quinta-feira, 9 de junho de 2022

PIOTR KROPOTKIN: DOIS PREFÁCIOS DE O APOIO MÚTUO (UM FATOR DE EVOLUÇÃO) E BIOGRAFIA DE KROPOTKIN, POR ASHLEY MONTAGU

 

 O APOIO MÚTUO, UM FATOR DE EVOLUÇÃO: DOIS PREFÁCIOS DE PIOTR KROPOTKIN E SUA BIOGRAFIA, POR ASHLEY MONTAGU.

 Tradução do espanhol, direta do russo, por Luís Orsetti, pela Editorial Projeção, Argentina, Buenos Aires, 1970.

Tradução ao português por Evaldo Amaro Vieira, cotejada com a edição inglesa.


PRÓLOGO À PRIMEIRA EDIÇÃO RUSSA

 

 Enquanto preparava a impressão desta edição russa de meu livro – a primeira traduzida do livro MUTUAL AID: a FACTOR OF EVOLUTION, e não dos artigos publicados na revista inglesa – aproveitei a oportunidade para revisar cuidadosamente todo o texto, corrigir pequenos erros e completar os Apêndices, baseando-me em algumas obras novas, em parte a respeito da ajuda mútua entre os animais (Apêndices III, V, VI e VIII), e em parte a respeito da propriedade comunal na Suíça e na Inglaterra (Apêndices XVI e XVII).

 

Bromley, Kent. Maio 1907.




NOVO PREFÁCIO DE KROPOTKIN


Minha pesquisa sobre ajuda mútua entre animais e entre homens foi impressa pela primeira vez na revista inglesa “Nineteenth Century”. Os dois primeiros capítulos, sobre sociabilidade em animais e sobre a força adquirida por espécies sociáveis na luta pela existência, foram respostas ao artigo do conhecido fisiólogo e darwinista Huxley, aparecido no “Nineteenth Century” em fevereiro de 1888 – “A luta pela existência: um programa” - , onde a vida dos animais foi pintada como uma luta desesperada de um contra todos. Após o aparecimento dos meus dois artigos em que refutei essa opinião, o editor da revista, James Knowles, expressando muita simpatia pelo meu trabalho, pedindo-me para continuar, observou: “Não há dúvida de que você demonstrou sua posição em relação aos animais, mas qual é sua posição em relação ao homem primitivo?”

A respeito da questão do homem, respondi também em dois artigos onde, depois de um cuidadoso estudo da rica literatura moderna sobre as complexas instituições da vida tribal, que os primeiros viajantes e missionários não puderam analisar, descrevi estas instituições entre os selvagens e os chamados “bárbaros”. Esta obra, e especialmente o conhecimento da Comuna rural no início da Idade Média, que desempenhou um papel enorme no desenvolvimento da civilização que renascia novamente, levaram-me ao estudo da etapa seguinte, ainda mais importante, do desenvolvimento da Europa – da cidade medieval livre e suas guildas de artesãos. Apontei o papel corruptor do Estado militar que destruiu o livre desenvolvimento das cidades livres, suas artes, artesanato, ciências e comércio. Mostrei, no último artigo, que, apesar do colapso das federações e dos sindicatos livres devido à centralização estatal, essas federações e sindicatos começam agora a desenvolver-se cada vez mais e a conquistar novos domínios. A ajuda mútua na sociedade moderna constituiu, assim, o último artigo da minha obra sobre a ajuda mútua.

Ao editar esses artigos em livro, introduzi alguns acréscimos essenciais, principalmente da relação de minhas opiniões com a luta darwinista pela existência. Nos Apêndices citei alguns fatos novos e analisei algumas questões que, por causa da brevidade, tive de omitir nos artigos da revista.

Nenhuma das traduções nas línguas da Europa Ocidental, nem as escandinavas e polonesas, foi feita baseada nos artigos, e sim no livro. Por isto, continham as adições expostas no texto e nos Apêndices. Das traduções para o russo, somente uma que apareceu em 1907 no Editorial Conhecimentos (Znania) estava completa. Além disso, introduzi vários apêndices novos, com base em novas obras, parte sobre ajuda mútua entre animais e parte sobre a propriedade comunitária de terras na Inglaterra e na Suíça. As outras edições russas partiram dos artigos da revista inglesa, e não do livro. Portanto, elas não possuem as adições feitas por mim ao texto ou omitiram os Apêndices. A edição oferecida agora contém todas as adições e os Apêndices, todo o texto e a tradução novamente revisados por mim.

                                                                          P.K.

Dmitrof, março de 1920.

 

PREFÁCIO DO PROFESSOR ASHLEY MONTAGU


O APOIO MÚTUO de PIOTR KROPOTKIN é um dos grandes livros da humanidade. Isto evidencia, entre outras coisas, o fato de ser constantemente objeto de reimpressão. É difícil consegui-lo, até nas bibliotecas, pois parece ter permanente procura. Compreende-se assim que recebamos sempre com satisfação toda reedição de tão notável obra.

