondente a suas aspirações e
interesses. Qualquer teórico que pertença ou pretenda pertencer a este grupo, e
defenda os interesses deste grupo, adota a visão de mundo deste grupo, ou
trabalha para formular uma visão de mundo mais alinhada com seus interesses.
Admitir tal afirmação não é necessariamente adotar o ponto de vista
marxista, desde que com Maquet
e, mais ainda, Gurvitch, sejam feitas as seguintes correções.
Em primeiro lugar, a relação estabelecida entre a classe social e a
visão do mundo é assumida como válida apenas para a era moderna, no Ocidente,
dentro de certas estruturas globais.
Em segundo lugar, admitir esta relação não significa recusar a
priori a existência de outras relações declaradas por outras sociologias do
conhecimento (por exemplo, as relações socioculturais de Sorokin. Com isso,
queremos dizer que o determinismo da visão de mundo da classe social não é um
determinismo mecanicista. Acreditamos numa verdadeira dialética de inter-ação
entre a realidade humana e as doutrinas que a querem expressar.
Finalmente, se podemos legitimamente formular hipóteses que atribuem
importância primordial ao fator do grupo social, não podemos reduzir a
complexidade da realidade e, em particular, de um trabalho humano, de uma
doutrina amadurecida durante um longo período de tempo, ao único determinismo
do grupo social, nem dar a nossas hipóteses de correlação o valor das leis
científicas do mundo físico. Só podemos dar seu valor explicativo e reconhecer
que eles representam aproximadamente a maioria dos fatos.
Vamos resumir nossa abordagem metodológica:
1) existem limites à objetividade científica no campo das ciências
humanas;
2) O teórico é influenciado pela mentalidade coletiva, preconceitos
e paixões de seu grupo social;
3) inerente a sua doutrina, sua visão de mundo implícita ou
explícita pode ser compreendida por essa doutrina;
4) sua visão do mundo é, na grande maioria dos casos,
aproximadamente, a visão de mundo do grupo social de seu interesse.
O conceito de visão de mundo parece-nos, em última análise, singularmente
rico e fecundo de um ponto de vista metodológico, pois só em seu nível as
diversas ligações entre os múltiplos aspectos da totalidade humana operam. Somente
em seu nível, é possível identificar os múltiplos significados das doutrinas
consideradas. As visões do mundo são, por assim dizer, as nebulosas do
pensamento.
ESQUEMAS
DE INTERPRETAÇÃO
Essa apresentação necessariamente resumida e
sem dúvida enfadonha, pareceu-nos necessária para entender nosso propósito e os
processos pelos quais queremos alcançá-lo.
Para
cada uma das doutrinas econômicas estudadas, teremos de descrever a visão de
mundo que lhe é inerente.
Com
isto, será possível desenhar esquemas de interpretação, criar redes
significativas.
Por um
lado, trata-se de confrontar a visão de mundo descrita com a realidade social e
política da época, de marcar as correspondências e discordâncias entre essas
visões de mundo e essas realidades, e de explicá-las.
Isso
nos leva a considerar a situação do autor estudado, a situação do grupo social
ao qual ele pertence. Até que ponto o autor expressa os interesses deste grupo?
Até que ponto ele continua prisioneiro de seus preconceitos e paixões? Em sua
luta pela objetividade científica, ele consegue ir além do horizonte, da
mentalidade desse grupo ou não? Qual é o papel e o valor da ascese intelectual,
da tomada de consciência?
Para
realizar esta pesquisa na perspectiva indicada, teremos de desmontar os
mecanismos da ideologia econômica e social do autor, para mostrar até que ponto
ela expressa, reflete ou amplia a visão de mundo. E mais: até que ponto ela
pode contradizer a visão de mundo explícita e prever uma visão de mundo
implícita muito diferente do mundo.
Para
desmontar os mecanismos da ideologia ainda é necessário estudar as máscaras,
artifícios e processos pelos quais o autor de uma doutrina, consciente ou
inconscientemente, tenta conciliar a verdade científica com os interesses de um
grupo social. Busca-se descrever as ilusões e armadilhas dos métodos que são,
ou afirmam ser, científicos.
É
dentro desse conjunto de análises que localizaremos as principais correntes
filosóficas que permeiam as doutrinas econômicas estudadas. É um projeto
instrutivo, mas em última análise superficial, o de examinar os sistemas como
puros palácios de ideias, calculando a dosagem de racionalismo, naturalismo,
idealismo da doutrina, independentemente do estudo do condicionamento objetivo.
É alcançar uma satisfação de pura retórica. As influências filosóficas só nos
interessam se conseguirmos explicar o porquê delas. As teorias filosóficas como
doutrinas econômicas dependem pelo menos parcialmente da realidade política e
social de uma época.
