1. A questão
A questão principal aqui reside no seguinte: por que os latino-americanos insistem em subir ou em descer na escala dos países subordinados, como povos saídos da independência no século XIX ?
Assim, por que os latino-americanos, na gangorra da subordinação interna e externa, persistem em causar dano à grande maioria de sua população, por meio de políticas sociais ou por outros meios, que lhe amarguram a existência e ordinariamente lhe roubam a vida, nas piores condições ?
Por que a perseverança no atraso e na dependência econômica abjeta ?Por que o infinito fosso interno entre a pobreza e a ostentação, a fome e a abastança, a tosca tecnologia e a alta tecnologia, tanto zona rural como na zona urbana ?
2. A colonização ibérica na América.
"As cidades de Lisboa e Porto podem ser, com justiça, consideradas os dois olhos de Portugal; aqui se acham centralizadas todas as riquezas do país e todo o seu comércio com as demais nações e com suas possessões nos Brasis; destas últimas, especialmente, depende não apenas a sua existência como povo, mas, igualmente, a imediata manutenção do trono" (Costigan, apud Stein, 1977, p. 25).
Em igual rumo, dos descobrimentos em diante, por seu lado, a Espanha criou intensa atividade mineradora capaz de sustentar sua economia interna e oferecer-lhe importância na Europa. Economia interna significava ainda custos administrativos, manutenção de funcionários eclesiásticos e seculares, dos vice-reis, dos juízes, dos governadores e capitães-gerais, dos funcionários locais, das guarnições militares e dos navios responsáveis pela escolta dos comboios.
A propósito de tais fazendas, Jerónimo de Mendieta (História eclesiástica indiana, 1595-1596) registrava: "[...] os fazendeiros, donos de lojas, proprietários de estâncias e compradores de gado costumam vender seus trabalhadores juntamente com as propriedades. -- O quê? Esses trabalhadores indígenas e empregados são livres ou escravos? --Não importa. Pertencem à fazenda e devem continuar nela a servir. Este indígena é propriedade do meu senhor" (Mendieta, apud Stein, p. 32, 33).
Referindo-se aos trabalhadores e à escravidão no Brasil, João Antônio Andreoni (ou André João Antonil - Cultura e opulência do Brasil, 1708), esclarecia: "Os escravos constituem as mãos e os pés do usineiro; sem eles, no Brasil, é impossível fundar, manter e ampliar uma plantação ou, sequer, operar uma usina" (Andreoni, apud Stein, p. 38).
Sobre essas distinções grupais, Alexander von Humboldt (Essai politique sur le royaume de la Nouvelle Espagne, 1807) observou: "Na Espanha, o fato de não se possuir ascendentes judeus ou árabes constitui uma espécie de título de nobreza; na América, a cor da pele (mais ou menos branca) indica a posição social do indivíduo" (Humboldt, apud Stein, p. 49).
"A justiça é vendida como mercadoria em qualquer mercado, onde aquele que possui dinheiro compra-a como quiser. Nesse mercado imperam o mistério e o segredo [...]. Além disso, os julgamentos são trazidos ao seu conhecimento antecipadamente e as partes interessadas preparam-se para deles fugir ou para evitar apelações por parte dos ofendidos [...]. Essa justiça assemelha-se a um verme corroendo a riqueza do reino" (Linares, apud Stein, p. 57).
O burocratismo civil e militar, administrativo e policial, enfim o burocratismo de qualquer setor estatal, mascarava o benefício particular, a exploração colonial e o apelo à força das armas para manter a conquista e a subserviência dos conquistados.
Instituíra-se, ao longo do tempo, o que se poderia denominar de liberdade corporativa, isto é, no interior da administração colonial, na América espanhola e portuguesa, as normas e as rotinas eram tidas como normais, ou ainda como naturais, inclusive a corrupção e a pancada. Por conseguinte, em caso de discordância sobre preceitos e procedimentos, esse burocratismo até poderia conceder a obediência, mas jamais o cumprimento deles.
"[...] os europeus ocidentais foram, por acaso, forçados ao trabalho ininterrupto nas minas, de segunda a sábado? A Europa ocidental conheceu algum processo que levasse ao sorteio anual de trabalhadores, violentando-os e compelindo-os a se transferirem, com suas famílias, utensílios domésticos e animais de carga, ao longo de centenas de milhas, até às entradas das minas? Os europeus ocidentais conheceram ocupações nas quais os empregados podiam calcular, com assustadora segurança, que seu tempo útil de trabalho não ultrapassaria 5 a 10 anos (cálculo feito pelos plantadores brasileiros com referência aos escravos negros utilizados na agricultura açucareira na primeira metade do século XVII)? Ou ainda -- não esgotando as comparações, mas sim demonstrando a imensa possibilidade de fazê-las --, poderia um funcionário público, europeu ocidental e de posição elevada na hierarquia burocrática, retornar de seu posto, completados quatro anos de serviço, com um excedente de renda avaliado entre 1 e 1,5 milhões de pesos-prata? Eis um exemplo: o duque de Albuquerque pagou, em 1715, ao governo de Madri, a importância de 700 mil pesos-prata, evitando assim as acusações de conduta irregular em sua administração. Se a resposta às questões acima colocadas for negativa (sic), então o historiador será levado a concluir que os europeus ocidentais da Península Ibérica utilizaram o direito de conquista para explorar, em benefício pessoal, os povos submetidos da América, obtendo dessa forma o que não poderiam obter na metrópole. O colonialismo sempre foi antiético" (idem, 65; cf. 13-14, 27-28,31, 33, 56-57, 62).
"[...] cerca de 1700 já se achavam demarcadas as feições características da política colonial. Os cargos públicos, em qualquer nível, eram encarados como um legítimo instrumento de obtenção de interesses privados à custa do bem-estar da comunidade. A extorsão, pela monarquia, de parte do espólio dos vice-reis simbolizava, legitimava mesmo, a venalidade, encorajava a corrupção e demonstrava sua incapacidade no controle da malversação da atividade pública. [...] Para a elite, a lei não passava de um conjunto de normas a serem honradas apenas nas brechas que apresentava; para os não-privilegiados, a lei era algo arbitrário e hostil, sem qualquer (sic) força moral" (idem, 66; cf. 76, 78-80, 82, 87, 91, 106).
3. Origens da política social na América Latina
3. Origens da política social na América Latina
Mesmo proibidos, os negócios com escravos negros reavivaram-se durante os anos de 1850.
O alto risco da luta política, travada no Senado e responsável pelo surgimento do Compromisso de Missouri, foi percebido na época, a ponto de Thomas Jefferson em 1820, aludindo ao Estado de Missouri, escrever: "É a questão mais importante que tem ameaçado nossa União. Até nos mais sombrios momentos da guerra revolucionária, eu nunca experimentei temores parecidos aos que me causa este incidente".
Também é verdade que o escravismo alcançou o que mais desejava, com o reconhecimento de que a zona de escravidão era sem limites nos Estados Unidos. Mas é acima de tudo verdade que, por outro lado, embora invalidado pela Declaração de Kansas-Nebraska de 1854, o anterior Compromisso de Missouri tinha fixado uma linha de demarcação, desde 1820, entre os Estados livres e os Estados escravistas, e isto foi um dos pontos fundamentais para a luta política, econômica e social.