O autor, o Príncipe Piotr Ayexeyevich Kropotkin, nasceu em Moscou em 1842. A família Kropotkin pertencia à mais alta aristocracia russa e descendia dos Príncipes de Smolensk e de Kiev. O pai de Piotr era militar, proprietário de terras e de servos. A mãe, Ekaterina Sulima, faleceu prematuramente na idade de 35 anos, quando o menino tinha apenas três anos e meio de idade. Ekaterina foi uma criatura muito carinhosa e delicada, e o amor que dedicou a seus quatro filhos – Nicolás, nascido em 1834; Elena, um ano mais jovem; Alexander, nascido em 1841, e Piotr, vindo ao mundo em 1842 – acompanharam-nos por toda a vida. “Bastava conhecê-la para amá-la”, escreveu Piotr em suas MEMÓRIAS. “Em seu nome, Madame Burman cuidou de nós, e em seu nome nos encheu de amor a preceptora russa... Toda nossa infância foi iluminada por suas lembranças. Quantas vezes, em algum canto escuro, acariciava-nos, Alexander ou eu, a mão de um criado. Quantas vezes no campo uma camponesa vinha até nós e nos perguntava: você será tão bom quanto sua mãe? Ela tinha muita compaixão por nós. Certamente será como ela. 'Nós' significava, é claro, os servos. Não sei o que seria de nós se os servos não tivessem criado em nossa casa aquela atmosfera de carinho de que as crianças precisam tanto ...

"Os homens desejam fervorosamente viver após a morte; mas a maioria deixa este mundo sem perceber que, quando uma pessoa é realmente boa, sua memória permanece eternamente viva. Essa lembrança é registrada na próxima geração, que a transmite para a descendência. Não vale a pena obter esta imortalidade?"

Citei tal passagem em detalhe, porque considero que ela explica em parte a personalidade de Kropotkin, além de mostrar sua compreensão e simpatia pelos servos deste mundo. Em seus escritos, Kropotkin lembra repetidamente a bondade e a grandeza de alma dos servos que conheceu em sua infância. Por eles lutou toda sua vida, por eles e por todos quantos viviam servos de seus próprios preconceitos.

Como era costume nas famílias aristocráticas, Piotr foi enviado ao Corpo de Pajem para receber educação militar; esta vida não lhe agradava. Por suas leituras, chegou à conclusão de que a Sibéria seria o lugar ideal para dar livre curso a suas inclinações naturais. A geografia, a zoologia, a botânica e a antropologia da região eram pouco conhecidas. Por isso, Kropotkin decidiu solicitar sua transferência para um regimento siberiano. A ideia horrorizou o pai, que considerou totalmente absurda a escolha do filho. Preferir a Sibéria a uma brilhante carreira na Corte? Finalmente, foi obrigado a ceder e assim, em 24 de julho de 1862, seu filho Piotr partiu para a Sibéria.

Kropotkin realizou notável e original trabalho nos campos da geografia, da geologia e da zoologia. A Sociedade Russa de Geografia publicou suas observações meteorológicas e geográficas, estudos pelos quais lhe outorgou uma medalha de ouro. A teoria de Kropotkin sobre o desenvolvimento da estrutura da Ásia é tão importante que seria suficiente para reservar-lhe um lugar permanente na história da geografia científica. Durante toda sua vida conservou vivo interesse pela geografia, ao qual sempre dedicou alguma atividade. Além de dar palestras sobre o assunto e publicar ensaios em revistas científicas e publicações não especializadas, redigir artigos sobre geografia para a Géographie Universelle de Reclus, para a Chambers Encyclopaedia e para a Encyclopaedia Britannica.

Os trabalhos de Kropotkin em zoologia são produtos da experiência direta. De 1862 até fins de 1866, quando deixou a Sibéria, aproveitou todas as oportunidades para interpretar os segredos da vida natural. Influenciado por A Origem das Espécies de Darwin (1859), como nos diz no primeiro parágrafo da presente obra, pesquisou ansiosamente em busca dessa “rude luta pelos meios de subsistência entre animais pertencentes à mesma espécie, considerada pela maioria dos darwinistas (embora nem sempre pelo próprio Darwin) como a característica fundamental da luta pela vida e o principal fator da evolução”.

Mas sua experiência direta, o que ele viu com seus próprios olhos, despertou em Kropotkin sérias dúvidas sobre a teoria darwiniana, dúvidas que não encontraram plena expressão a não ser quando surgiu ocasião para isto no famoso “Struggle for Existence Manifesto”. (“Manifesto da luta pela vida” de T. H. Huxley, intitulado “The Struggle For Existence: A Programme” (“A luta pela vida: um programa”).[1]

A vida na Sibéria produziu outra grande mudança nas ideias de Kropotkin. Compreendeu a “absoluta impossibilidade de fazer algo realmente útil para a massa do povo por meio da mecanismo administrativo”. E acrescenta em suas MEMÓRIAS: “Abandonei essa ilusão para todo o sempre... Na Sibéria perdi toda fé na disciplina estatal. Estava preparado para entrar no caminho do anarquismo.” Ele fez isto e, nesse caminho, continuou até o fim de seus dias.

A convivência com os siberianos que viviam à margens do Amur mostrou-lhe o importante papel desempenhado pelas massas anônimas em todos os eventos históricos, comprovação que o impressionou profundamente.

