quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Políticas sociais na América Latina e as relações entre as esferas pública, privada e confessional - 19/06/2013

EMENTA:
O atual contexto dos Estados e das políticas sociais na América
Latina, do ponto de vista republicano. O funcionamento das  Políticas Sociais
no atendimento às sociedades latino-americanas, por meio dos mecanismos de distribuição de renda, da recolonização cultural pelo consumo e da falsa ampliação
das classes médias.



1) Marco Túlio Cícero, o mais importante orador e publicista romano, que viveu entre 106 e 43 a. C., em seu livro A República, escreveu:

“Que pode haver de melhor quando a virtude governa a república? Quanto o que manda nos demais não é escravo de sua ambição?”

A república é uma forma de governo sujeita ao interesse comum e à sociedade, que Sócrates descrevia como modelo ideal de organização política.

O termo república apareceu em Roma no século VI a. C., atravessou a Idade Média em alguns regimes aristocráticos como em Veneza e ganhou destaque no séc. XVIII, nos Estados Unidos e na França.
Os países da América Central e do Sul foram colonizados por Metrópoles (Portugal e Espanha) em forte decadência na época e o próprio Continente abaixo do Rio Grande passou a compor-se de países da América Latina, denominação esta de autoria do Império francês de Napoleão III, no século XIX.
As repúblicas latino-americanas nasceram de mãos da oligarquia proprietária, unidos às vezes a idealistas liberais nem sempre providos de um futuro desinteressado.


2) A república não implica necessariamente em democracia, assim como a democracia não pressupõe a república.

As repúblicas da América Latina foram adotando formalmente, desde os meados da década de 1980, o regime liberal democrático, uma invenção posterior à Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que em certo sentido decorria de necessidade de ampliar a participação pelo voto nas eleições.
Nos anos seguintes, no correr das décadas de 1990, 2000 e 2010, convencionou-se chamar de democratização dos estados latino-americanos e particularmente os interessados nessas democracias desfiaram apologias das vantagens conquistadas. De fato, em determinados setores, os movimentos sociais lograram benefícios parciais e meramente formais (no campo jurídico-político), por consistirem em direitos por vezes inaplicáveis. Porém esses estados latino-americanos não só viveram as agruras das ditaduras anticomunistas, nos campos dos direitos individuais e sociais, da política e da economia, como ainda preservaram até hoje valores, organizações, burocracias, defensores e agentes da  ditadura.
As tidas como “repúblicas democráticas” na América Central e do Sul muitas vezes se mantêm graças à política norte-americana, cujos interesses internacionais não antevêem mudanças.


3) Não existe governo democrático sem sociedade democrática.


A democracia liberal, gestada no interior do capitalismo monopolista, em fase acelerada de acumulação em escala mundial, apresenta um dos tipos de democracia em que a desigualdade social, a dominação de uma classe social sobre outra pode ser reconhecida, desde que esteja garantida a igualdade de cidadania, ou seja: desde que esteja garantida a igualdade jurídica. Assim, a cidadania se revela indispensável à permanência e ao domínio da desigualdade social com quem ela não entra em conflito. 
Na democracia liberal, os governantes estão sujeitos à fiscalização dos governados, que  devem ter a posse de meios de controle sobre eles. O aparente equilíbrio de forças no plano jurídico-político entre governantes e governados não se mostra no plano econômico. E as políticas sociais em qualquer campo não têm a função, nem podem estabelecer a igualdade na economia de mercado.

4) A política econômica e a política social consistem em irmãs gêmeas, formam uma totalidade, e estão conectadas à acumulação do capital


A política social aparece no capitalismo com as mobilizações operárias ocorridas durante as primeiras revoluções industriais no século XIX e tiveram muitas vítimas. A política social entendida como estratégia governamental de intervenção nas relações sociais, só pôde concretizar-se com os movimentos populares do século XIX em diante.

Portanto, política econômica, política social, política educacional, política habitacional, política de saúde, política previdenciária, política de assistência social, política salarial, política fiscal etc., referem-se à estratégia de governo que comumente se compõe de planos, de projetos, de programas e de documentos variados. A palavra "política" como estratégia governamental, nestes casos, não se confundem com a palavra "política", que significa antes de tudo "poder".

5) Não é possível ser contra dar recursos para os mais pobres. No entanto na prática essa política social mercantiliza benefícios sociais, capitalizando o setor privado, deteriorando e desfinanciando as instituições públicas.

As políticas sociais no atual contexto dos Estados de cunho liberal democrático da América Latina expressam sociedades muito pouco democráticas, um risco bastante grande, pois o que garante os estados de direito são as sociedades democráticas. Tais sociedades sofreram transformações econômicas nos últimos vinte anos ou pouco mais, nas quais a política social se destinava a atender indigentes, de maneira focalizada, dispersa e seletiva, por intermédio do denominado "terceiro setor", com ONGs (organizações não governamentais), Institutos, Fundações, OSCIPs (organizações da sociedade civil de interesse público), utilizando-se a extemporânea "administração por objetivos". Celebraram-se então as palavras "excluído", "incluído", e o regresso da legislação social à legislação civil da "prestação de serviço", muito utilizada na primeira metade do século XX, afastando-se dos preceitos do Direito do Trabalho.

6) O "mundo globalizado" surgiu como o "grande mundo como nunca existiu", o "grande mundo sem fronteiras e limites", o "grande mundo das maravilhas do dinheiro e do êxito", o "grande mundo das megafusões de empresas, banco" e que tais, ocultando a imoralidade, a corrupção, o enriquecimento ilícito e momentâneo, as fraudes nacionais e internacionais, e outros, próprios do capital bandido.

No âmbito da política social, os países da América Latina padeceram a privatização, a parceria do público com o privado, descentralização, renda mínima (ou renda básica, renda de existência, renda social), segundo cheque, auxílio-gás, bolsa-escola, bolsa-alimentação, bolsa-família, programa de erradicação do trabalho infantil e programa gente jovem, tudo a pretexto de combater a desigualdade. O exemplo mais completo dessa política social está no fato de que ONGs, OSCIPs e essemelhados em muitas ocasiões dão ares de bolsa-família de classe média, auxiliando essas famílias e ajudando-as a progredir.