Por ocasião da Guerra da Secessão nos Estados Unidos da América, como acontecera na Revolução Americana, que no século XVIII os criara, militantes progressistas de diversos países da Europa auxiliaram os norte-americanos na luta contra a escravatura, como aproximadamente duzentos mil voluntários alemães. Alguns revolucionários de 1848 formaram destacamentos, a exemplo do oitavo regimento de voluntários alemães.
Karl Marx e Friedrich Engels atuaram em favor do Norte livre, combatendo o escravismo, e Marx, ao que se sabe, pensou em emigrar para os Estados Unidos, em algum momento. Calculou-se que 186.017 negros serviram nos exércitos nortistas durante a Guerra da Secessão norte-americana, e morreram 68.178 deles.
Afinal, havia ambiente favorável. O Partido Republicano nos Estados Unidos fora fundado em oposição ao escravismo e, em 1856, este partido realizou sua primeira campanha presidencial com John Charles Frémont, explorador e depois general. Durante a Guerra da Secessão, Frémont foi comandante das tropas nortistas em Missouri até novembro de 1861 e na Virgínia em 1862, tendo sido retirado do comando, por Lincoln, em razão de seu radicalismo antiescravista. Mas, se em 1856 Frémont foi derrotado, em 1860 o Partido Republicano elegeu Abraham Lincoln à Presidência dos Estados Unidos, com o programa: "Liberdade de expressão; liberdade de acesso à terra; liberdade de trabalho, liberdade humana", após cisão no Partido Democrata.
Karl Marx, em artigo denominado "A Destituição de McClellan" e publicado no "Die Presse", de 29 de novembro de 1862, avaliou a conduta do presidente norte-americano:
"Lincoln, observa o Morning Star com razão, tem demonstrado ao mundo, por suas sucessivas manifestações de firmeza, que um homem pode ser lento, mas sólido, que avança com infinitas precauções, mas não recua. Cada passo de sua carreira administrativa seguiu com energia a boa direção que se fixou. Tendo partido da decisão de banir a escravatura dos territórios, eis enfim chegado à meta final de todo o "movimento antiescravista": extirpar esse flagelo do solo de toda a União. Ele já atingiu a gloriosa posição que consiste em recusar toda responsabilidade da União na manutenção da escravatura" (Marx, 1970, p. 239).
"Nós cumprimentamos o povo americano pela ocasião de vossa reeleição, com forte maioria. Se a resistência ao poder dos escravistas fora a palavra de ordem de vossa primeira eleição, o grito de guerra triunfal de vossa reeleição é: morte à escravidão! [...] Os operários da Europa estão convencidos de que, se a guerra da Independência americana inaugurou a nova época de impulso das classes burguesas, a guerra antiescravista inaugurou a nova época de impulso das classes operárias. Elas consideram o anúncio de nova era que o destino tenha designado Abraham Lincoln, o enérgico e corajoso filha da classe trabalhadora, para conduzir seu país na luta sem igual para a libertação de uma raça acorrentada e para a reconstrução do mundo social" (Marx, 1970, p. 239-241).
"O governo dos Estados Unidos entende que sua política não é, ou nem poderia ser, reacionária, mas ao mesmo tempo segue a linha adotada no princípio, ou seja, abstém-se em toda parte de uma política expansionista e de intervenções ilegais. Esforça-se em oferecer igual e exata justiça a todos os Estados e a todos os homens, e conta com os resultados benéficos desse esforço para sustentar-se interiormente e gozar do respeito e da boa vontade do mundo. As nações não existem por elas mesmas, mas para promover o bem-estar e a felicidade da humanidade, mantendo relações exemplares de boa vontade. É nesse quadro que os Estados Unidos consideram, no conflito atual contra os rebeldes escravistas, ser sua causa a mesma da natureza humana, e tiram a coragem para persistir, do testemunho dado pelos operários da Europa de que esta atitude nacional desfruta da sua iluminada aprovação e de suas simpatias verdadeiras" (Marx, 1970, p. 243).
"Mesmo os sicofantas que, ano após ano, dia após dia, têm realizado verdadeiro trabalho de Sísifo para assassinar moralmente Abraham Lincoln e a grande República que governou estão agora assustados com o clamor universal dos sentimentos populares e rivalizam entre si para semear flores de retórica em sua tumba aberta. [...] De fato, esse grande e bravo homem era tão modesto que o mundo só descobriu seu heroísmo depois que ele caiu como mártir" (Marx, 1970, p. 244-245).
Mesmo depois de suas independências, os dirigentes dos países latino-americanos visaram maior abertura de novas oportunidades para a melhor concretização dos próprios interesses, indo até a guerras civis em lugar do respeito a qualquer Constituição, ou a qualquer justiça social, ou a qualquer direito social, que protegesse a grande maioria da população.
"...a carabina resolveu o problema do nomadismo indígena nos pampas com a mesma eficiência com que o fizera nas pradarias norte-americanas" (Stein, p. 113).
Basta passar os olhos nas Constituições e nas legislações para concluir que aqui se firmaram o latifúndio sem investimento, a utilização irracional e injusta da riqueza, a regalia dos militares, o assistencialismo, a caridade dos poderosos e particularmente o favor, uma das chaves da corrupção.
Na América Latina há carência de sobriedade e de demais virtudes, tanto na monarquia quanto nas repúblicas. A corrupção evidente, elogiada e aperfeiçoada, fez e faz fortunas mirabolantes, rápidas ou simuladamente vagarosas, convertendo-se na escada muito desejada para a ascensão social e para a fama dos nomes de família, degenerando a vida em sociedade.
Política Social
Da segunda metade do século XX em diante, premidos pela exigência de remediar os déficits da balança comercial e da balança de pagamentos, saldando quase sempre juros e, às vezes, um pouco do principal da dívida para com os credores estrangeiros, os países latino-americanos têm-se submetido às decisões dos organismos financeiros internacionais, administrados pelos governos dos grandes centros capitalistas, que são os emprestadores.
4. Latino-americanos: construção de riquezas e vidas na miséria
Disse-lhe Dos Passos: "Os ditadores são criados por vocês latino-americanos". E respondeu-lhe Rómulo Gallegos: "Cierto!, pero ustedes son los que los amamantan" (Gallegos, 1982, p. 44).
"[...] a história não tem sido outra coisa a não ser uma sucessão de sapatadas da força contra o direito, o que levou um compatriota meu a afirmar a tese tão ao seu gosto do militar necessário para a manutenção da tranquilidade pública - certamente em correspondência à arbitrariedade governante -, e se também é verdade que esses militares não nasceram em Washington, este momento de questionamentos francos me conduz a replicar que, de algum modo, Washington os vem amamentando" (idem, 54).
"Cabe dizer que essa sede excessiva dos exploradores de nossa riqueza, que os induzem a apoiar e até mesmo a promover violações do direito e da ética, conta frequentemente com o respaldo do poderio norte-americano, o que faz com que este apareça como cúmplice de culpas das quais poderíamos nos redimir com maior facilidade, caso fossem totalmente nossas".