“Dos 19 aos 25 anos”, escreve, “tive de elaborar importantes planos de reforma, lidar com centenas de habitantes do Amur, preparar e realizar perigosas expedições com meios ridiculamente escassos, etc.; e se tudo isso terminou de modo mais ou menos feliz, deveu-se unicamente ao fato de que logo descobri que um trabalho sério é pouco útil para comandar e disciplinar. Em todas atividades, são necessários homens de iniciativa, mas uma vez dado o impulso, a empresa deve seguir em frente, especialmente na Rússia, não de maneira militar, porém por um tipo de acordo comum, através do entendimento mútuo. Seria bom que todos aqueles que baseiam seus planos na disciplina estatal, estudassem a escola da vida real, antes de criarem suas utopias estatais. Nesse caso, não se ouviria falar tanto, como agora, em planos para organizar a sociedade em uma pirâmide sobre base militar.”

Essa passagem nos dá a chave da filosofia anarquista de Kropotkin. Quando se diz anarquista, as pessoas imaginam um sujeito de pele pálida e grandes bigodes pretos esgueirando-se furtivamente, carregando uma granada ou uma bomba caseira em cada mão. É verdade que tais anarquistas militantes existiam, mas Kropotkin desaprovava-os totalmente e lamentava tal conduta. Em seu conceito, o anarquismo fazia parte da filosofia que deveria ser tratada da mesma maneira que as ciências naturais; era o meio de estabelecer a justiça (isto é, a igualdade e a reciprocidade) em todas as relações humanas e em todo o mundo. A melhor maneira de alcançar o domínio da justiça consistia em eliminar por completo o Estado e qualquer forma de governo, substituindo-os pela cooperação livre e espontânea entre indivíduos, grupos, regiões e nações.

Kropotkin repudiava toda forma de violência, embora, chegado o momento, tenha apoiado a causa dos aliados em sua guerra defensiva de 1914-1918, contra os alemães, uma posição que indignou muitos de seus companheiros anarquistas. Ele era um homem singularmente afável e encantador, que conquistou o respeito de quantos o conheciam e ainda é lembrado com carinho por aqueles que com ele trataram pessoalmente. Disse Bernard Shaw acerca dele: “Kropotkin era uma pessoa gentil a ponto da santidade; com sua grande barba avermelhada e expressão agradável, ele poderia muito bem ter sido um pastor da Montanha das Delícias”. Assim ele sintetizou a opinião geral sobre o grande anarquista.

Em 1874, Kropotkin fui detido e aprisionado na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, durante dois anos, pelo crime de difundir propaganda revolucionária. Após uma fuga espetacular, ele fugiu disfarçado para a Suécia, de onde se transferiu para a Inglaterra, pais em que desembarcou em agosto de 1876. Lá, se estabeleceu como jornalista, depois de vencer certas dificuldades e logo conquistou amplo circulo de amigos.

Em 8 de outubro de 1878 casou-se com Sofia Ananiev, nascida em Kiev em 1856, de pais judeus. Aos 17 anos, indignada com as condições de vida dos homens que trabalhavam na mina de ouro de Tomsk, Sibéria, administrada por seu pai, Sofia recusou-se a viver com o dinheiro obtido com a exploração e deixou a casa de seu pai para ganhar a vida por si mesma. É fácil ver o vínculo de simpatia que uniu estes dois seres. Na época em que se casaram, Sofia estudava biologia em Berna, enquanto seu marido foi obrigado a permanecer em Genebra por motivo de trabalho. Durante um tempo eles levaram vida de “ciganos”, como ele mesmo dizia. A mútua devoção manteve-se inalterada pelo tempo em que viveram. Depois de 9 anos de casamento, nasceu sua primeira e única filha, a quem deram o nome de Alexandra, em memória do irmão de Kropotkin, falecido recentemente. Expulso da Suíça como sujeito perigoso, Kropotkin retornou a Londres, cidade onde Alexandra nasceu em abril de 1887.

Deixo de mencionar a prisão e o encarceramento de Kropotkin, na França em dezembro de 1882, sua posterior liberação e seus inúmeros obstáculos com os espiões e com a polícia de meia dúzia de governos de países europeus. Nas Prisões da Rússia e da França (1887), ele nos relata pormenorizadamente estes episódios. Nem exporei sua participação ativa na promoção do movimento anarquista. Só direi de passagem que ele organizou e participou de vários congressos, criou jornais e manteve prodigiosa correspondência internacional, durante o tempo em que trabalhava como jornalista freelance para sustentar sua família. Chegamos assim a 1888, ano que marca o começo do período de O APOIO MÚTUO.

Uma vez que na Introdução à obra, o próprio Kropotkin nos conta o que o levou a escrevê-la, será supérfluo historiar os fatos que o fizeram redigir os artigos depois reunidos em um livro. Aqui me limitarei a esboçar a história de O APOIO MÚTUO desde sua publicação, com uma avaliação da obra, em particular de acordo com os conhecimentos acumulados posteriormente.