7) Os mecanismos de distribuição de renda na América Latina não se diferenciaram significativamente nas soluções, embora possam ter distinções de ênfase e de amplitude.

 Os planos de combate à miséria e à pobreza foram implantados há mais de dez anos na maioria dos países latino-americanos. 
São os casos, por exemplo, da Argentina e do Brasil.
Na Argentina, o plano do presidente Kirchner e de sua mulher Cristina, par dar combate à pobreza, salvou do desespero inúmeras famílias reduzidas à miséria, ao abandono e ao desemprego, causados pelas medidas econômicas do seu antecessor, Carlos Menem, as quais costumo caracterizar de "neoliberalismo tardio". O mesmo aconteceu e tem acontecido nos períodos governamentais de Luís Inácio Lula da Silva e em outros países, Venezuela, Bolívia, Equador, etc., o sucesso político alargou o prestígio dos governantes.
Programas como o Bolsa Família expõem 2 êxitos: a ampliação dos benefícios de transferência de renda à maioria das famílias mais necessitadas, e a melhoria dos indicadores sociais. Por outro lado, tais famílias necessitadas continuam dependentes do Programa Bolsa Família devido a falta de empregos e de qualificação profissional, expulsos, portanto, do mercado de trabalho.
Jean Ziegler, em seu livro Destruição em massa - geopolítica da fome, aludindo ao Brasil, afirma:


"O problema da fome no Brasil não acabou. O caminho precisa mudar radicalmente. A prioridade deve ser outra, depois de anos de Bolsa Família. Por favor, não estou dizendo que o Bolsa Família não é positivo. (...) A Bolsa Família é como a ajuda humanitária da ONU."

Ziegler diz que a solução se acha na agricultura de subsistência, nos pequenos agricultores, e que um país grande potência econômica e política ainda possui 18% de sua população com algum risco de falta de alimento. Acrescenta também que nos últimos dez anos, a reforma agrária foi colocada no congelador.

8) Ao medir as condições de vida no mundo conforme a saúde, a educação e a renda das populações de 187 países, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) manteve o Brasil em 85º lugar, em 2011. Entre os primeiros 47 países do IDH, a América Latina está representada pelo Chile em 40º lugar e pela Argentina em 45º lugar.

Inúmeras das questões postas pelos países latino-americanos extrapolam as políticas econômicas e sociais. Integram melhor as políticas culturais. Em muitos desses países, como o Brasil, fazem do atraso uma visão de mundo e fazem parte de nossa maneira de ser: o individualismo de um contra o outro; a sujeira das cidades e estradas; urina nas ruas, fezes em qualquer lugar; barulho dia e noite; mata-se e morre-se no trânsito e na calçada; rejeita-se a educação alheia e não a nossa; falsificação de carteiras, atestados e diplomas; fura-se fila, e principalmente o etc...

9) Até cego vê que é falsa a ampliação das classes médias pelo aumento do poder aquisitivo da população. A falsa ampliação das classes médias anda de mãos dadas com a recolonização cultural pelo consumo de produtos.

Desde o governo Lula sucedeu a reativação do mercado de trabalho formal, do aumento dos negócios e do trabalho autônomo bem remunerado. Não se nota, de 2002 para cá, maior mobilidade social na alta nem nas outras classes médias.
Não se está a caminho de um país de classe média. A classe C, tão propalada por todos os desejosos de demonstrar crescimento, não evidenciam os padrões e estilos de vida que são característicos da classe média, tão bem examinada por C. Wright Mills nos Estados Unidos do século XX.
Assiste-se a uma camada social de novos compradores, tão compradores que são os responsáveis pelo crescimento do mercado interno no Brasil, ambicionado pelas corporações internacionais. Tida como classe C, a nova classe média não mostra qualquer consciência crítica à recolonização cultural, pelos livros de fácil vendagem, sobre os temas preferidos como o sexo ou a auto ajuda. A classe C não mostra qualquer consciência crítica em adquirir produtos de consumo imediato, mediato ou futuro, não se importando com os débitos e com os anos a mais de trabalho para saldá-los.
Resta então a alienação pura e simples de um mundo de mercadorias em que só elas valem e não os homens. Marx apontou a "sensualidade da mercadoria", aquela sensação do objeto na vitrine, sentida pelo comprador, que parece nos olhar com amor e carinho dizendo: "vem, vem...", pedindo para levá-lo para casa.
Resta também dizer que, ao lado disto, só se encontra escrito "apartir", uma demonstração de que o brasileiro confunde o português "a partir" com o verbo de outra língua, uma clara expressão dos nossos tempos de felicidade. 





