quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Lançamento do livro "A república brasileira - de Getúlio a Lula - 1951-2010", por Evaldo Vieira




Capa do livro "A República Brasileira - 1951-2010 - de Getúlio a Lula", de autoria de Evaldo Vieira



Evaldo Vieira não tem a pretensão de escrever uma história da república brasileira ou mesmo de completar a visão contemporânea desta república, durante os anos de 1951 a 2010.
Esta obra quer ser a exposição da longa resistência da população brasileira na construção de uma república, ao longo de tais anos.
Trata-se, portanto, de mostrar a cada momento histórico, com os pormenores possíveis, o ato de resistir dos brasileiros na colocação dos tijolos do edifício republicano, vertendo e revertendo suas esperanças e propostas, submetendo-se e revoltando-se contra o reino das barbaridades e especialmente contra a ignorância da vida real.
A obra retrata acima de tudo a busca de informações e a análise de fatos primários sobre a resistência brasileira, levantando, explorando e analisando documentos múltiplos pertencentes a mais de seis décadas. Para escrevê-la foram consultadas numerosas fontes de diferentes épocas, sempre tendo em conta que existem textos e arquivos secretos no país.
Pode-se, no entanto, assegurar que o livro não se baseia na repetição e na confirmação de interpretações consagradas pelo tempo ou sustentadas por autoridade de qualquer tipo. Pretende-se que apenas possibilidades indicadas pelas fontes consultadas tenham criado os alicerces dos comentários.
Foram-se mais de sete anos de pesquisa, de redações e de revisões, transformando a escrita do livro em exercício de esclarecimento dos fatos e das situações. A exposição assinala as grandes linhas de desenvolvimento histórico e os detalhes (estruturas e conjunturas), visando dentro do alcance do autor a evidenciar o ato de resistir dos brasileiros na implantação da república.
O livro A república brasileira (1951-2010) inicia-se e conclui-se com o exame das condições de vida da população, apostando na racionalidade do ser humano e evitando manifestações de irracionalismo, tão ordinário em nossa época, como o elogio da morte em suas infinitas modalidades da existência social.
A primeira parte de A república brasileira percorre do segundo governo de Getúlio Vargas (1951) ao governo do general Ernesto Geisel (1978), a quarta gestão sob a ditadura militar, iniciada então há catorze anos.
Fiel ao seu desígnio de caracterizar o ato de resistência da população do Brasil em sua obra republicana, além das citadas o leitor ainda poderá refletir sobre outras administrações. Nessa parte inicial poderá o leitor acompanhar a evolução das administrações de Juscelino Kubitschek, de Jânio Quadros, de João Goulart, e dos marechais e generais ditadores Castelo Branco, Costa e Silva, Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e dos membros da Junta Militar de 1969 (Aurélio de Lyra Tavares, Márcio de Souza e Mello, Augusto Hamann Rademaker Grünewald).
A segunda  parte de A república brasileira incumbe-se de narrar fatos e situações concernentes ao governo do general João Baptista Figueiredo (encerrando as formalidades da ditadura militar), e também dos de Tancredo Neves, de José Sarney, de Fernando Collor de Mello, de Itamar Franco, de Fernando Henrique Cardoso e de Luiz Inácio Lula da Silva.
Ambas as partes resultam em conclusões, vistas como indicações relativas às condições de vida dos brasileiros, às políticas econômicas e às políticas sociais.
Certamente, uma das principais questões da república no Brasil está na representação política e social, desde o passado remoto. A representação política e social existe no país, na prática sem responsabilidade política e social.
Mais do que isso, a obra de Evaldo Vieira versa sobre as lutas políticas, os partidos políticos, as eleições, as tentativas de golpe de Estado, a consumação de golpe de Estado, os chefes militares, os discursos presidenciais ou ministeriais, as medidas econômicas, os planejamentos, as consequências de suas aplicações e as reações a eles.
No que diz respeito às condições de vida da população, no texto existem  observações a respeito da educação brasileira, da saúde pública, da alimentação, das crianças e dos adolescentes, da previdência e assistência social e da habitação popular, etc..
O leitor encontrará em A república brasileira (1951-2010) demasiadas experiências de conciliação política, social e econômica, bem como os malefícios irremediáveis do “presidencialismo de coalizão”, de qualquer mandato exercido de forma irresponsável e intocável, do “foro privilegiado” e da insegurança causada pela ilegalidade e pela ilegitimidade. Do mesmo modo encontrará os caminhos democráticos da ação republicana.
Na obra, porém, sobressai a resistência dos brasileiros na busca de uma república capaz de garantir-lhes os direitos individuais e sociais, sem o que não haverá tranquilidade.




quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Política Social: Democracia e desafios da participação (entrevista)

Entrevista para a Revista Ser Social (UnB)Entrevistado: Evaldo Amaro Vieira 
Ângela Vieira Neves[1]Reginaldo Guiraldelli[2]
1        - No campo da teoria social há concepções distintas acerca da relação entre democracia e socialismo. Na sua análise, a democracia seria um caminho necessário para a realização e construção do socialismo?
RESPOSTA: Acho que sim, a democracia é um caminho necessário para a construção do socialismo e, sem democracia, o que historicamente existiu foram ditadura e capitalismo de Estado. Resta saber qual democracia, porque nem tudo aquilo que tem sido denominado de democracia conduz ao socialismo. A mera democracia formal (Estado de Direito), como se fosse uma etapa eleitoral, apenas baseada numa lei interpretada por juízes indicados e vitalícios, não leva à superação das condições de classe e à coletivização da propriedade. Somente a democracia capaz de superar as grandes diferenças entre as classes e de extinguir os privilégios, torna possível o socialismo.
2        - Na sua análise, é possível, a partir da disputa de hegemonia, construir uma forma de sociabilidade verdadeiramente emancipada “por dentro” do Estado capitalista? O aprofundamento da democracia pode contribuir para o redimensionamento do Estado, o fortalecimento das políticas sociais e a efetivação dos direitos sociais?

RESPOSTA: Nunca fui adepto da falsa “teoria de conquista de espaço” no interior das instituições, principalmente do Estado. Nunca considerei séria a disputa de hegemonia apenas no interior da burocracia estatal, porque me parece constituir antes ingenuidade ou ambição pequeno-burguesas, como se a burocracia capitalista não enquadrasse o coração e a mente das pessoas, que afinal estão submetidas aos valores e às práticas da sociedade capitalista. Além disto, a “teoria da conquista de espaço” quase sempre adota a implantação do socialismo de cima para baixo. Sem a maioria da população trabalhadora, que caminhe para o socialismo (ou que nome receba), ele não surgirá. Assisti aos resultados dessa teoria, em todas as profissões, inclusive entre assistentes sociais. Na aula, estive com um aluno dedicado às crianças e aos jovens abandonados, militante de longa data; no aeroporto me deparei com o mesmo aluno vestido e comportando-se como burocrata muito bem posto na vida, dizendo que tudo estava muito difícil, como se não fosse. É juízo superficial chamar isso de oportunismo, é adesão sincera à ideologia da ascensão social, tipicamente da pequena-burguesia. Nunca agirá de acordo com o socialismo, que lhe tiraria os privilégios sociais e econômicos.

3        - É possível se falar em democracia em uma sociedade baseada na divisão de classes, na sustentação da propriedade privada e na exploração do trabalho?

RESPOSTA: Sim, pode-se falar em democracia neste tipo de sociedade, já que no caso se destacam o formalismo jurídico e o cumprimento da maioria das garantias fundamentais do indivíduo, com políticas sociais bastante restritivas, como no caso dos Estados Unidos da América, nos moldes do liberalismo conservador ou da democracia liberal. O funcionamento real das garantias fundamentais do indivíduo pode oferecer segurança pessoal e algum desenvolvimento social, embora a opressão permaneça ou até cresça em função do mercado econômico. Essa mera democracia formal não se destina ao socialismo, porque a economia de mercado alarga a desigualdade social, dentre outras desigualdades.
4        - No Brasil, são observados avanços no campo dos direitos de cidadania após o processo de redemocratização ocorrido no final dos anos 1980 e ao mesmo tempo são implementadas medidas neoliberais que incidem na contramão da garantia destes direitos. Como você analisa esse quadro na atualidade?