Entre os fatos relacionados com a publicação de O APOIO MÚTUO, cabe destacar um muito notável: a série de artigos, que como tal apareceu originalmente em “The Nineteenth Century”, foi escrita com intenção de refutar o ponto de vista apresentado por T. H. Huxley, mas este jamais replicou publicamente, nem mostrou ter conhecimento da existência destes escritos, apesar de sem dúvida os tenha lido, pois era assíduo leitor da referida publicação. Os primeiros ensaios de Kropotkin sobre a ajuda mútua apareceram em 1890. Porém sete anos antes, em 1883, estando Kropotkin preso na França, seus amigos ingleses prepararam uma petição enfatizando a importância de suas contribuições científicas e solicitavam sua imediata libertação. Foram convidados homens de ciência e escritores a assinar a petição. Disseram que T. H. Huxley recusou a pôr seu nome, atitude que muitos tomaram como “grosseria” de sua parte. Quem assim pensa está equivocado. Nesse mesmo ano tinha sido nomeado Presidente da Sociedade Real e considerou que tal cargo lhe proibia certas coisas, conforme evidencia numa carta: “Enquanto eu for Presidente da Sociedade Real, me sentirei obrigado a não participar de movimentos públicos que os membros da sociedade possam desprovar”. Com relação ao silêncio de Huxley, pode-se supor que ele desejasse esperar até que Kropotkin terminasse de expor seus argumentos e reunisse seus ensaios em um volume, como era conhecido por ele. O último dos artigos apareceu em 1896 e o livro, em 1902... Sete anos depois da morte de Huxley.

Num artigo publicado pelo “The Nineteenth Century” em 1888, Kropotkin expressou juízos críticos referentes a certos conceitos de subsistência e de população expostos por Huxley em seu “Struggle for Existence Manifesto” (“Manifesto da luta pela vida”). Este último enviou ao editor James Knowles uma carta pessoal em que assinalava que Kropotkin não o havia compreendido bem, acrescentando: “Não obstante isto, considero seu artigo muito interessante e importante”. Quando Knowles o convidou a publicar uma réplica nas páginas da publicação, o biólogo respondeu-lhe que estava doente, confessando: “não me acho em estado mental ou nervoso para fazê-lo, e só a ideia de entrar em controvérsia me leva a preocupar”.

Huxley pode realmente ter admirado Kropotkin, como muitas outras pessoas, mas sua situação física já não lhe permitia empreender a difícil tarefa de discutir seus argumentos, como eles mereciam. De qualquer forma, mesmo que Huxley pretendesse refutar Kropotkin, no devido momento, a morte, que ocorreu a ele antes de terminar a exposição, impediu-o de executar seus planos. Acho necessário esclarecer esses fatos para fazer justiça à memória de um grande homem, apaixonado pela verdade, mesmo quando essa verdade mostrava que ele estava enganado.

Embora O APOIO MÚTUO tivesse sempre enorme quantidade de admiradores e tenha influído sobre o pensamento e a conduta de muitos, também é verdade que ele foi mal interpretado por quem conheceu o livro por segundos ou terceiros, ou o leram em sua juventude e guardaram confusa lembrança de seus conceitos.

É erro geral acreditar que Kropotkin se propôs a demonstrar que é a ajuda mútua, e não a seleção ou a competição natural, o principal ou único fator a atuar no processo evolutivo. Num livro de genética publicado recentemente por uma grande autoridade na matéria, lemos: “O reconhecimento da importância da cooperação e da ajuda mútua na adaptação não desmente de modo algum a teoria da seleção natural, segundo interpretaram Kropotkin e outros”.

Os leitores de O APOIO MÚTUO perceberão logo até que ponto é injusto este comentário. Kropotkin não considera que a ajuda mútua contradiz a teoria da seleção natural. Uma e outra vez chama a atenção para o fato de que existe competição na luta pela vida (uma expressão que ele critica acertadamente com motivos sem dúvida aceitáveis para a maior parte dos darwinistas modernos). Uma e outra vez destaca a importância da teoria da seleção natural, que aponta como a mais significativa do século XIX. O que acha inaceitável e contraditório é o extremismo representado por Huxley em seu ensaio “Struggle for Existence Manifesto”, e assim o demonstra ao qualificá-lo de “atroz” em sua MEMÓRIAS. Por justo que seja o juízo de Kropotkin, e por execrável, violento e danoso o artigo de Huxley possa ter sido,devemos reconhecer que ele o escreveu com profunda sinceridade e com o brilho habitual . além disso, se encaixava perfeitamente na filosofia do laisser-faire que dominava naqueles dias, ideologia que Kropotkin considerava repudiável por suas consequências tanto no campo da política quanto na teoria da evolução. Seus longos anos de análise do assunto decidiram sua resposta exaustiva a Huxley.

As únicas duas pessoas que apoiaram Kropotkin em sua aventura foram James Knowles, editor de “The Nineteenth Century”, e H. W. Bates, autor notável do livro extraordinário “The Naturalist on the Amazons” (1863) e secretário da Sociedade Geográfica Real.

Pela atitude dos outros, Kropotkin pôde verificar que a interpretação da “luta pela vida”, como um grito de guerra de “frio dos fracos!, elevado à categoria de mandamento da natureza revelado pela ciência, estava tão profundamente enraizado na Inglaterra que se tornou dogma quese religioso. Seria difícil para ele se fazer ouvir.

Hoje em dia O APOIO MÚTUO é a mais famosa das muitas obras escritas por Kropotkin. A rigor, é já um clássico. O ponto de vista está avançando, lenta mas firmemente, e seguramente se tornará parte das formas de agir da biologia evolucionária aceitas em breve.