terça-feira, 5 de agosto de 2014

1ª. CENA DA POLÍTICA BRASILEIRA

Faltou-me desde logo o dote da efusão. Não tive o privilégio de ser acumulador de capital humano, sem muitas simpatias para gastar, sem abraços para envolver, sem variadas promessas de felicidade, ventura, contentamento, boa fortuna, sorte ou emprego. Nunca prometi o que não posso fazer nem oferecer, um defeito grave e mortal na prática política do país e do estrangeiro.
Em decorrência disso, não consegui tornar real um dos sonhos de meu pai com o filho sobrevivente: surgir como um novo Roberto Carlos, “quero que você me aqueça neste inverno e tudo o mais vá para o inferno”. Devia ser mais ou menos assim, transcorridos tantos e tantos anos desde que percorri a Rua São Bento, ouvindo continuamente o “vá para o inferno”, em cada loja, alto a não mais poder. Com efeito, no ano seguinte o país foi mesmo para o inferno com o golpe e a ditadura de 1964, de que só saiu com muito sangue, suor e pouquíssimas lágrimas. Como ser novo Roberto Carlos e ficar famoso e rico, se nunca passei perto de guitarra elétrica, não sei balançar o corpo de um lado para outro segurando o microfone, e meu cabelo nunca me tapou as orelhas. Nem sou capaz de mostrar alegria, alegria, alegria, convencê-las, quando as pessoas estão tristes e preocupadas.
Saí por aí em busca de trabalho. Anos e anos se passaram. Um dia, um antigo professor da Faculdade elegeu-se governador do Estado e me queria junto do filho dele, bom rapaz e meu colega nas aulas e na mesma família de nomes “E”. Naquela época eu fumava um bom cachimbo, cujo prazer de misturar os fumos perfumados se somava à virtude de colocá-lo na boca e não falar para ele não apagar. Não falando ou pouco falando se erra pouco! Parei de fumá-lo a fim de sobreviver. Guardei-o de lembrança.
No dia em que tomei posse e fui até a minha futura mesa de trabalho, tive uma surpresa: sobre a indigitada mesa: me deparei com inúmeros pacotes de fumo holandês genuíno, com o qual fazia a mistura com o fumo de Cisneros, gerando um perfume agradável. Estou até hoje à procura do gentil presenteador! Porém entendi o seu recado.
Das mais dolorosas experiências sofridas por mim durante a curtíssima passagem na “administração pública”, sem dúvida uma delas esteve na “oratória política, parlamentar ou coisa que o valha”. Na maioria das vezes ela consiste em obedecer fielmente ao largo princípio: “Vamo aprender ingleis porque portugueis nós já sabe”. Numa das missões a serem cumpridas na “administração pública”, das missões imperdíveis, tive de acompanhar meu amigo, filho do governador, à inauguração do escritório novo de deputado federal, em grande cidade do interior paulista, deputado famoso na ocasião por ter dado o voto da vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral da ditadura, elegendo o hábil Tancredo à presidência da República.  Como é sabido, ele não a exerceu, devido à sua doença e morte.

Viajamos em avião da falecida Vasp, tudo o que era burocrata estadual, desde office boys, apadrinhados como eu, cabos eleitorais e famílias, altos funcionários com os terninhos característicos, secretários e representante do governador. Transcorridos os ritos de comes e bebes, os prefeitos da região, com os rostos corados e os olhos não digo injetados, tomaram da palavra para saudar o “nobre deputado”. Inicialmente, a oratória municipal agradeceu as inúmeras obras públicas (por sinal, realizadas com dinheiro público e não por ele), consistentes em construções que iam do jardim ao esgoto, do dar emprego aos necessitados (eufemismo de empreguismo) à colocação de macadames em 100 metros de rua, com esgoto funcionando, vejam só. Ao final, não mais existia algum benefício a ser agradecido pelos prefeitos presentes; também já se falara do bom pai de família, da esposa alegre, dos filhos garbosos e bem vestidos, do amor dos concidadãos satisfeitos com as ruas limpas. Ansioso por responder aos elogios e às manifestações de amizade finalizar a solenidade, o deputado tolerou um último prefeito que se não falasse algo passaria mal. Disse ele, inteiramente sem assunto: “Exmo. Sr. Deputado, Exma. Família, senhores e senhoras presentes, não, não poderia deixar de dizer algumas palavras, e como os demais prefeitos mostraram todas as suas bondades, sobrou para mim saudar a bendita hora em que o Sr. seu pai o concebeu com sua querida mãe, que estão aqui neste momento de homenagem, em lugar apropriado e macio, numa relação no mínimo satisfatória. Obrigado.” Nada mais acrescentou. 

Percurso intelectual, biográfico e literário de Milton José de Almeida

Em torno de uma vida:


Sirvo-me do título da famosa autobiografia de Peter Kropotkine, Em torno de uma vida, a fim de falar um pouco de Milton José de Almeida, por incrível meu testamenteiro durante bom tempo de minha vida. Troquei ideias com Milton sobre todos os assuntos possíveis, éramos confidentes e apoiávamo-nos financeiramente quando precisávamos.

Tenho comigo a memória fraternal do Milton, cuja morte súbita no hospital da Unicamp, em 19 de outubro de 2011, após reunião de Departamento na Faculdade de Educação da Unicamp, aniquilou a obra imensa que amadurecia em seu coração inquieto e verdadeiro.

Reverencio essa memória fraternal com 3 versos do poeta espanhol Miguel Hernández (morto  em 1942, na prisão da ditadura fascista de Francisco Franco na Espanha), versos estes pertencentes à Elegía a Sijé:

“Yo quiero ser lhorando el hortelano
de la tierra que ocupas y estercolas,
compañero del alma, tan temprano”.

1.    Os anos de juventude, de formação e de atuação profissional:


Recentemente li com mais cuidado o “Memorial” escrito por Milton José de Almeida e destinado ao frustrado concurso de professor titular na Faculdade de Educação da Unicamp.

Vejam: quem já possuía em si mesmo a titularidade, deliberou enfrentar burocracia universitária tão sem tradição acadêmica, apoiada ainda por colega do passado e no passado fervorosamente justo, com quem ainda não conversei.

Esta burocracia universitária demorou meses e meses para autorizar meu concurso de titular, realizado muito tempo depois na Faculdade de Educação da Unicamp, então dirigida por um dos meus ex-orientandos. Devido ao tempo decorrido, fui aprovado em concurso público (como sempre aconteceu comigo) em 1990 na Universidade de São Paulo e já exercia lá o cargo de professor titular. A reiterada questão a mim, feita pelos membros da banca examinadora, foi o porquê da titularidade na Unicamp, se exercia de pleno direito o cargo de professor titular na USP. Como explicar à banca examinadora o retardamento silencioso da burocracia da Unicamp, sem desmerece-la? Milton sabia disso de sobra!