Não é desprezível, antes pelo contrário merece cuidadosa reflexão, a tese exposta por Karl Marx, que via no imperialismo britânico o futuro da política norte-americana. Passaram-se os séculos e os Estados Unidos da América ainda não reconhecem que participam da América, não são a América; que representam viventes na América, não são donos da América.
Em se mencionando os donos da América Latina, é bastante apropriado o perfil de D. Pedro, autor da independência do Brasil, traçado pelo historiador português Oliveira Martins:
"O príncipe que na América expulsava os portugueses dizia para Portugal que o seu propósito era salvar a colônia da tirania das Cortes que tiranizavam o rei seu pai e que a não ser ele fariam com que se perdesse a melhor joia da coroa portuguesa. Era sincero? Provavelmente fora sincero o pacto feito entre o pai e filho para explorarem em proveito próprio a situação, desacreditando na Europa as Cortes anarquistas com a rebeldia do Brasil por elas provocada, e confiscando na América o movimento de independência em proveito da dinastia" (Martins, 1978, p. 105-107).
"Duas palavras apenas sobre a sorte do príncipe de quem as coisas fizeram instrumento da separação da colônia. O destino que o esperava chegou depressa. A ilusão que, parece, chegou a cegá-lo, varreu-se de breve. Nobre de caráter, quando claramente se voltou para o Brasil não o atraiçoou, e talvez chegasse a acreditar-se o Bolívar da América oriental; talvez cresse que a independência era obra sua: a tanto vai muitas vezes a cegueira dos homens! Herói de si para si, julgava-se verdadeiramente soberano, imperador, déspota - um Napoleão americano, com jus à obediência passiva e à gratidão ilimitada dos seus súditos" (Martins, p. 105-107).
A dissolução da primeira Assembleia Constituinte Brasileira de 1823, servindo-se de armas e soldados; a Constituição outorgada de 1824; o funcionamento do Conselho de Estado; a conduta do Imperador Pedro I; e muito mais demonstraram a falta completa de apego à população do país, de parte dos governantes originados da independência do Brasil. Nem os promotores da independência, nem a chamada elite monarquista tiveram compromisso com garantias individuais, a não ser com as garantias delas mesmas, diante dos escravos e dos opositores bissextos.
O que significaria para eles política social?
Há muitas passagens esclarecedoras de sua atuação na América espanhola, extraídas de escritos como o Manifesto de Cartagena, a Carta de Jamaica, o Congresso de Angostura, a Constituição Boliviana e a correspondência.
No Manifesto de Cartagena, Simón Bolívar rejeitou o idealismo político, declarando:
"Os códigos que nossos magistrados consultavam não eram aqueles que podiam ensinar-lhes a ciência prática do Governo, mas os que têm formado alguns bons visionários, os quais, imaginando-se repúblicas aéreas, têm procurado alcançar a perfeição política, pressupondo a perfectibilidade da linhagem humana. De maneira que tivemos filósofos por chefes; filantropia por legislação, dialética por tática, e sofistas por soldados. Com semelhante subversão de princípios, e de coisas, a ordem social ressentiu-se da comoção, e naturalmente o Estado caminhou a passos largos para a dissolução universal, que de maneira veloz se realizou. [...] Ao abrigo dessa piedosa doutrina, a cada conspiração sucedia um perdão, e a cada perdão sucedia outra conspiração que se tornava a perdoar; porque os Governos liberais devem distinguir-se pela clemência. Clemência criminal!, que contribuiu para derrubar a máquina que ainda não havíamos concluído inteiramente! [...] O sistema federal, ainda que seja o mais perfeito, e mais capaz de proporcionar a felicidade humana em sociedade, é no entanto o mais oposto aos interesses de nossos nascentes Estado" (Bolívar, 1942, p. 14-15,18).
Na Mensagem ao Congresso Constituinte da República da Colômbia em 1830, Simón Bolívar de início cuidou do despreparo da população para as reformas, sem prestar atenção em suas próprias observação idealistas, as quais em si mesmas repelia:
"Árdua e grande é a obra de constituir um povo que sai da opressão por meio da anarquia e da guerra civil, sem estar preparado previamente para receber a proveitosa reforma a que aspirava".
"Tal é o espírito humano; amigo e amante do sobrenatural e da mentira, e indiferente ante a Natureza e a Verdade" (idem, 137, 177).
Os latino-americanos suportaram séculos de subordinação e de espoliação, construíram riquezas para viver na miséria, assistindo igualmente ao surgimento do Império sem súditos na América portuguesa, e de República sem povo na América espanhola.
Maria Graham, em seu Diário, anotou que, viúva recente, seus amigos não concordavam com sua decisão de morar só numa pequena residência do bairro do Almendral, em Valparaíso, porque aí nenhuma casa estava segura (Graham, apud Donghi, HDI, 1972, p. 16).
Em outubro de 1844, José Manuel Restrepo registrou em seu Diário Político que o correio de Magdalena tinha sido assaltado, talvez por "um descuido dos condutores, que confiavam demasiadamente na moralidade de nosso povos" (Restrepo, apud Donghi, HDI, p. 17).
De sua experiência na região de Buenos Aires, W. Mac Cann observou que os representantes da autoridade legal e da justiça, "os chefes militares da campanha e os juízes de paz, eram mais perigosos que os delinquentes (Mac Cann, apud Donghi, HDI, p. 18).
Túlio Halperin Donghi, ao mostrar a preferência à guerra civil sobre a paz interna, por parte de alguns, indica-os claramente:
E prossegue Donghi: [...] " a guerra civil é para muitos, dentro do Exército como fora dele, mais uma tentação do que um perigo" (Donghi, HDI, p. 53).
A América espanhola independente temeu a rebelião negra, olhando para dentro de si mesma ou para o Haiti, embora inexistissem elementos de realidade capazes de gerar ação rebelde dos negros. Mesmo em voga o risco da africanização, os bandos em luta armaram tropas negras, da Venezuela ao Peru e ao Rio da Prata. Nas proximidades de Lima, Flora Tristán visitou a casa e o engenho de um aristocrata e modelo de proprietária e industrial, o senhor Lavalle, escutando dele a apologia do chicote como estímulo necessário aos seus novecentos escravos e também os contemplando em sua semidesnudez (transformada em desnudez completa no caso de duas mulheres presas por deixarem morrer seus filhos em razão da falta de alimentos) (Donghi, HDI, p. 55-56).
No entanto, se tudo isso era possível, de outra parte, o perigo da rebelião social, e até a iminência dela, persistiam e expandiam-se na América espanhola, ante o culto da igualdade e a manutença da desigualdade; ante a hipotética demolição da antiga ordem social pelas guerras da independência, com abalo na instituição escravista, e apesar de tudo a verdadeira preservação da escravidão.
Ainda Flora Tristán notou que "no Peru os olhos azuis e os cabelos louros são os dois gêneros de beleza mais apreciados" (Tristán, apud Donghi, HDI, p.67).