Se analisarmos os dados apresentados por Kropotkin, bem como os argumentos baseados neles, e os considerarmos à luz do conhecimento científico reunido nos vários campos adotados pelo O APOIO MÚTUO, veremos que, em termos gerais, ele os confirmam. As obras de Allee e discípulos, Whieler, Emerson e outros em ecologia, os estudos de grande número de antropólogos (muitos para citar), sobre povos primitivos e analfabetos, e as descobertas de naturalistas empíricos, confirmaram cada um deles, de maneira categórica, as principais teses de Kropotkin.[2] O APOIO MÚTUO nunca perderá sua validade, como a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. A ciência continuará contribuindo com novos conhecimentos, porém com certeza servirá apenas para confirmar a conclusão de Kropotkine. “O fator fundamental do progresso ético do homem tem sido a ajuda mútua, não a luta mútua. O fato de continuar sendo praticada em larga escala também é a melhor garantia de que a raça humana prosseguirá uma evolução cada vez maior.”

Desde o final do século XIX até o início da guerra de 1914, Kropotkin trabalhou intensamente em um número incrível de atividades, além de produzir sete livros. Quando ele se declarou a favor dos aliados, muitos de seus seguidores ficaram surpresos, sem saber o que pensar. No entanto, Kropotkin estava certo de que sua posição era justa. A Revolução Russa de 1917 pareceu-lhe justificar duplamente sua atitude. Assim que as condições permitiram os Kropotkin se despediram de seus amigos ingleses e partiram para a Rússia, onde chegaram em meados de 1917, sendo muito bem recebidos em todos os lugares. Quando Kerensky lhe ofereceu um posto no novo governo, Kropotkin se recusou a aceita-lo. Ele argumentou que a Rússia deveria continuar lutando contra a Alemanha e recomendou o estabelecimento de uma república moderada (para desgosto de seus amigos anarquistas), mas ninguém ouviu. Suas conversas com Lenin foram inúteis. Os últimos anos de Kropotkin foram tragicamente infelizes. Seu coração inocente não havia contado com os Lenin deste mundo. Vendo o que ele sonhara para o futuro da Rússia sendo destruído pelos bolcheviques, principalmente Lenin, escreveu-lhe para apontar os fatos criticáveis, o que sempre fazia se considerasse oportuno, como já o tinha avisado. No outono de 1920, Kropotkin se indignou quando os bolcheviques começaram a tomar reféns para se proteger de possíveis violências de seus adversários. Sem demora, ele escreveu a Lenin estas palavras veementes e proféticas:

 “Acabei de ler no Pravda desta data uma declaração oficial do Conselho dos Comissários do Povo, segundo a qual foi decidido tomar vários oficiais como reféns para proteger-se contra o exército de Wrangel. Não posso acreditar que não tenha ao seu lado alguma pessoa para dizer que tais decisões lembram os momentos mais sombrios da Idade Média, o período das Cruzadas. Vladimir Ilitch, suas ações distorcem completamente as ideias que você pretende aprovar.

Você não sabe o que é um refém em verdade? Não sabe que é um homem mantido prisioneiro, por não haver cometido um crime, mas simplemente porque ele serve a seus inimigos para extorquir seus companheiros? Um refém deve se sentir como um condenado à morte, cujos carrascos anunciam a cada meio-dia-o adiamento da execução para o dia seguinte. Se você aceita tais métodos, é de prever-se que um dia você use tortura, como se fazia na Idade Média.

Espero que ele não tenha argumentado que o poder é um dever profissional do político e que qualquer ataque ao poder deve ser considerado ameaça contra a qual é necessário defender-se a qualquer custo. Até os reis não continuam mantendo essa ideía. Os governantes de países onde a monarquia continua há muito tempo deixaram de lado os meios de defesa que agora surgem na Rússia com a tomada de reféns.

Como você, Vladimir Ilitch, você que quer ser apóstolo de novas verdades e arquiteto de novo Estado, consente com o uso desses meios repulsivos, de métodos tão inaceitáveis? Tomar essas medidas significa confessar publicamente que você adere às ideias do passado.

Mas, talvez, ao tomar esses reféns, não estará você meramente tratando salva der sua própria vida e não de sua obra?

Está tão cego, tão aprisionado em seu autoritarismo. Não consegue entender que, por ser o líder do comunismo europeu, não possui o direito de sujar suas ideias com métodos tão vergonhosos. Métodos que não são apenas provas de um erro monstruoso e também prova de um medo injustificável por sua própria vida?

Que futuro aguarda o comunismo se um de seus campeões mais importantes pisoteia todos os sentimentos honestos dessa maneira?”

Acho que todos sabemos a resposta.

Kropotkin estava desesperado. Ele tentou consolar-se iniciando um trabalho sobre ética que representava a continuação do O APOIO MUTUO[3]. Com sua morte ocorrida em 8 de fevereiro de 1921, a obra ficou inacabado. Como ele mesmo disse: “Quando uma pessoa é verdadeiramente boa, sua memória permanece eternamente viva. Esta memória é gravada na geração seguinte, que a transmite aos seus descendentes. Não é uma imortalidade que vale a pena obter? E Kropotkin obteve.

                                                               Ashley Montagu

                                                                    Princeton, N.J.

[1] Trabalho aparecido em The Nineteenth Century (Londres), v. 23, fevereiro de 1888, pp. 161-180. Em O APOIO MÚTUO, Kropotkin intitula-o equivocadamente “A luta pela vida com relação ao homem”. Se bem que este seja o tema do artigo, não é seu título correto.

[2] The Direction of Human Development de M.F.Ashley Montagu, Harperrx and Bros. New York, 1955, detalha os estudos que apoiam a teoria de Kropotkine.