Conheci Milton em 1971, na pós-graduação da USP: eu, um doutorando e ele, um mestrando. Em seu “Memorial” alude aos nos nossos estudos de método e teoria do conhecimento. De 10 vagas existentes para ingresso na pós-graduação, ele ficou em 11ª. Colocação, antecedido por 10 moças. O abandono de uma delas, que confundia “linguística com estudo de línguas”, permitiu seu ingresso no mestrado e sua continuidade no doutorado.

Milton não apreciava a vida universitária em geral e em particular, como eu, a arrogância, a impessoalidade e a astúcia da professores intelectuais, quase sempre fictícias, por também quase sempre, no Brasil principalmente, são “especialistas em abrir portas abertas”, como dizia outro falecido amigo.

Mas, ao menos nós éramos recebidos pelos orientadores como em consultório médico do SUS. Marcar entrevista, falar dos problemas, responder o perguntado, em poucas palavras, em pé ou não, discutir texto, dissertação ou tese, às vezes nem lidos pelo professor. Quando doutor, cheguei a ser atacado por pós-graduando (hoje ilustre representante da música popular), que funcionava como cão de guarda de seu orientador, hoje membro da Academia Brasileira de Letras. Felizmente pude identificar-me e dizer-lhe que apenas portava uma carta ao futuro acadêmico, colocando-a em suas mãos.

Milton não buscou ou não gozou de facilidades. Trabalhara em escritório desde cedo, entrou na graduação da USP em Letras, aí se formando em Português e na opção em Alemão. Quando o conheci em 1971, ministrava em torno de 45 horas-aula por semana, de Língua e Literatura Portuguesa e Brasileira, no ensino médio, além de assistir a aulas de pós-graduação. Sobreviveu à teologia da linguística, da semiótica e da semiologia, como eu, graças aos deuses imortais. Sobreviveu ainda à festa dos pedidos de bolsas de estudo, evitando-as ao máximo.

Contratado pela USP e pela PUCSP deixou estas duas universidades para voltar às suas disciplinas do ensino médio. Acompanhou-me, como professor, em seguida no curso de Letras da UNESP, em São José do Rio Preto, onde ouvir o concerto para violino de Felix Mendelsohn Bartholdi significava estar apaixonado por aluna e ele então olhava pela janela da nossa sala na Faculdade e dizia: “Aqui até a natureza é feia”.

Acompanhou-me de novo, em 1977, na Faculdade de Educação da UNICAMP e, quando eu ingressei em 199 no regime de tempo integral na USP, ele não aceitou acompanhar-me outra vez. Chamei-lhe neste caso a atenção: “Lembre-se sempre que a informalidade da UNICAMP é altamente perigosa”.

Milton tornou-se o contrário de mim, com relação à universidade. No início eu via a universidade como um lugar de profissionalização, de liberdade de opinião (pouca, embora maior do que no resto da sociedade submetida à ditadura militar) e de alguma possibilidade de atuação intelectual. Milton negava tudo isto, mas, com o passar dos anos, ousou ser criativo e amoroso com a universidade, descobrindo nela um meio de diálogo com seus alunos, do qual não se poderia separar.

2.    Nossa união em torno da música e da literatura, um convívio simultaneamente distinto e igual:


Nos anos de pós-graduação, que foram poucos, trocamos opinião sobre música clássica e literatura em geral e esta troca de opinião durou sua vida inteira. Em música cultuamos, com profissionalismo, nossas preferências de compositores, regentes, solistas, coros, de espetáculos, indo das canções medievais e Pierluigi da Palestrina a Sergei Prokofiev e Alban Berg. Nossa unanimidade estava com Johann Sebastian Bach, de modo preferencial “A missa em si menor” e “A paixão segundo são Mateus”. Devo-lhe a primeira audição do “Dixit” de Antônio Vivaldi.

Acredito que, de literatura, se eu lhe proporcionei, dentre outras, a indicação da obra de Leon Tolstoi e de William Faulkner, ao Milton devo inúmeras consultas decisivas, como sobre a obra de Roger Martin Du Gard e presentes, como a obra de Samuel Joseph Agnon, presente que me chegou um dia depois de seu sepultamento.

3.    A força do desenho e da pintura na personalidade do Milton José de Almeida, suas barreiras à divulgação, experiências e crescimento pessoal nas artes plásticas:


Conheci Milton desenhando, o que fez pelo resto da vida. Houve ocasiões de reviravolta em sua vida, como em todas as vidas, e ele esticava seu talento para outras atividades artísticas. Insisti sempre que ele desenhasse e pintasse, porque aí ele era o Milton, mesmo no momento de sua vida em que se entusiasmou pela poesia, pela imagem e pelo cinema.

Possuo pinturas de todas as fases do Milton, por elas vejo-o nas suas diversas expressões ao longo da vida. Foi sobretudo um pintor, de enorme erudição, que muito ensinou com honestidade, segurança e coragem. Um pintor quase autodidata, experimentalista fundamentado, que não sabia e não queria ter visibilidade, discreto, desprezando o comércio com a arte e envergonhado dos disparates alheios, incapaz, como eu, de comportar-se como um autor de autoajuda.

4.    A educação pela arte e o martírio do ambiente mesquinho e pobre:


Milton condenou-se a um ambiente mesquinho, pobre de ideias e de baixa secularização, e um verdadeiro intelectual não existe sem meio intelectual. Poucas pessoas sabem disto, ele não fazia confissões integrais, mesmo no “Memorial”. O pior para o intelectual é a solidão da autoreferência. Respirou e sobreviveu com os carinhos e os cuidados recebidos de alguns amigos e amigas, sendo mais fácil morrer, era um “profeta desarmado”. Na última visita feita a ele, por mim e por Godiva, visita rápida, estranha (despedimo-nos na porta de seu apartamento, o que nunca aconteceu antes) e tensa, Milton achava-se indignado com grosserias sofridas na Faculdade de Educação.
Contou-nos, por exemplo, que um dos alunos em classe cortava as unhas do pé durante a aula à noite, etc.. Insisti em sua aposentadoria e questionado por nós sobre sua presença em reuniões de Departamento e em outras reuniões, respondeu-nos que era a forma de não ficar na solidão em casa. Ainda assim, quando percorri seus livros na sua biblioteca, lembrou que nós dois devíamos o mais rapidamente possível aprender o hebraico para sermos recebidos, após a morte, já falando a língua lá utilizada.
Falei-lhe sempre de meu conhecimento de um pouco da cultura judaica, aos poucos não só se dedicou bastante à literatura e aos livros sagrados dos judeus. Sobrou-me dele um excelente volume do Talmude.