Recordando-se dos invasores ingleses de Buenos Aires em 1806 e comparando-os com os soldados locais, Mariquita Sánchez anotou sobre "as milícias de Buenos Aires: é preciso confessar que nossa gente do campo não é linda, é forte e robusta, mas negra. As cabeças como uma circunferência, sujos [...]" Por outro lado, para Mariquita Sánchez, os invasores vestiam-se com o "o uniforme mais poético", que tinham efeito favorável "sobre a mais bela juventude", sobre as caras de neve", sobre "a limpeza destas tropas admiráveis"(Sánchez, apud Donghi, HDI, 67-68).
Ricketts A. Humphreys mostrou em 1940 que "entre os anos de 1790 a 1800 existia em Lima um capital comercial de mais de 15 milhões de pesos; ao passo que no ano que corre esta abaixo de um milhão" (Humphreys, apud Donghi, HDI, p. 101).
"Propriedades e fazendas ficam demais para nós, e o mesmo digo das casas, que amanhã desabarão com um tremor [...], tendo nós na Inglaterra cem mil libras esterlinas asseguradas no banco, gozaremos de uns 3% ao ano"
"Em minha situação mais vale ter na Inglaterra uma mina de quatrocentos ou quinhentos mil em dinheiro, que uma mina na qual nem eu, nem meus parentes, havemos de poder trabalhar" (Bolívar, apud Donghi, HDI, p. 108). Flora Tristán assinalou o arrependimento de um general e um bispo, dos Tristán y Goyeneche de Arequipa, ricos de nascimento, que assistiram à diminuição de suas rendas e à ameaça de seus capitais por terem permenecido no Peru, enquanto um membro deste clã se transferiu para a Espanha, com sua riqueza, e lá vivia em opulência (Donghi, HDI, p. 109).
102-103
Quando se pensa em justiça na América Latina, em particular na América portuguesa, sempre é preciso ter em vista os versos do poeta português Tomás Antônio Gonzaga, radicado durante muitos anos em Minas Gerais, no Brasil do século XVIII (Gonzaga, 1995, p. 44, 92, 99, 102-103, 105, 118):
Com tudo isso, de modo especial os grandes países capitalistas do Ocidente têm negado e negam à América Latina o desenvolvimento de uma civilização própria, considerando-a antes um mundo bárbaro, mal, inferior, primitivo, mestiço, estranho, indolente, pobre, imaturo, católico, latino, hispânico, ibérico, burocrático ou corporativo, sem instituições respeitáveis, incapaz econômica, política e socialmente. O oposto disso comporia os reconhecidos centros irradiadores da civilização, do bem, de cultura, do moderno (e do pós-moderno), do capital, dos capazes, dos superiores ou dos devidamente instituídos. As visões e os estereótipos contrapor-se-iam nitidamente: de um lado, a América protestante, anglo-saxã e capaz; de outro lado, a América católica, hispânica, portuguesa (e "ignorante", segundo Thomas Jefferson e John Adams, dois dos fundadores dos Estados Unidos da América).Não é por acaso que a revista Seleções do Reader´s Digest pôde reiterar semelhantes visões e estereótipos, em agosto de 1958, em sua página 65, conforme citação de Mary Anne Junqueira:Desgraçada Justiça! Da igualdade
Tu não sabes o ponto: é a balança
Do interesse, que só por ti decide
Que despachos injustos, que dispensas,
Que mercês, e que postos não se compram
Ao grave peso da selada firma!
(Cartas chilenas, Epístola a Critilo)
"[...] quando um americano inteligente e com amplos interesses olha em direção ao sul, ele fica bewildered (confuso) por um paradoxo. Ele vê nações estabelecidas há 400 anos atrás e ainda subdesenvolvidas, com vastas terras, diversos recursos e um tipo apenas de economia; democracias constitucionais controladas por ditadores, terras onde inumeráveis revoluções não resolveram problemas básicos. O interesse do americano provavelmente diminui [...]. Uma das causas naturais do subdesenvolvimento da América Latina é a sua geografia de montanhas, florestas e áreas que alternam enchentes e secas (idem: 58-59; cf. 5, 13-14, 54-55).Por incrível que possa parecer, ao buscar "causas" do subdesenvolvimento latino-americano, como fez na passagem acima, a revista Seleções do Reader´s Digest não atinou com a ocorrência do Compromisso de Missouri em seu país de origem, os Estados Unidos da América, anteriormente referido, não relacionando tal acontecimento histórico, por exemplo, com os países do sul, por boa vontade, ou não, de ir mais longe na procura de tais "causas" desejadas.
5. O que se tem afirmado comumente sobre a América Latina
Quase sempre a teimosia na referência à revolução quer dizer revolução política e estatal: tomar o Estado.
Esse importante aspecto ganha ainda maior importância quando se observa que o Estado presidiu na América Latina à instalação do capitalismo tardio, associado, subdesenvolvido ou dependente, ou também, como querem os mais amenos, "emergente" ou "em desenvolvimento". Generalizando, é possível propor, sem perigo de exagerar demasiadamente, que capitalistas e trabalhadores, opressores e oprimidos, empregadores e empregados esperaram e esperam bastante do Estado, seja como ser dadivoso, merecedor de reconhecimento, seja como manancial do futuro, centro de esperança.
O poder em geral e o poder político em particular tendem à formação de oligarquias. Na América Latina, porém, quando se examinam os poderes e seus exercícios, normalmente, surgem as oligarquias representadas por grupos de famílias, controladoras dos instrumentos de decisão no campo econômico, político, social, cultural e intelectual etc., monopolizando a autoridade e o prestígio num desses campos, ou em todos.
No que se refere à política, as oligarquias têm negado, ou ao menos desconfiado da democracia de qualquer natureza, no mínimo duvidando da vontade popular, do sufrágio universal e dos direitos políticos para todos, pregando o confinamento da ignorância das massas, por intermédio de técnicas tradicionalmente opressivas e violentas.
Se de uma parte as chamadas oligarquias latino-americanas têm exercitado valores e práticas originários da civilização burguesa, de outra parte essas oligarquias em muitas oportunidades entravaram e entravam o processo de acumulação do capital na América Latina. Elas conflitam com grupos internos mais sensíveis à expansão do capitalismo internacional, cujos projetos não se ajustam de pronto aos interesses oligárquicos, quando mais não seja no ponto de vista deles. Portanto, as oligarquias latino-americanas não têm sido sempre funcionais à propriedade, ao Estado e ao capitalismo, apesar de ampararem-se neles.
Numa economia tão diversificada como a economia da América Latina, os trabalhadores têm-se distinguido pelas origens, pela participação na produção de cada país, por suas relações com outras classes sociais e por suas relações com o Estado.
Vivendo em terríveis condições, no geral com salários ínfimos, moradias abarrotadas de pessoas de uma ou de várias famílias, sem ingresso nos serviços educacionais ou de saúde, os trabalhadores latino-americanos assemelham-se aos operários das Revoluções Industriais de outros países europeus ou da grande depressão econômica norte-americana no século XX. No entanto, só se assemelham.
Não fosse pela quantidade e extensão deles em toda a região luso-hispânica, bastaria para diferençá-los de outros lugares o imobilismo na situação desses trabalhadores e de suas famílias, com pouquíssima alteração através dos anos, gerando a apatia de gerações inteiras, jogadas na indiferença, no desespero e na aventura na maioria das vezes malsucedida.