RESPOSTA: O quadro no Brasil é muito diferente em diversos aspectos. Ocorreu de fato o processo de redemocratização? Ocorreu abertura política com certas garantias jurídicas e sociais. Mas a dita redemocratização não mudou o aparelho de Estado. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário não passaram por transformações essenciais, e a legitimidade política, social e econômica está reduzida à simples eleição. Não foram mudados a organização e o funcionamento das polícias e das forças armadas, e não se suprimiu sequer a Justiça Militar, assegurando as justiças especiais e corporativas, foro especial para determinadas pessoas nos tribunais superiores, restando à maior parte dos brasileiros a justiça comum, a qual deveria abranger todos. Os principais meios de informação, como televisão, rádio, jornal, revista, etc., compõem monopólios que, durante a ditadura militar, compartilhavam em muitas ocasiões seus interesses com os ditadores, porém agora confundem seus objetivos com as liberdades públicas. Foram alteradas inúmeras vezes a Constituição Federal de 1988 sem nenhuma consulta à população, a gosto de cada um dos governos, da promulgação constitucional para cá. É possível constatar que os direitos de cidadania, ou mesmo a concretização deles (realidades diferentes), transformam-se em direitos essenciais. A transformação de direitos de cidadania em direitos essenciais sucede quando os movimentos sociais atuam com maior força e influência na sociedade e no Estado, impondo suas necessidades e objetivos, alargando as exigências populares no Executivo, no Legislativo e no Judiciário. Em caso contrário, com movimentos sociais debilitados por qualquer motivo, sem reclamos objetivos ou com reclamos simplesmente moralistas, os direitos sociais ficam limitados àquilo chamado, com muito favor, de “políticas sociais neoliberais”, pois são na verdade certa assistência aos miseráveis. É imprescindível lembrar que há movimentos sociais de cunho nazifascista, ocupando o espaço perdido pelas ações populares. A dominação social, a desigualdade e a penúria são inclementes no Brasil.
5 - Na conjuntura sociopolítica brasileira atual, há possibilidade de uma coexistência da democracia representativa e da democracia participativa?

RESPOSTA: Nos dias atuais no Brasil, a coexistência da democracia representativa com a democracia participativa é demasiadamente precária. Excetuando o descontrole da violência brasileira, que exagera em excesso, a democracia participativa no mundo consiste em fator preocupante para os governos, levando-os a modernizar mais a polícia do que setores fundamentais da política social, como a educação e a saúde. Como afirmava em palestras desde o princípio dos anos 1980, a derrocada do Partido dos Trabalhadores desmontou grande parcela dos movimentos sociais defensores de direitos sociais, desmontou grande parcela da esquerda ou até aqueles que esperavam alguma melhoria de vida no país. E desmontou por quê? Lutou pelo predomínio de seu programa, afastando sectariamente, cegamente, inúmeras propostas alternativas até mais libertárias, servindo-se de milhares de militantes idealistas, sem ter condições de fazer o que prometia, em nome da direção partidária sindicalista e aventureira em muitas ocasiões. No momento, coexistem no Brasil uma imperfeita democracia representativa (com enormes deformações de representatividade, basta ver a composição por Estados) e o predomínio de movimento social de caráter golpista, extremista de direita e ilegal.
6- Como você analisa as manifestações que vem ocorrendo no cenário sociopolítico brasileiro nos últimos anos, especialmente a partir de 2013?

No meu entendimento, presenciamos em meados de 2013 um movimento popular em São Paulo principalmente, com alguma organização sem burocracia, voltado para a conquista do “passe livre”. Tal movimento popular foi sabotado por muitos partidos existentes, pelos governos e pela imprensa patronal, que à maneira getulista o reconheceram, aceitaram-lhe e desmobilizaram-no. Depois, se seguiram frequentes arruaças irracionalistas, violentas e heterogêneas, lembrando às vezes as iniciais movimentações pré-nazistas na Alemanha ou pré-fascistas na Espanha. Como comentou um jornalista, se os membros dessas movimentações vissem mesmo a massa da população, eles correriam para seus apartamentos e chamariam a polícia.

7        - A Política Nacional de Participação Social (PNPS) foi duramente criticada por vários segmentos da sociedade brasileira e considerada como um golpe à democracia. Qual sua análise acerca desse processo?