5.            Palavras finais:


Quero recordar umas poucas frases do Milton, contidas em duas páginas escritas por ele para Godiva Accioly, na orientação de mestrado:

“Lembrando do Evaldo e parafraseando Tolstoi, todos leem o mesmo texto, mas o entendem a sua maneira”.

“Na neutralidade não há responsabilidade política do pesquisador.”

“Enquanto eu não morrer, ninguém poderá garantir me conhecer, ou seja, poder dar um sentido às minhas ações, que por isso permanecem mal decifrável. É, assim, absolutamente necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida, com que nos expressamos, permanece intraduzível: um caos de possibilidades, uma busca de relações e de significados sem solução de continuidade”.

Por isto, dizia o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958), em seu poema La muerte:

“Quiero dormir esta noche
que tu estás muerto; dormir,
dormir, dormir, paralela-
mente a tu sueño completo;
a ver si te alcanzo así!”


quinta-feira, 12 de junho de 2014

Lançamento da obra "A Ditadura Militar 1964-1985: momentos da República brasileira", por Evaldo Vieira



A ditadura, a igualdade e a liberdade constituem os temas centrais deste livro de Evaldo Vieira.
Para demonstrar que o golpe de Estado foi desfechado, em 1964, por uma facção cívico-militar em meio da população hesitante e espantada, é imprescindível saber quem são esses revoltosos, que unicamente enfrentaram indignação e aplauso na tomada do poder estatal. Formada por militares das Forças Armadas, por políticos de diversos partidos, por clérigos da Igreja Católica e de outras igrejas, por empresários e banqueiros, essa facção cívico-militar nas primeiras horas se alimentou com os espasmos anticomunistas e antitrabalhistas da propaganda e das notícias, especialmente da grande imprensa.
O golpe de estado de 1964 e a instalação da ditadura militar só puderam irromper e alojar-se no Estado brasileiro com a assistência da embaixada norte-americana e de seu Departamento de Estado, que orientaram ideológica, política e economicamente a facção golpista. Ao impor a legislação discricionária (até extinguindo a Constituição vigente), ao eliminar a liberdade política, individual e coletiva, valorizando o privilégio econômico, a ditadura de 1964 militarizou a vida civil, manietou a sociedade e sufocou as garantias individuais, mergulhando-se num abismo de contradições.
Investimentos econômicos inestimáveis, provenientes dos países capitalistas centrais; realizações de obras grandiosas e outros empreendimentos onde não faltaram cimento e areia; “milagres econômicos” momentâneos; velozes endividamentos em juros, nos mercados interno e externo; tudo isto criou a falsa sensação de que, ao menos, a ditadura construiu muito e matou pouco.
As obras e demais empreendimentos tiveram o custo humano até agora impagável, motivado pelo arrocho salarial, pela opressiva legislação trabalhista, pela violenta repressão política e sindical, pela política social francamente deficiente e controladora. Deu-se no Brasil aquilo que alguém denominou de “via colonial” de industrialização, por subordinar amplamente o país aos interesses dos centros capitalistas internacionais.
As contradições amontoaram-se. Em nome da democracia, implantou-se ditadura feroz; em nome da Constituição, transformaram-na em Ato Institucional; em nome do desenvolvimento, ofereceram fugazes “milagres econômicos”.
O livro “A ditadura militar: 1964-1985”, de Evaldo Vieira, não representa a síntese da História do Brasil neste período, mas expõe de maneira simples e clara a progressiva mobilização dos brasileiros em busca do poder legítimo, da igualdade e da liberdade.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Agradecimento a homenagem em 10/05/2010

É tarde, é muito tarde.

Monte Alverne

 

 

 

A oportunidade desta homenagem é evidente: no momento em que me demito da PUCSP (diga-se em boa hora, haja vista o acordo proposto por ela aos professores) e quando tento recuperar parte de minha biblioteca atingida pelas águas da enchente de 2 de janeiro de 2010, em São Luiz do Paraitinga-SP. Além disto, é feita nova edição de meu livro “Autoritarismo e Corporativismo no Brasil”, publicado pela Editora UNESP.

Acredito que este evento represente um ato de gratidão a quem se propôs, desde o início de sua docência, a fazer um trabalho intelectual com a responsabilidade de não enganar a si nem enganar outras pessoas. Tal atitude me obrigou quase sempre à atuação solitária, com retidão, sem adular ninguém, sem manipular, sem articular nada nas universidades em que trabalhei, Universidade de São Paulo (USP), Universidade de Campinas (UNICAMP) e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP).

Nelas, rejeitei claramente qualquer poder burocrático, de reitores, diretores, chefes, coordenadores, assessores, e outros, inclusive dos professores, o que, aqui entre nós, não constitui tarefa fácil. Cansei-me de ser espectador de certos colegas com diários oficiais, boletins, portarias e outros documentos administrativos, nas mãos ou sob as axilas, para uso próprio ou para pontificar nas reuniões. Cansei-me de ser espectador da falta, muitas vezes, de recrutamento sincero de docentes.

Dediquei-me exclusivamente ao conhecimento e à produção intelectual, tanto quanto pude, porque na universidade quem não tem vocação para o estudo e para elaborar obras reconhecidas, tende a descobrir na burocracia universitária um campo fértil e venturoso. De qualquer maneira, felizmente não padeci nessas universidades privadas, nas quais, de uns anos para cá, se aplica nos professores o taylorismo fabril.