Mudanças ocorreram, porém pouquíssimas, se levados em conta os obstáculos impostos ao movimento trabalhista latino-americano: das deportações de seus líderes estrangeiros até as greves, das quais a greve de 1907 no Chile, causadora do massacre de Santa María de Iquique (3.000 pessoas metralhadas pelo Exército), constitui, dentre outros massacres, o cenário histórico mais expressivo da opressão, da crueldade, do caráter ilimitado e irresponsável do Estado e da classe dirigente no trato com os trabalhadores.
Como em outras partes fora do mundo criado por espanhóis e portugueses, a classe operária na América Latina tem exibido características a serem consideradas. Uma dessas características está no rápido aparecimento de sindicatos em curto espaço de tempo, aprimoradamente organizados se comparados com os sindicatos europeus, cujas formações e organizações demoraram muito mais. Auxiliados por trabalhadores imigrados e por exilados políticos, ou mesmo sem eles, a classe operária na América Latina, para resguardar seus interesses materiais e ideológicos, andou em rumo variado em breve tempo, assumindo a índole anarquista, socialista, comunista, liberal, socialdemocrata, democrata-cristã etc., apesar de, na verdade, sua marca e doutrina mais persistentes serem representadas pelo corporativismo nazifascista, ou não. De fato, o corporativismo, que dá ao Estado a função de árbitro, tem consistido na verdadeira alma do sindicalismo empresarial e trabalhista na América Latina. Principalmente a dura e cruel repressão policial representa e representou o meio mais comum de deter e de reprimir a contestação da classe operária, embora a maneira realmente bem-sucedida de dominar essa classe tenha sido inseri-la no Estado, mediante a invenção do "sindicalismo estatal e burocratizado" após 1930, em lugar de qualquer sindicalismo de base contestadora ou revolucionária.
Por conseguinte, os sindicalismos sul-americano e centro-americano abraçaram extasiadamente o "sindicato único" para cada setor empresarial, reconhecido pelo Estado, que lhes abonou a existencia e a personalidade jurídica, extinguindo o pluralismo sindical e a diversidade ideológica. Assim os sindicalismos sul e centro-americano denunciam bem a cara de seus criadores -- as ditaduras, de quem herdaram o princípio liberdade na filiação, obrigadoriedade no pagamento.
Ou seja, ingressar no sindicato não é obrigatório, mas pagar a contribuição sindical é obrigatório.
O sabido apego ao corporativismo, que privilegia o voto por categoria profissional, fez dos sindicatos latino-americanos, por vezes, um modelo para a formação dos congressos nacionais, muito estimado por empregadores e empregados. Isso parece estar ligado, dentre outras razões, ao fato de, na América Latina, as pessoas serem militares antes de serem eleitores, porque o serviço militar obrigatório antecedeu quase sempre a generalização do voto nas eleições.
Tanto o corporativismo como o militarismo têm visto a própria presença nas sociedades como capaz de organizá-las, de colocá-las na ordem, ao passo que eleições, eleitores e partidos não passam de elementos de desagregação social (cf. Vieira, 1981).
Afora os chamados pronunciamentos ("quando chefe militar ou grupo de oficiais declara sua recusa a obedecer ao governo") de ditadores civis ou de generais que têm assumido o poder, os militares em geral atuam politicamente de forma corporativa, e o Estado faculta-lhes posição destacada junto a ele, em nome do nacionalismo, do anticomunismo, da segurança nacional, da ordem interna, da amizade com os Estados Unidos da América etc., dando-lhes em certo período um caminho de ascensão social. Instalou-se então um militarismo antigo, com regimes políticos complexos e periódicos, quase sempre destinados a reprimir o verdadeiro ou o aparente poder dos movimentos sociais, tidos como desordeiros.
Mesmo padecendo com a perda de religiosos, de catequistas, de seus membros leigos e de seus membros da hierarquia eclesiástica, como por exemplo bispo, muitas vezes vítimas de crimes da maior infâmia; mesmo com a adesão à Teologia da Libertação por vários setores dela; a Igreja católica apostólica romana aproximou-se dos regimes militares na América Latina, talvez por falso paradoxo. Se inegavelmente os católicos, leigos ou clérigos, atuaram e atuam na defesa dos direitos humanos, de outra parte a Igreja católica apoiou ostensivamente regimes militares latino-americanos, conservadores, agressivos e contrários aos direitos.
Da variedade de casos demonstrativos da aprovação da Igreja católica aos regimes discricionários na América Latina, chamam a atenção as marchas promovidas por essa Igreja, "para a defesa da família com Deus pela liberdade", organizadas nas grandes cidades e capitais do Brasil, em 1964, contra o governo constitucional do presidente João Goulart e em auxílio ao golpe civil e militar que o despojou do poder.
Na Colômbia, o cardeal Muñoz Duque, arcebispo de Bogotá, foi elevado a general-de-brigada em junho de 1976.
A existência de padres revolucionários e de bispos da oposição pressupõe circunstancias específicas das Igrejas em cada país e no continente latino-americano.
A América Latina ansiou e anseia sempre o crescimento econômico e o desenvolvimento econômico, como dádiva celeste, que tomam o caráter de progresso ou de civilização, alçando-se à posição de venerável, como por sinal sucede com a educação popular de diferente matiz, desde meados dos anos de 1930. O crescimento econômico ou, se quiser, o desenvolvimento econômico entre os latino-americanos, de maneira geral, receberam e recebem o aplauso dos donos de poder de cada dia, porque a modernização consta do desejo de todos. Bem entendida, ela resulta no entendimento deles da harmonia das classes, da comunhão dos interesses de classes distintas, da paz social entre empregadores e empregados.
No que diz respeito ao crescimento econômico e ao desenvolvimento econômico, os países da América Latina têm-se deparado com embaraços mais ou menos semelhantes entre eles, que são combatidos com muito experimentalismo idealista, com graves prejuízos à população, não constituindo necessariamente fator capaz de fortalecer a independência de cada um, antes pelo contrário. Uma praxe das empresas, acima de tudo das grandes empresas, que todo mundo conhece, mas ninguém viu, nasce dos verbos "superfaturar" e "subfaturar", quer dizer, superfaturam-se as compras com a finalidade de repatriar os lucros, remetendo-os à matriz ou às matrizes, e subfaturam-se as vendas para aumentar os custos de produção.
Além disso, tem havido ciclos de concentração e de desnacionalização das indústrias, principalmente daquelas indústrias muito lucrativas por causa do mercado cativo e dos altos investimentos feitos por vezes à custa de toda a sociedade, dando ocasião a lucros fantásticos para os compradores, sem maiores investimentos deles. Gerações de latino-americanos já assistiram à concentração e à desnacionalização de indústrias de toda sorte, cujos novos donos consomem-nas e ao final as devolvem aos Estados da América Latina, ou a empresários nacionais com a ajuda desses Estados, a fim de reequipá-las com enormes sacrifícios sociais, para em futuro não muito longínquo vendê-las outra vez no mercado internacional, por força de algum liberalismo obrigatório.