RESPOSTA: A Política Nacional de Participação Social (PNPS) representa uma necessidade num país do tamanho e da população do Brasil, com contradições e necessidades múltiplas. Porém como ser aceita uma PNPS em país onde existem foro privilegiado na Justiça, presidencialismo de coalizão, cargos vitalícios e efetivos, mandatos irrevogáveis, etc.. Não existem mandatos revogáveis em qualquer instância política, nem responsabilidade por indenizá-los em caso de mau uso; nem Justiça com cargos temporários para julgar com rapidez. Distantes da população e garantidos, os Poderes da República podem vislumbrar a PNPS como um golpe ao maltratado Estado de Direito do Brasil atual.
EVALDO VIEIRA estudou direito, ciências sociais e letras; é doutor em ciência política pela USP e professor titular da FEUSP. Foi professor titular na UNICAMP e na PUC-SP; é tradutor, colaborador em jornais, em revistas, em obras coletivas e autor de vários livros, sendo o último deles denominado “A república brasileira – de Getúlio a Lula (1951-2010)”.



[1] Assistente social, mestre em Serviço Social pela PUC-Rio e doutora em Ciências Sociais pela Unicamp. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB).
[2] Assistente social, mestre e doutor em Serviço Social pela Unesp. Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em Política Social da Universidade de Brasília (UnB).

O BOM LADRÃO


No segundo ano da colonização do Brasil, em 1655, o Padre Antônio Vieira (que infelizmente não foi meu parente) pregou o Sermão do Bom Ladrão, na presença do rei de Portugal. O Padre Antônio Vieira, como é do conhecimento público, representa uma das mais significativas figuras do século XVII, na história e na cultura luso-brasileira. Talvez seja culturalmente, com relação ao Brasil, a mais completa personagem da colonização portuguesa. Desempenhou-se como orador, conselheiro político da Restauração portuguesa, diplomata, missionário, defensor dos índios, jesuíta e teólogo, catequizador no Pará e no Maranhão. Não faltaram em sua biografia alguns anos de prisão, acusado pela Santa Inquisição Católica de prática de heresia, ao acreditar no Sebastianismo, nas profecias de Bandarra e em defender os judeus, mas morreu no Brasil.

O Padre Antônio Vieira afirma no Sermão do Bom Ladrão: “Nem os reis podem ir ao paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. ...O que vemos praticar em todos os reinos do mundo é, em vez de os reis levarem consigo os ladrões ao paraíso, os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”.
Ninguém nasce ladrão e ninguém nasce rei. Os homens é que constroem um e outro. Existem no homem o rei e o ladrão. Um carrega o outro, tanto ao paraíso quanto ao inferno e diz Vieira: “...O que vemos praticar em todos os reinos do mundo ...os ladrões são os que levam consigo os reis ao inferno”. E por quê? Nem todos os homens controlam sua ambição!
Se a maioria dos homens não fiscaliza e não cerceia a própria ambição, não fiscaliza e não cerceia o forte desejo de poder ou de riquezas, de honras ou de glórias, torna-se escravo da cupidez. Contrai então doença incurável: converte-se em invejoso, em desgostoso devido à prosperidade alheia, vivendo a vida do outro, espionando as compras, as vendas, os sucessos, as perdas, as tragédias de outrem. Abandona a existência para viver a existência alheia: se ganha certo conforto, isto não lhe basta, é preciso ter mais, o conforto do outro. O invejoso mortifica-se com o desejo irrefreável de possuir as coisas de outrem, de construir casa mais rica que a do vizinho, de comprar carro maior e mais caro que o do vizinho, de vestir-se com mais sofisticação que a mulher do vizinho... De fato, os invejosos não têm paz.
A inveja figura a mãe da ambição, da cobiça e de certa maneira de ver o sucesso. Muitas escolas e universidades nos dias de hoje prometem aos alunos o sucesso e não o conhecimento, como se a função de CEO das empresas ou a lista dos mais ricos tivessem lugar para 204, 5 milhões, que é hoje, por exemplo, a população do Brasil.
Ora, segundo o Padre Antônio Vieira, a ambição do ladrão acaba vencendo a honestidade no rei, e daí o larápio triunfante no coração real o conduz ao inferno, ao sofrimento e à desgraça. Dentro das pessoas, o desejo do ladrão geralmente prevalece à sua honradez. Acrescenta Vieira, pensando como Sêneca: “Põe o ladrão e o pirata no mesmo lugar do rei que tiver as características do ladrão e do pirata. Se o rei da Macedônia, ou qualquer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o rei, todos têm o mesmo lugar e merecem o mesmo nome”.
Conforme Vieira, não adianta pôr culpa no outro, em cada um de nós estão presentes o demônio e a bem-aventurança, basta ter coragem de vencer o ladrão dentro de nós, a fim de não incorporar o Dr. Fausto.