Na universidade, a burocracia de quando em quando se lembrou de mim para participar de sindicâncias sobre furtos, acidentes de automóvel e mau comportamento docente, para as quais não era pago como professor. Porém não posso deixar de recordar jamais professores e intelectuais, diga-se logo, inesquecíveis, com os quais tive a sorte de conviver e de aprender, vários deles se foram.

Meus livros, ensaios, artigos, debates, e mais as entrevistas, palestras e conferencias, estão ai para apreciação de cada interessado.

No segundo semestre de 1977, ingressei no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação e Serviço Social, na PUCSP e em Educação na FEUNICAMP. Depois, me transferi para a FEUSP.

Promovi pesquisas sobre Política Social, Política Educacional, Direitos Humanos e Epistemologia, de cujos estudos eu só posso me orgulhar. Procurei evitar em meus cursos os modismos decorrentes da invariável recolonização cultural do país, fugindo ultimamente do emprego de manifestações do neoliberalismo, do tecnicismo e do projetismo, que tem assolado as ciências humanas.

Quando assumi a disciplina “Política Social” existiam poucas obras sobre o assunto, que no geral se confundiam com a Doutrina Social da Igreja. Pouca gente falava disto, escrevi sobre este tema. Com a eclosão no Exterior, na década de 1970, da intitulada “Crise Fiscal do Estado” e depois no Brasil com a falência do Estado brasileiro na década de 1980, as disciplinas “Política Social” e “Política Educacional” tornaram-se valiosas e, aos poucos, surgiram especialistas, especialmente no que chamaram de “Políticas Públicas”.

Queria, portanto, me dirigir a todos, desejando um trabalho profícuo e duradouro em prol da sociedade brasileira, sobretudo da sua parte não organizada nem constituída em “lobby”, e submetida à tradicional prática política que tanto infelicita grande parte de nós. Eu, de minha parte, prosseguirei em outras paragens. Obrigado.

sábado, 26 de abril de 2014

Classe Média

Há alguns meses atrás, eu caminhava pela calçada em São Paulo, passando diante da saída de automóveis de um banco. Um carro que deixava o estabelecimento quase atropelou um transeunte. Espontaneamente o quase atropelado revidou: “Compra o carro à prestação e quer ainda me matar!!” O motorista saltou do carro e por pouco não praticou um homicídio doloso, só porque o outro disse que ele pagava prestação. Decerto o quase atropelado se lembrou da “filosofia de traseiro” de caminhão, que prega:“ É velho, mas está pago”.
Não é fácil saber o que significa classe média. Os anglo-americanos estão atentos à qualidade da residência, das propriedades, dos automóveis, dos fundos bancários e eles fazem aquelas perguntas comuns aos cadastros de bancos, isto para quem infelizmente conhece. Quantos quartos têm a casa? Quantos banheiros existem (é importantíssimo!)? Se os banheiros estão revestidos com azulejo até o teto ou não; se possuem peças de prata. Os econometristas, também conhecidos como os “discípulos, os meninos de Chicago e Michigan”, grandes especialistas nos relatórios e agendas das Agências Internacionais de Financiamento, como Banco Mundial, FMI, BIRD, etc., criaram tabelas referentes às classes médias de determinado país ou região. Essas tabelas, também utilizadas pelas corporações econômico-financeiras, definem classes sociais pela renda familiar, classificadas em classe A, em classe B, C, D, F, G, H, I, etc. A classe A consome mais do que a B, e a B consome mais que a C, e assim por diante. Tal classificação não é muito diferente do jargão, agora um pouco esquecido, de estar no “primeiro mundo” (é coisa de “primeiro mundo”!), quando na Europa, América do Norte, Ásia, se encontram igualmente classes de primeiro, segundo, terceiro, quarto e último mundo.
É complicado dizer onde está a classe média. Muitos europeus acham que a classe social depende da soma dos prestígios de cada indivíduo. Uma pessoa pode ter elevadíssimo prestígio como profissional, baixíssimo prestígio como desportista, digamos médio prestígio como pai de família ou como empresário, e assim por diante. Daí se chega à conclusão de que tal pessoa situa-se na classe alta, alta alta, média, média média, baixa, baixa baixa... Porém, a mais refinada concepção de classe média é a de que ela não existe, é uma ficção, com a qual estou de pleno e fiel acordo.
Mas muitos querem saber qual é a sua posição social, seja para manter a própria arrogância, seja para avaliar sua discreta simplicidade. Ou por mera curiosidade, científica, vamos lá.Tanto me amolaram que comecei há muitos anos a pesquisar: o que poderia exprimir a classe média bem segura e convicta? Tentei diversas hipóteses para atingir uma conclusão científica. Qual o quê? Tive de apelar para a fantasia a fim de descobrir a tal classe média. Por fim, me tenho utilizado da seguinte formulação: “aquele que buzina no túnel pertence à classe média!” Isto, porque quer mostrar a buzina, ou melhor, que a buzina funciona, sendo ela nova ou velha. Porém a melhor e mais sofisticada explicação diz: “para a classe média nada há de estável”; melhor dizendo: “na classe média nada existe para sempre”.
Em certa ocasião, visitei um ex-aluno, que se achava bem de vida e com sucesso profissional. Vi seu carro maravilhoso, no tamanho, cor, acessórios e outras coisas mais. Exclamei entusiasmado: “que lindo, onde você conseguiu isto?” “Ah, disse ele, já está superado. Saiu um carro agora do tipo WXXX, que é completo, até ri para as pessoas. Quando puder, vou buscá-lo. Ainda não há igual”. Perguntei se o atual não está novinho. “Claro, respondeu, mas o outro só falta falar”.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