[3] Piotr Kropotkin, Ethics: Origin and Development, Dial Press, New York, 1925.

MICHEL BERNARD, INTRODUÇÃO: SOBRE METODOLOGIA E TEORIA DO CONHECIMENTO

 

 TRATA-SE DE INTRODUÇÃO CONTIDA EM DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE MICHEL BERNARD, ORIENTADO POR LUCIEN GOLDMANN, COM BASE EM GEORGY LUKÁCS, NA ÉCOLE PRACTIQUE DES HAUTES ÉTUDES, PARIS.

 

MICHEL BERNARD, INTRODUÇÃO, in:

 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS, tradução de Evaldo A Vieira.

 

 

Título original: Introduction à une Sociologie des Doctrines Économiques –Des Physiocrates à Stuart Mill.

Traduzido da edição MOUTON & CO, 1963, E ÉCOLE PRATIQUE DES HAUTES ÉTUDES, PARIS.


 INTRODUÇÃO

 Nas poucas páginas desta introdução, pretendemos indicar as reflexões que nortearam nossa pesquisa e delimitar o âmbito do nosso estudo. Teremos de realizar algumas análises metodológicas e definir alguns termos utilizados com mais frequência.

O título escolhido não nos satisfaz, mas qualquer outro título teria sido tão vago. Nosso principal objetivo é situar as doutrinas econômicas dentro do futuro histórico e confrontá-las com a realidade política, econômica e social dos tempos em que foram concebidas, assim como com as correntes filosóficas que estão passando por esses tempos. Isso nos levará a identificar o significado dessas doutrinas como expressão da realidade política, econômica e social de seu tempo e seu significado como expressão das aspirações humanas e dos valores morais. Se esta dupla abordagem arruína parte do prestígio científico destas doutrinas, talvez permita ao leitor compreender melhor a sua génese, com as intenções e objetivos de seus autores. É evidente que o título escolhido, embora abranja mais ou menos este assunto, tem acima de tudo um valor indicativo.

 

 O PROBLEMA DOS LIMITES DA OBJETIVIDADE CIENTÍFICA

 

Em um primeiro sentido, nosso estudo é uma reflexão sobre o problema dos limites da objetividade científica no campo das ciências humanas Vamos estabelecer alguns marcos sobre esse assunto. Acreditamos que não é possível estudar fatos nas ciências sociais e humanas como coisas de fora. Quer queiramos quer não, o teórico da Economia Política, por exemplo, faz parte de uma totalidade humana em construção, da qual descreve um aspecto.  Todo fato econômico é um fato humano e, portanto, carregado de intenções e significados históricos. Se o teórico pretende descrever esses fatos humanos como coisas de fora, do outro lado do espelho, se negligencia o fato das consciências, ele se expõe aos mal-entendidos mais cruéis, corre o risco de não entender nada sobre os comportamentos que descreve.

Afinal, ele próprio faz parte dessa totalidade humana em construção, toda carregada de intenções. O pesquisador não pode alcançar um conhecimento objetivo e completo dos fatos que ele está tentando explicar. Enfrenta certos limites. Sejamos claros, não é a objetividade em si que é posta em causa, nem a honestidade intelectual do pesquisador. Negar seria rejeitar qualquer ciência do homem, condenar-se a algum moralismo estéril ou a algum pragmatismo irracional. Se existe uma verdade objetiva em relação à qual tendemos, esta verdade não pode ser perfeitamente apreendida, assumida por ninguém. Como o investigador faz parte da totalidade humana, estudada por ele, prenoções, preconceitos, sentimentos, postulados o influenciam, aparecem como telas deturpadoras entre o investigador e a realidade objetiva. Não podemos ignorar esse condicionamento mental, essas categorias básicas que distorcem parcialmente o julgamento do pesquisador desde o início. Além disso, o mundo das ciências humanas é, por excelência, o mundo do complexo e do movimento, de cada autor, na formulação de suas hipóteses, na importância que ele atribui aos vários fatores nos quais está interessado, na escolha de perguntas que ele faz ou deixa de fazer, é influenciado por um viés, por uma mentalidade social preexistente.

Existe, por assim dizer, uma dupla verdade científica nas ciências humanas. Uma verdade científica objetiva em relação à qual tendemos e, em um nível inferior, uma verdade ao nível de nosso grupo social, de nossa época. Depois de colocadas as categorias implícitas, escolhidas as perguntas e as hipóteses iniciais, a pesquisa pode ser realizada com um espírito perfeitamente científico e, observando os fatos e as relações entre eles, pode-se chegar a resultados perfeitamente científicos e objetivos. Mas essa verdade científica permanece extremamente parcial, e qualquer síntese baseada na adição dessas verdades parciais dá uma visão distorcida da verdade global.

Este é o caso das principais doutrinas económicas que nos propomos estudar. Elas contêm um grande número de análises científicas perfeitamente válidas. Mas, como os pensadores pertencem a uma dada sociedade, a uma dada classe, a um dado meio, eles não foram capazes de descrever, sem dar uma interpretação distorcida da mesma, a realidade objetiva de seu tempo.