Gerações e gerações de latino-americanos ouviram de seus antepassados e viveram os efeitos da palavra "crise", que é constante na vida de cada um, do nascimento à morte. Dívidas e "dívida externa", quem não ouviu falar delas? O pagamento da "dívida externa" converteu-se numa das principais razões de existir das sociedades luso-hispânicas, e também de suas populações trabalhadoras, que em geral arcam com ela. De fato, sempre há algo incomodando permanentemente a grande maioria dos habitantes da América Latina. Há um eterno incômodo para eles.
Para o aumento da "dívida externa" da América Latina tem concorrido, dentre outros motivos, o caro pagamento de direitos de uso de licenças e de patentes, que pouco ou nada transferem de tecnologia. Em inúmeras ocasiões, o pagamento de direitos de uso tem-se referido a produtos desnecessários ou sem utilidade. A inclusão da classe média e da classe trabalhadora latino-americanas no mercado dos grandes países capitalistas criou um mercado de consumo na América Latina, porém um mercado consumidor caracterizado pela falta de atendimento às necessidades fundamentais de cada país e da enorme maioria da população consumidora ou não (cf. Donghi, 1972, HCAL, p. 357).
Não existe qualquer gesto novidadeiro em dizer que o latifúndio conserva-se gordo e risonho, em grande parte de baixa produtividade, servindo usualmente para garantir empréstimos etc. As plantações destinadas à exportação ocupam as terras mais férteis e recebem maior atenção e recursos do que as demais. Por seu lado, o minifúndio viceja sem cooperação, repetindo os procedimentos e as obras permitidos pela miséria, não tendo acesso aos vínculos da solidariedade e da inovação técnica. Não é por acaso que na América Latina os regimes de trabalho, permanentes ou temporários, multiplicam-se, incluindo assalariados, semi-assalariados, colonos, escravos, semi-escravos e maneiras diversas de trabalho em família e de auxílio mútuo.
O enorme avanço da urbanização e o crescimento descomunal das capitais e das cidades médias nos países latino-americanos têm retratado migrações internas e êxodo rural, no interior de cada sociedade, causados pela fuga em massa da miséria humana e da catástrofe natural. No entanto, afirmar isso não significa explicar demasiadamente. Verifica-se o trabalho na zona rural, mas quase sempre revestido da prática urbana e da massificação cultural. Até que ponto é possível sustentar a existência em nossos dias de ampla cultura rural, quando tudo parece ser padronizado pela massificação?
As casas velhas, os edifícios velhos, os casebres coletivos abrigaram e abrigam os migrantes rurais, que depois vão se fixar nas favelas. Normalmente, as favelas não constituem a passagem dos migrantes do campo para a cidade, mas sim o local de habitação dos pobres urbanos e daqueles que empobreceram nas cidades e não no campo. As favelas aumentam porque a miséria dos homens tem aumentado nas próprias cidades (Rouquié, 1991, cf. 22-224, 66, 104, 107-108, 116, 119, 123, 154-156, 158, 161-163, 182, 184-186, 190, 192-193).
Alain Rouqué explica as consequências da "extrema miséria":
"Os "miseráveis humildes" amedrontam mais do que ameaçam a ordem estabelecida. Fora das explosões de violência esporádica, a calma reina nas favelas. A revolta só aparece raramente como uma estratégia de sobrevivência. A delinquência é o substituto mais frequente da revolução. Os marginais, se estão mal integrados ao mundo urbano, são, o mais das vezes, recuperados pela ordem estabelecida" (idem, 310).
Não só o avanço e a ampliação descomunal das capitais e das cidades médias nos países latino-americanos têm posto medo aos sobreviventes à penúria mais indigna. O crescimento demográfico da América Latina tem inundado principalmente a Europa ocidental e a América do Norte de pelo menos três tipos de emigrantes luso-hispânicos: os endinheirados recentes ou de muito tempo, que vão desfrutar da riqueza, longe de seu país de origem, onde a conseguiram de algum modo; os jovens desempregados, qualificados ou totalmente desqualificados, atraídos por uma vida melhor (às vezes, a qualquer preço) na Europa ocidental, na América do Norte, de modo particular nos Estados Unidos, e em outros continentes; os que buscam "educação", quadros mentais junto com o bom ou mau aprendizado de outras línguas, na esperança de mudarem de país, ou de dizerem que mudaram, de se empregarem em empresas multinacionais ou de estarem perto delas, com experiência internacional.
Nem a denominação "latina", acrescentada à América, deveu-se aos habitantes desses países, pois foi um apelido impingido pelos franceses do império de Napoleão III, procurando alargar neles a influência da França, em contraposição à dos Estados Unidos, da Espanha e de Portugal. Em que tenham pesado a colonização francesa no Haiti e em uma parte do Canadá, a portuguesa no Brasil e a espanhola nas Antilhas, na América Central e do Sul, a chamada América Latina compôs-se indiscutivelmente, e de forma substancial, de índios e ainda de negros, de mulatos etc. Portanto, a "América Latina" não está perto de ser latina e sim, ao que parece, cada vez mais longe.
Porém, não é possível desprezar o alerta dado por um jornal, de 01 de junho de 1903, uma segunda-feira, que admitia tal "latinidade":
A América do Sul tem de refletir na gravidade do perigo, que começa a correr, de se converter num território de colonização. A política expansionista tem sido seguida por força da opinião pública. É esta que, aos poucos, tem imposto nos governos das grandes potências a anexação de terras da África e da Ásia,oara assegurar os mercados necessários à indíustria colossal da Europa e dos Estados Unidos. Começa-se a dizer que é preciso fazer isto ou aquilo; depois avoluma-se, torna-se dominante essa opinião, e acaba-se por lhe dar execução. É o que invariavelmente vimos na partilha da Árica, na da China e na guerra hispano-americana. As nações latinas da América, que todos os dias são apontadas como objeto das ambições das grandes potências militares, precisam convencer-se de que realmente o são, embora não o sejam" (O Estado de S. Paulo, 01/6/03, p. C-2).
6. O que comumente não se pode negar sobre a América Latina
Por outro lado, o índio foi condenado por ser índio, o negro por ser negro, e em certo sentido continuam sendo condenados por essa mesma situação, mesmo sem terem sido responsáveis pela criação do racismo. Mesmo no sentido mais vulgar da palavra "democracia", houve ou há condições democráticas de vida para índios e negros nos exíguos períodos de tolerância política na América Latina? Juntamente com índios e negros, inúmeros grupos de outras origens socioculturais, que formam a maioria deles, do mesmo modo não usufruíram e não usufruem da democracia naqueles períodos. Tudo isso permite concluir que os breves intervalos da denominada democracia latino-americana estão a serviço de grupos sociais ou de classes sociais, dominantes e interessados em manter uma democracia não essencialmente democrática.
A exploração material e mental, a dominação secular, a falta de meios generalizados para tal população, dentre outros elementos, configuram nítida presença de classes sociais, bem definidas, e também o exercício duradouro da política da classe dominante no poder social e político da América Latina, cuja primeira face é a discriminação de todo tipo (cf. Bonfil Batalla, 1993, p. 55-56, 61, 63).