Uma
análise dessa realidade esclarece o mecanismo das influências filosóficas que
uma doutrina econômica sofre. Assim, a visão de mundo da doutrina considerada
expressa tanto certos aspectos das teorias filosóficas preexistentes como
certos aspectos da uma realidade política e social que também preexiste. Longe
de se contradizerem, as duas expressões complementam-se e estendem-se uma à
outra.
SIGNIFICADO
MORAL DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS
Se,
pelos confrontos que permite, o estudo das visões do mundo nos leva a
estabelecer o significado político e social das doutrinas estudadas, num
determinado momento nos leva simultaneamente a extrair seu significado moral ou
humano.
Aqui,
mais do que em qualquer outro lugar, estamos claramente separados de qualquer
metodologia de físico ou cientista. E também nos distanciamos de um marxismo
vulgar e mecanicista, que pretenderia reduzir toda doutrina, no campo das
ciências humanas, ao seu único significado objetivo. Através de situações
históricas, quaisquer que sejam os seus determinismos mais ou menos
restritivos, as doutrinas testemunham aspirações humanas que excedem ou
transcendem os interesses de uma dada sociedade numa determinada época.
Qualquer
visão do mundo implica mais ou menos claramente certas atitudes, certos padrões
morais, um certo julgamento sobre o bem e o mal, sobre os direitos e deveres
dos homens, sobre os valores morais que se trata de incorporar ou, ao
contrário, de inverter. Qualquer visão de mundo implica, em última análise, uma
certa opção, uma certa aposta no homem, referindo-se a um ideal humano, a uma
utopia.
Neste
sentido, há por vezes uma contradição entre a aparência da visão de mundo e a
concepção do homem nela implícita. Tal doutrina, que se apresenta como
humanismo, que afirma querer alcançar a felicidade de todos os homens, é na
verdade baseada no profundo desprezo ao homem concreto, preso na sua vida
quotidiana, ou admite implicitamente que a humanidade está dividida em duas
frações, cada uma dotada de uma moral diferente. É muitas vezes através do
estudo desse significado moral que é possível mostrar as falhas de uma visão de
mundo aparentemente harmoniosa. Em última análise, a ambiguidade de uma
doutrina econômica ou social reside no fato de que ela atende a três requisitos
abertamente contraditórios. Deve tender para a objetividade e esse requisito
científico pareceu por muito tempo ser o único que conservava o teórico, mesmo
quando obedeceu parcial e obscuramente aos outros requisitos.
Deve
ser adaptado à situação histórica. No domínio das ciências humanas, uma
doutrina é um guia para a ação. Não se trata de contemplar as leis de um mundo,
que de qualquer forma está em processo de se tornar, mas de influenciar a
direção desse tornar-se. Uma doutrina só se torna eficaz e, portanto, só mantém
validade, se estiver enraizada nas consciências. Por fim, toda doutrina, por
ter como objetivo a ação, por ser um projeto de homens, obedece a um requisito
moral, refere-se a um certo ideal humano. A harmonização dos três requisitos é
característica das grandes doutrinas, neste campo das ciências humanas,
daquelas que contribuíram para o desenvolvimento do conhecimento objetivo,
influenciaram seu tempo e cujas utopias mantiveram algum poder radiante. Por
outro lado, o choque dos três requisitos resulta sempre em algum tipo de
bloqueio ou falha. Vamos dar muitas ilustrações disso.
O
PLANO DA PESQUISA
O
nosso trabalho é apresentado como uma série de estudos de autores relativamente
destacáveis uns dos outros. Estes estudos começam com os Fisiocratas e terminam
em Stuart Mill e Bastiat, ou seja, por volta de 1848-1850, datas de publicação
de suas grandes obras. Não estudamos todos os autores de Economia do período
considerado, é evidente, mas apenas aqueles que nos pareciam os mais
importantes, cerca de dez no total. Foi necessário fazer uma escolha, e
qualquer escolha é discutível. Mantivemos o que normalmente se encontra nas
histórias das doutrinas econômicas. Com certeza, o estudo de Nassau Senior ou
Charles Comte, por exemplo, seria tão sugestivo quanto o de Ricardo ou
Jean-Baptiste Say sob certo ponto de vista. Correto ou não, pareceu-nos
preferível situar nas nossas perspectivas de pesquisa os líderes, antes de nos
preocuparmos com os seguidores. Como as doutrinas de Ricardo ou Say são
geralmente mais conhecidas pelo homem honesto do que as de Senior ou Charles
Comte, será mais fácil para o leitor acompanhar-nos em nossos desenvolvimentos,
criticar-nos na ocasião.