Mas esses limites do conhecimento objetivo não são limites rígidos. A atenção e a lucidez do investigador, se não lhe der a certeza de que será capaz de assumir plenamente a realidade objetiva, poderá permitir que ele escapasse das armadilhas mais grosseiras, para às vezes ir além do horizonte intelectual de sua classe, para reconhecer perspectivas que são as de outras classes. Sem dúvida, esta é uma hipótese extrema, um esforço prodigioso. Se for infantil negar o condicionamento social de uma doutrina econômica, seria igualmente absurdo pretender confinar a abordagem intelectual do pesquisador dentro de um determinismo mecanicista. Seria absurdo negar o papel libertador da consciência.

Acrescentemos para terminar este capítulo a seguinte observação: é impossível no campo das ciências humanas separar absolutamente as noções de verdade e eficiência. Mais uma vez, não queremos de forma alguma louvar o pragmatismo, mas como o mundo humano é o da consciência e da história, o próprio fato de uma doutrina ser expressa desperta alguma ressonância na consciência dos homens, e assim muda a situação objetiva que a doutrina procura analisar. Uma doutrina que não dá um relato objetivo dos fatos no início, pode tender a ser baseada nos fatos, quando se encontra com um grande eco nas consciências. Os homens projetam em atos as imagens do seu universo mental. Em contrapartida, uma análise conduzida com extrema lucidez por um pensador solitário pode expressar uma realidade objetiva com mais verdade do que outra doutrina. Se essa análise do pensador solitário encontra poucos ecos, se não está adaptada ao estado de espírito dos contemporâneos, permanece ineficaz e, portanto, é dominada pela realidade objetiva. Damos muitos exemplos disso no decorrer do nosso estudo.

 

VISÃO DE MUNDO E IDEOLOGIA

 

Como um ensaio sobre os limites da objetividade científica das doutrinas econômicas, nosso trabalho procura compreender e descrever as filosofias ou, melhor dizendo, as visões de mundo destas doutrinas. O termo "visão de mundo" tem a vantagem sobre o termo "filosofia" de ser mais concreto, mais maleável e capaz de maior extensão. Uma tradução francesa aproximada da expressão alemã "Weltanschauung", a visão de mundo é uma imagem global da natureza do homem, da comunidade e do devir e, se necessário, da divindade, uma imagem global das relações entre estas realidades.

Aos poucos veremos a riqueza metodológica deste termo.

Digamos desde o início que estamos cavando, e as várias pesquisas realizadas reforçaram nossa convicção de que, no centro de qualquer sistema, de qualquer doutrina econômica, social ou política, está uma visão do mundo. Esta visão de mundo pode ser implícita ou explícita. Em muitas doutrinas, na verdade, a visão do mundo não está claramente formulada e exposta, ela permanece na sombra. Mas há casos em que uma visão explícita do mundo, exposta completamente pelo teórico, parece estar em desacordo com o resto de seu sistema, parece ser contrariada por várias análises, de pretensões científicas, que ele faz em outros lugares. Através dessas análises, pode-se perceber uma forte visão de mundo implícita, diferente da visão de mundo explícita. Neste caso, é a visão de mundo implícita que o autor expressa mais profundamente. Isso não significa tirar nenhum valor da visão explícita do mundo. Ela desempenha o papel de uma tela. Serve para esconder as falhas do sistema apenas para o público quando o autor está ciente deste papel de tela. Mas acontece que o próprio autor é enganado, quando não está ciente das contradições internas do seu sistema. O conceito de visão de mundo está ligado ao conceito de ideologia. Nenhum conceito é mais ambíguo que este, para o qual Gurvitch [1] descobre pelo menos catorze significados diferentes ou complementares. Achamos perigoso tentar restringir o significado desse termo de forma abusiva desde o início. Que ideologias são a expressão conceitual dos valores em que um grupo de indivíduos acredita, que traduzem posições sociais ou políticas que defendem e procuram justificar, enquanto a ciência observa ou explica, e absolve uma classe social com apologética ou mistificação, não contestamos isso, e a consciência de tais mistificações pode guiar hipóteses de trabalho, levando a muitas descobertas. Mas nos recusamo-nos a admitir desde o início que ideologias são apenas isso. Como em qualquer doutrina econômica ou social, os elementos científicos propriamente ditos são misturados aos elementos de auto justificação, preferimos tomar o termo ideologia no seu sentido mais amplo. Por ideologia, entendemos qualquer sistema de conceitos que expresse, de forma racional, uma doutrina das ciências humanas. Esta definição não nos permite julgar a priori o valor.

Existe uma ligação lógica entre a visão de mundo e a ideologia, pois é sempre através de uma ideologia que uma visão de mundo é expressa. Uma visão de mundo é, de certa forma, o núcleo de uma ideologia ou, em outras palavras, a ideologia é o desenvolvimento de uma visão de mundo. A ideologia é, por definição, até consciente, enquanto a visão de mundo pode ser imagem implícita, obscura ou confusa na consciência. Mas, neste caso, a clareza ou a coerência da ideologia pode ser sentida.

Imagem mais ou menos implícita na consciência do sujeito, a visão do mundo, em um segundo sentido, também é a imagem ideal, a imagem arquetípica, que nunca é totalmente assumida, explicada, desenvolvida, nos conceitos de ideologia. É o que a ideologia tende a expressar sem jamais alcançá-la completamente. Esta imagem ideal só pode ser desenhada após o fato, referindo-se às mentalidades coletivas de um período, como aparecem nas obras dos pensadores daquele período. Assim, pode-se dar, por exemplo, após o fato, uma visão de mundo ideal do liberalismo econômico. É então um artifício, mas o essencial é tomá-lo como tal. As visões de mundo implícitas ou explícitas dos pensadores de uma época aparecem então como "aproximações" dessas visões de mundo ideais.