7. A política social possível e impossível
Escrevi no ensaio "Estado e política social na década de 90" que nos anos de 1990 assistiu-se no mundo, sobretudo entre os latino-americanos, à instalação de um estado de direito que poderia ser chamado de estado de direito democrático, típica configuração de democracia liberal.
Na América Latina acontece a quase predominância do estado de direito democrático. O que quer dizer que está ocorrendo, no campo jurídico-político, a prevalência da democracia formal.
Estados de direito democrático, ou se quiser, essas democracias formais, estão instalados em sociedades muito pouco democráticas. Tal situação constitui sério risco, pois o que garante os estados de direito são as sociedades democráticas. Atualmente, essas sociedades pouco democráticas, ou até mesmo pouco mobilizadas em prol de questões democráticas, possuem estados de direito democrático.
Edificam-se estados de direito democrático em sociedades limitadas em suas manifestações e interesses, com forte presença autoritária, na prática política e na própria cultura.
São sociedades que passam por sérias transformações econômicas, que as levaram, nas últimas décadas, a nenhuma política social ou a uma política econômica com política social direcionada a cuidar momentaneamente de indigentes, de maneira focalizada, dispersa e seletiva. Aparecem programas e diretrizes, relacionados com a política social; tais programas e diretrizes em si revelam somente pretensões de uma política social. Quase sempre não se concretizam, apenas se transformam em programas e diretrizes para serem exibidos à sociedade, sem intervenção nela, porque não têm função de intervir.
Então, no quadro latino-americano, essas transformações econômicas, relacionadas com políticas econômicas, em geral carecem de políticas sociais, embora ocorram na vigência do estado de direito. Porém, ele não mobiliza a sociedade em função de serviços sociais e nenhuma democracia sustenta-se por muito tempo, sem o mínimo de democratização da sociedade.
Esse quadro histórico, muito breve, visa a mostrar o seguinte: primeiro, não existe "neoliberalismo puro", no sentido de que foi aplicado em certo lugar; segundo, aquilo que se aplicou na América do Sul, na América luso-hispânica, não é o neoliberalismo e sim um conjunto de diretrizes elaboradas por organismos internacionais ou nacionais. Na realidade, aqui se apresentou aquilo que foi denominado de "neoliberalismo tardio", porque só veio para cá quando estava terminando e em descrédito.
Eric Hobsbawm, em Era dos extremos: o breve século XX - 1914-1991, disse que de 1970 em diante, mais especificamente de 1973 a 1935, iniciou-se o que ele chamou de "décadas de crise". Elas têm representado nesses últimos trinta e poucos anos a depressão cíclica, com queda significativa na economia dos países altamente capitalizados. Durante os anos 1973-1975, países que vinham elevando seu PIB em torno de 10%, 12% e 13% ao ano, como o Japão, a Alemanha Federal, e de 8% no Brasil, principalmente os países centrais, sofreram depressões. A produção industrial nos países desenvolvidos, entre 1973 e 1975, perdeu 10% ao ano. Portanto, nos países chamados ricos, houve diminuição de crescimento, atingindo no máximo 2,5% a 3% ao ano.
Os países da África, da Ásia Ocidental, a Índia, o Paquistão e os países da América do Sul cessaram o crescimento do PIB, simplesmente empobreceram, não chegaram a crescer nos anos de 1980.
Nos anos de 1980, foi necessário criar gradação de pobres. Os extremos de riqueza e de pobreza distanciaram-se de tal maneira que surgiram o pobre, o subpobre, o quase pobre, o em vias de ser pobre, o mais ou menos pobre, o que tem traços de pobre, em múltiplos níveis de escala. De outro lado, proliferaram o rico esfuziante, o rico comedido, o rico mais ou menos rico, o rico que tinha dinheiro no exterior, o rico que não tinha dinheiro só no Exterior, enfim o rico entusiasta do trabalho para os outros. Celebrou-se a palavra "excluído", embora ninguém estivesse excluído da sociedade. Afinal, os extremos alargaram-se, impondo várias categorias de pobre e de rico.
A questão principal é a seguinte: as operações mundiais do capitalismo tornaram-se incontroláveis. Discutiu-se se o capitalismo funciona bem ou não bem, se ele pode ter cara humana ou se não pode ter cara humana, mas essa não é a questão. A questão real é que as operações mundiais transformaram-se em operações incontroláveis; não se encontraram meios de controlar operações mundiais, pela maioria dos governos. Aqui não se está dizendo que todos os governos não encontraram meios de controlar operações mundiais e sim que a maioria dos governos não encontrou. O capital modificou-se a partir dos anos de 1970. Emergiu nova forma de acumulação do capital.
A questão não versa apenas sobre a revolução tecnológica, não versa apenas sobre a revolução organizacional, não versa apenas sobre a forma de pensar a pós-modernidade. Nova forma de acumulação do capital internacional se impôs: o capital investido na produção industrial transferiu-se aos poucos para o capital aventureiro, principalmente jogado em bolsas de valores, de sorte que nas operações mundiais predominaram as operações financeiras.
Certos Estados perderam o controle das operações mundiais. O Estado nacional não desapareceu. Desapareceram alguns setores na maioria dos Estados nacionais, porém determinadas funções específicas mantiveram-se, como as capacidades de reprimir a oposição, de desmobilizá-la, de intervir na economia e cobrar impostos e taxas.
O sistema produtivo estendeu-se e abrangeu vários países, provocando uma grande consequência: o desemprego. O que desapareceu não foi o trabalho, nem o trabalhador; o que desapareceu foram os postos de trabalho, os empregos.
A descontinuidade do sistema produtivo ocasionou excesso empregos, motivando crescimento de desemprego por supressão de postos de trabalho.
Durante o século XX, vários Estados criaram o Estado de bem-estar social, fundado no keynesianismo; criaram serviços integrados de saúde, educação, habitação, previdência. Países periféricos como os da América Latina começaram a ter serviços sociais setorizados, fragmentados, emergenciais. Esses Estados-nações distribuíram renda ao longo do século XX, seja por meio do Estado de bem-estar social, Welfare State, com a economia keynesiana, seja pela intervenção estatal setorizada, fragmentada, emergencial. Ora, tais Estados são levados, em razão da crise orçamentária, a desmontar ou substituir esses serviços, por sofrer pressão real do orçamento e por pressão ideológica dos defensores do livre mercado (cf. Donghi, HCAL, p. 435, 440).
Dá-se a mercantilização, a transformação dos serviços sociais que eram direitos sociais e representavam e asseguravam as mínimas condições de vida para as pessoas. Tais direitos transformaram-se em mercadorias, em serviços vendidos no mercado. A política social do neoliberalismo atende aos indigentes, ou seja, aqueles que não têm meios de gerar a mínima renda. Mas isso não é política social, porque ela não quer dizer um serviço de distribuição de sopa, de distribuição de leite.
O capitalismo sempre procurou internacionalizar-se. No momento, a "globalização" tem sugerido universalização das atividades econômicas, políticas e culturais. Ela alude à inserção econômica, social, política e cultural dos países no mercado internacional, nas trocas econômicas, políticas, sociais e culturais existentes no mundo.