31/03/64: o dia em que tudo mudou

Caminhei até o ponto de ônibus, poucas pessoas na rua. Existia um clima de golpe militar tanto nas televisões, nas rádios e nos principais jornais (capitaneados pelo “O Estado de S. Paulo” e o “O Globo”), assim como nas famílias católicas ou tradicionais. Nas televisões, políticos como Carlos Lacerda e Magalhães Pinto, e alguns jornalistas, clamavam pela intervenção militar com a finalidade de evitar “um Brasil comunista”. Como disse, não vi revoltados nem comunista, nem sindicalista, nem ateu, nem trabalhador, só de vez em quando um camburão da polícia, um punhado de soldados da Força Pública (antiga Polícia Militar) e a Polícia do Exército cercando a sede do 2º. Exército, na Rua Conselheiro Crispiniano, em São Paulo.
Ao chegar à Faculdade de Direito, encontrei-a fechada, com aviso de suspensão das aulas. Conversei com colegas defronte da Faculdade, uns pasmos, outros satisfeitos, outros preocupados com os acontecimentos. De fato, o que ocorria para quem tinha esperança de construir sua vida dentro dos padrões até então imaginados, era sinistro, desastroso e ameaçador. Tudo, em nome do “combate aos comunistas”, bastante pulverizados em 1964, na realidade ocultando uma verdade que era fazer uma “ocupação branca” do país, em nome dos norte-americanos, no contexto da guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética. Abusando da ignorância e da crença da população brasileira, e orientados pelo Departamento de Estado e pela Agência de Informação (CIA), ambos dos Estados Unidos da América, os ditos “defensores da democracia” (senadores, deputados, governadores e civis arrivistas) invadiram o gabinete da presidência da República em Brasília, no momento em que o presidente João Goulart ainda se encontrava em território nacional. Buscou-se um jurista da ditadura Vargas, Francisco Campos, de formação fascista, auxiliado por mais outro, Carlos Medeiros, a fim de instruir a sessão do Congresso Nacional para declarar vacância da presidência da República e redigir o denominado Ato Institucional N. 1, dentro das regras ditadas pelo general Castelo Branco e por Milton Campos. Desde o Estado Novo e a “Constituição Outorgada” de 1937, Francisco Campos se aprimorara em elaborar instrumentos de exceção, suprimindo direitos civis e políticos, que ele considerava desnecessários.
Logo depois, viajei para Taubaté, onde em meio a alegrias, tristezas e temores falava-se “oh, os militares tomaram o poder para acabar com a bagunça”, com a qual não me deparei naquele momento, apenas depois, tanto no aparelho estatal com a indisciplina militar, como nas ruas reprimidas à vontade, em defesa da lei e da democracia.  Imaginei que o desemprego poderia talvez diminuir, tamanha a quantidade de agentes e informantes contratados para vigiar seus compatriotas. Começava assim a ser construída “a democracia” de 31 de março de 1964. Naquele mesmo dia em Taubaté, fui até o prédio da antiga Escola Normal, na qual discursava o deputado federal do Partido Democrata Cristão, Plínio de Arruda Sampaio. Suas palavras exalavam esperança, acreditava ele que o assim chamado “dispositivo militar” do presidente Goulart, mais a indignação popular pelo desrespeito à Constituição Federal de 1946, resistiriam a desordem civil e militar. Qual o quê!
Resolvi que, após aquele dia, eu abandonaria, como fiz, meu projeto pessoal de atuar na diplomacia, bem como em qualquer profissão capaz de representar qualquer poder direto do Estado. Acho que me dei bem, não colaborei e não colaboro com nenhuma manifestação de cunho discricionário, nada de tirania. Minha convicção não foi em vão, nem meu 31 de março deixou de ensinar-me o preço de ditadura.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A eleição dos “homens bons”?


