sábado, 23 de maio de 2015

O relógio de ouro e o juiz

Corri o dia todo, e ao cair do sol me recordei de que deveria ir de São Paulo a Taubaté, a fim de proferir conferência sobre um dos aniversários da Constituição Federal de 1988.
Apesar de saturado de expor minhas ideias sobre ela, aparecera a primeira oportunidade de falar em Taubaté e no Vale do Paraíba, embora tivesse quase encerrando a carreira de conferencista universitário pelo mundo.
Estava intranquilo depois de assistir à abertura da Constituinte de 1987. Famílias e famílias de constituintes, de várias gerações, posando para o fotógrafo, bem no estilo casa-grande, em ambiente festivo. Nas fotografias felizmente só faltaram os negros de abano, como no Império. Saí com sentimento nefasto, lutuoso mesmo, de quem se lembra do trecho do romance "O leopardo", do príncipe de Lampedusa: "Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. Fui claro".

O artigo 5 da Constituição Federal de 1988 bastaria para funcionar como Constituição brasileira. Desde o primeiro presidente da República, o fantástico Marechal Manoel Deodoro da Fonseca até os contemporâneos, quase ninguém governou com a constituição que lhe foi legada. Houve reformas e mais reformas, sempre para adequá-la às pretensões dos poderosos do dia. 

Ao contrário da Constituição de uma República, com cidadãos iguais perante a Lei, no Brasil possuímos os cidadãos usufruidores de "foro privilegiado", exatamente aqueles que por princípio ético e jurídico deveriam gozar de maior exposição de direitos iguais aos do brasileiro comum, ou seja, serem julgados na primeira instância dos Foros.

Na viagem a Taubaté, para discorrer sobre a Constituição de 1988, estacionei em Jacareí e dirigi-me à sala dos advogados do Foro. Nem bem iniciei a organização da conferência, uma distinta senhora solicitou-me que comparecesse à sala de audiência do juiz, pois inexistia àquela hora outro advogado para funcionar como defensor "ad hoc" de um réu. Cumprimentei o meritíssimo juiz e o ilustre promotor de justiça e, em seguida, ingressou o réu na sala de audiência. O juiz qualificou-o e esclareceu-o a respeito da causa e do depoimento dele. Era um senhor de maltratados 50 e poucos anos, vestido com roupas de trabalho um tanto gastas e calçado com botina "de carregar pela boca". Evidenciava homem da roça. 

Em seguida, o meritíssimo juiz perguntou se ele havia furtado um "relógio de ouro" pertencente a sua ex-mulher. O réu não vacilou: disse que era chacareiro e explicou que na separação de sua ex-esposa em Taubaté onde morara, incumbiu-se de cuidar da filha do casal e trabalhava para sustentar ambos. E com aquela simplicidade das pessoas puras, sem nunca ter sido caviloso, estendeu seus braços ao juiz mostrando-lhe as palmas das mãos, perguntando-lhe: "estas mãos podem ter usado relógio de ouro?, estas mãos ganharam dinheiro para ter relógio de ouro?" Só havia calos de enxada e de enxadão. Nada mais se disse nem foi perguntado.

Ficamos na sala os três, o defensor, o promotor de justiça e o juiz, a procurar o motivo para tal disparate. Noite, promotor e juiz ainda trabalhavam. O motivo não é coisa do outro mundo, como descobrir a América: formalismo que envergonha juristas de escol, com Hans Kelsen. Mas tem mais: jovens, brilhantes e experientes funcionários da Justiça perdem seu tempo com a miséria humana no Brasil, porque o "foro  privilegiado" das autoridades não deixa que eles se ocupem destas autoridades.