A "globalização" introduziu-se no Brasil e em outros países de maneira insidiosa, pois ela é que poria a América Latina no "Primeiro Mundo", altamente capitalizado. E países como o Brasil e outros da América Latina estão sempre procurando ser contemporâneos do seu tempo, preocupam-se em banir a sensação de retardamento.
De tempo em tempo, sucede a febre de modernização: todos os países latino-americanos têm de ser iguais aos Estados Unidos da América e à Europa ocidental, têm de ser contemporâneos da trajetória deles. Afinal de contas, os latino-americanos têm de ser modernos como os norte-americanos e europeus ocidentais.
Mas dentro de países da América do Sul e da América Central, por sinal do mesmo modo que em outros, descobrem-se o "Primeiro Mundo", o "Segundo Mundo", o "Terceiro Mundo", o "Quarto Mundo", o "Quinto Mundo" etc.
O "Primeiro Mundo" não está la fora, está dentro dessas sociedades, só que, em decorrência da desigualdade social presente nelas e da incapacidade de superar a política oligárquica extremamente fechada e dependente, incompetente para a maioria da população, sobrevém a necessidade de modernizar-se idealisticamente. A "globalização" é mais uma dessas "modernizações necessárias".
As sociedades latino-americanas, e suas economias, não estão e nunca estiveram alheias ao capitalismo internacional. O que se tem denominado de "globalização", como inserção nas relações mundiais, não ocorre da mesma forma e no mesmo grau para todos os países. A "globalização" não foi e não é igual para todos; ela teve e tem graus e, por ter graus e ocorrer em situações essencialmente diferentes, exigiu e exige a proteção dos países que não têm a mesma capacidade de competição econômica, política e social com países hegemônicos.
A "globalização" é competição desigual e inserção de concorrentes heterogêneos na economia, na política e na cultura mundiais. Entretanto, esses aspectos da "globalização não se apresentam, e sim a suspensão das barreiras nacionais muito desenvolvido pregam o livre-comércio para os outros, mas não para eles.
Essa atitude dos países de capitalismo muito desenvolvido nunca foi nova. Os grandes defensores da exclusão das barreiras protecionistas, conforme sucede na América Latina, não seguiram e não seguem essa orientação. Os países mais radicalmente liberais, os grandes arautos e patrocinadores do livre-comércio, têm assumido posições muito pragmáticas e têm desconfiado do mundo externo; eles próprios não executam o que eles pregaram e pregam.
O "mundo globalizado" resume-se na metamorfose do mundo em mercado interno, controlado pelas empresas transnacionais. Faz-se do mundo mero de bens e capitais, sob o signo de suposta procura de "qualidade total", a qual redunda, por exemplo, em serviços prestados a alto custo, como os telefônicos, em que o usuário se cansa de ouvir "este número não existe" ou "telefone temporariamente fora de serviço". Ao fim e ao cabo, a relação entre capital e trabalho é que é global.
O "mundo globalizado" institui o "grande mundo como nunca existiu", o "grande mundo sem fronteiras e limites", o "grande mundo das maravilhas do dinheiro e do êxito", o "grande mundo das megafusões de empresas, bancos etc.", disfarçando a real imoralidade, a corrupção, o enriquecimento ilícito, as fraudes nacionais e internacionais, a malevolência, a promiscuidade gloriosa, a resignação social, evidenciando, finalmente, uma época do capital bandido e da concupiscência como valores universais. Privatizam-se a fabricação de produtos e a prestação de serviços de qualquer espécie, com o propósito de aumentar-lhes os preços e expandir aquele capital (cf. Pla, 1995-1996, p. 28-30).
8. A política social dos sem-nome e as formas cooperativas
Como já foi dito, mais do que a crítica da política social, é imprescindível fazer a crítica da crítica da política social.
Os direitos sociais e a obrigação da sociedade de garanti-los por meio da ação estatal, bem como a universalidade, igualdade e gratuidade dos serviços sociais, são abolidos no ideário neoliberal. As estratégias para reduzir a ação estatal no terreno do bem-estar social são o corte do gasto social, eliminando programas e reduzindo benefícios; a focalização do gasto, ou seja, sua canalização para os chamados grupos indigentes, os quais devem "comprovar" sua pobreza; a privatização da produção de serviços; e a descentralização dos serviços públicos no "nível local" (idem, 44).
A riqueza e a pobreza têm nomes. Elas não expressam abstração pura e simples, entidades idealizadas, distintas apenas na mente e na linguagem. Entre os pobres, as pessoas nascem, porém inexistem socialmente, não por causa da exclusão e sim porque se originam do lado de cá da apropriação dos bens sociais. Por isso, em vez de a política social dos "sem-nomes", a política social deve ser a dos "com-nomes", pois riqueza e pobreza possuem não somente nomes como raízes históricas diversas.
A política social dos "sem-nomes" opera de modo descontínuo, fragmentada, incompleta e seletiva, assentada na focalização. De sua parte, a política social dos "com-nomes" encontra outro solo onde germina algo superior à riqueza.
Esse solo se acha nas formas cooperativas, tão antigas e tão novas, com as quais a enorme maioria das populações organiza-se para sobreviver em sociedades em sociedades onde convivem a pobreza e a ostentação, a fome e a abastança, a tosca tecnologia e a alta tecnologia. Ante o Estado representativo do poder centralizado de poucos sobre as aspirações de muitos, a cooperação constitui o mais bem-sucedido meio humano de avançar sobre barreiras e desigualdades.
Na vida social, geram-se normas e costumes, mutáveis de acordo com os grupos, os quais terminam na cooperação, apoiada na igualdade e na reciprocidade, na unidade entre um e outro ser humano, visando a todos. Só a cooperação e a sociabilidade são capazes de inutilizar a burocracia de qualquer natureza, seja do Estado, seja das demais instituições.
A história da vida cooperativa de muitos só é percebida mais adiante na história de poucos.
(Cf. VIEIRA, Evaldo. Os Direitos e a Política Social, 2009,2020, capl 2)
A política social dos "sem-nomes" opera de modo descontínuo, fragmentada, incompleta e seletiva, assentada na focalização. De sua parte, a política social dos "com-nomes" encontra outro solo onde germina algo superior à riqueza.
Esse solo se acha nas formas cooperativas, tão antigas e tão novas, com as quais a enorme maioria das populações organiza-se para sobreviver em sociedades em sociedades onde convivem a pobreza e a ostentação, a fome e a abastança, a tosca tecnologia e a alta tecnologia. Ante o Estado representativo do poder centralizado de poucos sobre as aspirações de muitos, a cooperação constitui o mais bem-sucedido meio humano de avançar sobre barreiras e desigualdades.
Na vida social, geram-se normas e costumes, mutáveis de acordo com os grupos, os quais terminam na cooperação, apoiada na igualdade e na reciprocidade, na unidade entre um e outro ser humano, visando a todos. Só a cooperação e a sociabilidade são capazes de inutilizar a burocracia de qualquer natureza, seja do Estado, seja das demais instituições.
A história da vida cooperativa de muitos só é percebida mais adiante na história de poucos.