Podemos,
com razão, ser criticados por nos limitarmos a estudos de autores, e certamente
teria sido enriquecedor realizar estudo geral do liberalismo como uma visão de
mundo e expressão de uma realidade social. Mas este empreendimento nos parecia
ambicioso demais no momento. Teríamos feito julgamentos insuficientemente
diversificados ou sintetizados. O liberalismo inglês de 1780 difere do
liberalismo inglês de 1815, assim como este últino difere do liberalismo
francês da mesma data. Nossas análises das doutrinas de Smith, Ricardo e Say
ilustram esta afirmação. Cada um deles encarna um momento de liberalismo. Mas o
estudo global do liberalismo, nas perspectivas que indicamos, ainda está por
fazer. No máximo, reunimos alguns elementos que uma síntese futura será capaz
de conter. Se, por outro lado, tentamos um estudo global dos fisiocratas ou
socialistas utópicos, percebemos as insuficiências das análises a seu respeito,
análises que têm especialmente um valor indicativo.
Ainda,
os estudos dedicados aos autores não são exaustivos. Baseamo-nos principalmente
em suas grandes obras, nos grandes textos, lidos e relidos com espírito de
simpatia e adesão à abordagem do autor, assim como com espírito de lucidez
crítica. Nosso objetivo não é tanto fazer descobertas, mas lançar nova luz.
Poderíamos
finalmente pensar em limitar o assunto no espaço e no tempo. Também poderíamos
restringir o uso do método de pesquisa ao estudo de um único autor, um Ricardo,
um Jean-Baptiste Say ou um Sismondi, por exemplo, pois eles nos parecem autores
centrais no início do século XIX. Porém o que nossa pesquisa teria ganho em
precisão, teria perdido em poder sugestivo.
REFERÊNCIAS
PESSOAIS E DESCULPAS PREVENTIVAS
Nosso trabalho desafia a objetividade
científica das doutrinas econômicas estudadas. É óbvio que nós mesmos nos
referimos a certas opções filosóficas e a um certo ideal político e social.
Qualquer que seja o nosso esforço de objetividade, as referências certamente
guiaram a pesquisa. Melhor que o leitor seja avisado. A coisa mais honesta é
indicá-los claramente. Portanto, digamos que, filosoficamente, estamos nos
referindo ao personalismo cristão de Emmanuel Mounier e que, politicamente,
estamos nos referindo ao ideal de um socialismo democrático que, ao mesmo
tempo, são lições de Marx e Proudhon. Os juízos de valor que seremos levados a
fazer no decorrer do trabalho esclarecerão essas indicações.
Pedimos
desculpas pela aridez dos desenvolvimentos metodológicos. Há o risco de que
possam dar origem a mal-entendidos e confusões devido à maneira de exprimir.
Contudo, esta introdução mesmo demasiado longa, não nos permitiu formular tudo
o que tínhamos em mente. Só os comentários fornecidos pelo estudo dos autores
poderão esclarecer alguns pontos. Além disso, acreditamos que esse esforço de
sistematização, com suas insuficiências, que nos serviu no início, pode revelar
alguma fecundidade em longo prazo, abrindo alguns horizontes para outros
pesquisadores.
Esses
são sistemas em funcionamento que queríamos surpreender, não sistemas fixos.
Aqui termina nossa ambição. Depois disso, parece-nos que o projeto pecou por
excesso de ambição. Da grande quantidade de documentação, fizemos escolha
necessariamente muito limitada.[4] Algumas de nossas conclusões parecerão
insuficientemente fundamentadas e pelo menos questionáveis. Por outro lado,
algumas das análises podem ser julgadas insuficientes. No entanto, a falta de
dados suficientemente confiáveis, em muitos casos, obrigou-nos a uma prudência
talvez lamentável. Poderemos ser criticados por timidez ou exagero nos julgamentos.
No
final, apresentamos visão geral muito incompleta e muito desigual. Pelo menos
esperamos que ela mereça provocar discussão. Isso significa que aceitamos com
gratidão a crítica construtiva. Aplicando e adaptando alguns dos métodos que a
Sociologia do Conhecimento já aplicou em outros lugares, tentamos abordar as
doutrinas econômicas de maneira incomum. Ao fazê-lo, quaisquer que sejam as
nossas deficiências pessoais, esperamos ter preparado as bases para futuras
pesquisas. Mais do que o estudo exaustivo dos autores fixados, nosso trabalho é
apresentado como uma introdução a este estudo. Outros podem retomar nossa
investigação, autor após autor, tendo em conta nossos procedimentos
metodológicos, como as perguntas que fizemos e as respostas (provisórias) que
lhes demos.
Por
razões de conveniência, a fim de não alongar demais este trabalho e dar mais
profundidade às nossas propostas originais, muitas vezes nos limitamos a
resumir brevemente essa ou aquela teoria econômica que será encontrada em
outros lugares longamente. Também, se nos esforçarmos a escrever uma obra acessível ao público cultivado, pouco familiarizado com as doutrinas econômicas, é
óbvio que deveria ser mais útil tanto para especialistas como para todos
aqueles que já se dedicaram a uma ou outra destas Histórias de Doutrinas
Económicas, bem conhecidas dos estudantes.