José de Alencar, o escritor brasileiro do século XIX, escreveu o romance “O tronco do ipê”, contando que o Barão da Espera, grande fazendeiro de café no Vale do Paraíba, exercia a posição de chefe político local, embora não ocupasse cargo nenhum. O Barão favorecia nas urnas seu amigo Conselheiro, a quem estava unido por laços de amizade e de compadrio, porque o Conselheiro era padrinho de sua filha. Em épocas de eleição, seus compadres e seus parentes votavam nos candidatos indicados pelo Barão, que por sua vez indicava os candidatos determinados pelo Conselheiro, seu amigo.
Não era a lógica das ideias, da religião ou da ética, e sim a lógica dos interesses dos grandes proprietários, o que de fato possuía valor. Ainda no romance “O tronco do ipê”, de Alencar, o Barão da Espera tinha um afilhado, destinado por ele a ser seu genro. Mandou-o à Europa para estudar, tornou-o “doutor” e não tardou a ser escolhido pelo Conselheiro como candidato à cadeira de deputado. Casado e deputado à Assembléia Geral, o genro foi viver na Corte, para exercer o cargo e não regressou mais. O Barão da Espera cuidava das propriedades, das lavouras e dos votos do eleitorado do genro, à medida que este representasse seus interesses. As flores do “genrismo”, do “compadrio”, “afilhadismo” mostravam o “homem bom”.
“Homens bons” eram como se chamavam os mandões locais no Brasil tradicional, ao longo da Colônia portuguesa e do Império brasileiro. Neste período, não existia prefeito nem presidente da Câmara, só existiam os “homens bons”. Eles representaram a origem do poder político e a primeira escola de políticos no país, gerando o que teima em funcionar (de modo diferente) até nossos dias: o “mandonismo local”. Convocavam-se todos os “homens bons” para elegerem os funcionários, deslocando para o Brasil a instituição portuguesa da Câmara Municipal, de acordo com as Ordenações Manuelinas.
Naquela época, o “homem bom” consistia no homem da família e do seu grupo familiar, como se diz “chefe de família”, transformado então em verdadeiro chefe de bandos armados, formados de escravos, agregados, afilhados, filhos, genros e mercenários. Eles compareciam às Câmaras Municipais para eleger seus representantes: no início, dois juízes ordinários e três vereadores, que iriam cuidar dos negócios públicos do lugar, por um tempo. A vontade do chefe local (o mandão) é que valia e não as idéias políticas.
Depois, quando a administração brasileira passou a exigir, com a finalidade de ocupar cargos em todo o território, o “mandonismo local” resistiu sob manto sempre elástico do diploma de bacharel em direito. Manto elástico porque ao bacharel em direito se seguiram o padre, o médico, o engenheiro, o farmacêutico, agrimensor, etc., principalmente o etc..
Em conversas amenas e bem intencionadas, em lugares de descanso e relaxamento, digamos com os amigos, perguntam-se às vezes por que o Brasil é tão diferente dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e dos países de tradição anglo-saxã. Melhor dizendo, para não ir longe: por que o Brasil e os países de tradição anglo-saxã são tão diferentes, por exemplo, na prática política e no funcionamento do judiciário.
Um dos motivos dessa diferença é que, nos países anglo-saxões, as localidades produziram do princípio da colonização em diante o direito local ( o “common law”, o direito costumeiro ou dos costumes), ao passo que no Brasil não há direito local, há direito do(s) mandão(ões) local (is). Uma das conseqüências fica por conta de não haver justiça local e sim práticas políticas temerárias e julgamentos demorados, de dez, quinze ou mais anos, chegando, muitas vezes, até os juízes, promotores e advogados dos casos falecerem.
Com a proclamação da República, a única igualdade estabelecida no país,  sempre aos poucos, foi o direito de votar e de ser eleito, menos o analfabeto. Assim mesmo lavrava e lavra a discussão dificílima de saber qual analfabeto: o quase analfabeto, o analfabeto essencial, o analfabeto de alma, o analfabeto funcional. Publicam-se livros e livros sobre analfabetismo. Ouvem-se os tecnoburocratas da educação, conhecidos às vezes como especialistas, que não se cansam de dar cursos e conferências. Como eu dizia a ele: pobre, Paulo Freire!
Desejo de servir à sociedade, espírito público, solidariedade social? São raríssimos como os diamantes negros, meros privatismos, meros interesses particulares, sobretudo num Brasil onde quase todos os empresários vivem de dinheiro público desde o início da industrialização no século XIX, havendo poucos empresários com capital próprio, cuja acumulação nasceu do trabalho deles. Se o possuem, não o utilizam, preferindo o dinheiro público, por isso muitos empresários adotam a especialidade de percorrer os corredores dos prédios municipais, estaduais ou federais. Um capitalismo sem risco!
Com o crescimento populacional, a custosa industrialização e a globalização econômica e cultural, a sociedade brasileira mudou um bocado. A desindustrialização, a massificação cultural, a alta natalidade da população pobre ou miserável, aumentaram as necessidades de emprego, saúde, educação e assistência social. Saúde e educação invariavelmente são as palavras de ordem, apesar de seculares: quando não se sabe o que fazer, basta dizer que vai lutar pela saúde, pela educação e pela habitação (às vezes pela natureza). No entanto, tudo ficou como antes, não se pode afirmar que ocorreu mudança de estrutura, porque, a cada melhoria num setor, aconteceram inúmeras pioras em outros setores. O emprego e assistência em geral (é suficiente olhar as rodoviárias e os prontos-socorros ou prontos-atendimentos) constituem as principais moedas eleitorais, dentre outras, nas campanhas. Dominam largamente o empreguismo e o assistencialismo. Como reclamava há muito tempo uma aluna, esposa de deputado federal: “Ele (o deputado) reclama de fazer serviço de despachante e não de deputado, mas paciência!
 Porém os antiquados mandões locais sumiram em alguns Estados, surgiram os dirigentes partidários, novos mandões locais. No caso dos partidos políticos, altamente burocratizados, mandões querem dizer direção partidária. Inexistindo na prática programa partidário a ser obedecido e existindo mesmo em algumas circunstâncias os partidos fantasmas, dentro de sua hierarquia os variados líderes realizam a gestão política e econômica, financeira, etc., etc.
Habitualmente a indicação de candidatos às eleições representa uma das tarefas da alta burocracia dos partidos políticos, que se orienta, aqui e lá fora, pela “lei de ferro da burocracia partidária”, ou seja: “quem está em cima não desce e quem está embaixo não sobe”. Tal qual na burocracia de outras atividades, no aparelho burocrático dos partidos políticos, aquele que atinge algum poder diretivo é sempre candidato a algum posto, se desejar, ou pode consagrar outro candidato qualquer, usurpando as vontades e os interesses da população. A maioria dos candidatos, como um antigo reitor de grande universidade, fala unicamente o que os ouvintes querem ouvir, conforme observa as vontades e as carências deles: segurança, educação, saúde, habitação, maternal, empregos, desempregos, mais indústrias, e daí para frente.
Entre os brasileiros, a participação política foi e é por demais reduzida. A indicação de candidatos pela hierarquia dos partidos, reais ou fantasmas, é mesmo muito mansa, com programa de eleição ou não, a exemplo do ‘confisco de boi no pasto”, no repetido cansativamente pelo candidato vitorioso a governador no passado. Há pouca preocupação com a vontade popular e seus interesses. Há muita preocupação com os interesses dos dirigentes partidários e dos eleitos. O ex-presidente Jânio Quadros, numa formidável confissão, disse certa vez que se elegia de uma forma e governava de outra.
A generosa confissão de Jânio preceitua que as pessoas mais valem pelo que fazem e menos pelo que dizem. É evidente que os brasileiros viverão melhor e mais felizes, aliás um direito fundamental, se votarem em quem na prática dos anos demonstrou de maneira clara e indiscutível ter posições políticas definidas, com espírito público, desejo de mudar essencialmente as condições de vida da maioria da população, repelindo comportamentos antiéticos e ilegais perante a lei.
O espírito da República significa votar em candidato que não seja escravo de suas ambições. Como se vê com facilidade, o eleitor que vota mal corre o sério risco de ser punido pelo seu candidato eleito. O caminho deve ser por aí, até que se estabeleça no Brasil o mandato revogável para o legislativo, ou coisa parecida, afinal o legislativo é o sustentáculo da República.