 

VISÃO MUNDIAL E CLASSE SOCIAL

 

 É no nível do conceito de visão de mundo que operam as conexões entre as correntes filosóficas de uma época e a doutrina econômica estudada. Mas ainda é este nível que é possível compreender as relações entre esta doutrina e a realidade política e social da época. Concordamos com Goldmann[2] e Georg Lukács que uma classe social ou, mais precisamente, um determinado grupo social corresponde a uma visão de mundo. Cada grupo social, assim que toma consciência de sua originalidade, autonomia, interesses e aspirações, tende a formar uma visão de mundo correspondente a suas aspirações e interesses. Qualquer teórico que pertença ou pretenda pertencer a este grupo, e defenda os interesses deste grupo, adota a visão de mundo deste grupo, ou trabalha para formular uma visão de mundo mais alinhada com seus interesses.

Admitir tal afirmação não é necessariamente adotar o ponto de vista marxista, desde que com Maquet[3] e, mais ainda, Gurvitch, sejam feitas as seguintes correções.

Em primeiro lugar, a relação estabelecida entre a classe social e a visão do mundo é assumida como válida apenas para a era moderna, no Ocidente, dentro de certas estruturas globais.

Em segundo lugar, admitir esta relação não significa recusar a priori a existência de outras relações declaradas por outras sociologias do conhecimento (por exemplo, as relações socioculturais de Sorokin. Com isso, queremos dizer que o determinismo da visão de mundo da classe social não é um determinismo mecanicista. Acreditamos numa verdadeira dialética de inter-ação entre a realidade humana e as doutrinas que a querem expressar.

Finalmente, se podemos legitimamente formular hipóteses que atribuem importância primordial ao fator do grupo social, não podemos reduzir a complexidade da realidade e, em particular, de um trabalho humano, de uma doutrina amadurecida durante um longo período de tempo, ao único determinismo do grupo social, nem dar a nossas hipóteses de correlação o valor das leis científicas do mundo físico. Só podemos dar seu valor explicativo e reconhecer que eles representam aproximadamente a maioria dos fatos.

 Vamos resumir nossa abordagem metodológica:

 1) existem limites à objetividade científica no campo das ciências humanas;

2) O teórico é influenciado pela mentalidade coletiva, preconceitos e paixões de seu grupo social;

3) inerente a sua doutrina, sua visão de mundo implícita ou explícita pode ser compreendida por essa doutrina;

4) sua visão do mundo é, na grande maioria dos casos, aproximadamente, a visão de mundo do grupo social de seu interesse.

 

O conceito de visão de mundo parece-nos, em última análise, singularmente rico e fecundo de um ponto de vista metodológico, pois só em seu nível as diversas ligações entre os múltiplos aspectos da totalidade humana operam. Somente em seu nível, é possível identificar os múltiplos significados das doutrinas consideradas. As visões do mundo são, por assim dizer, as nebulosas do pensamento.

 

ESQUEMAS DE INTERPRETAÇÃO

 

 Essa apresentação necessariamente resumida e sem dúvida enfadonha, pareceu-nos necessária para entender nosso propósito e os processos pelos quais queremos alcançá-lo.

Para cada uma das doutrinas econômicas estudadas, teremos de descrever a visão de mundo que lhe é inerente.

Com isto, será possível desenhar esquemas de interpretação, criar redes significativas.

Por um lado, trata-se de confrontar a visão de mundo descrita com a realidade social e política da época, de marcar as correspondências e discordâncias entre essas visões de mundo e essas realidades, e de explicá-las.

Isso nos leva a considerar a situação do autor estudado, a situação do grupo social ao qual ele pertence. Até que ponto o autor expressa os interesses deste grupo? Até que ponto ele continua prisioneiro de seus preconceitos e paixões? Em sua luta pela objetividade científica, ele consegue ir além do horizonte, da mentalidade desse grupo ou não? Qual é o papel e o valor da ascese intelectual, da tomada de consciência?

Para realizar esta pesquisa na perspectiva indicada, teremos de desmontar os mecanismos da ideologia econômica e social do autor, para mostrar até que ponto ela expressa, reflete ou amplia a visão de mundo. E mais: até que ponto ela pode contradizer a visão de mundo explícita e prever uma visão de mundo implícita muito diferente do mundo.

Para desmontar os mecanismos da ideologia ainda é necessário estudar as máscaras, artifícios e processos pelos quais o autor de uma doutrina, consciente ou inconscientemente, tenta conciliar a verdade científica com os interesses de um grupo social. Busca-se descrever as ilusões e armadilhas dos métodos que são, ou afirmam ser, científicos.

É dentro desse conjunto de análises que localizaremos as principais correntes filosóficas que permeiam as doutrinas econômicas estudadas. É um projeto instrutivo, mas em última análise superficial, o de examinar os sistemas como puros palácios de ideias, calculando a dosagem de racionalismo, naturalismo, idealismo da doutrina, independentemente do estudo do condicionamento objetivo. É alcançar uma satisfação de pura retórica. As influências filosóficas só nos interessam se conseguirmos explicar o porquê delas. As teorias filosóficas como doutrinas econômicas dependem pelo menos parcialmente da realidade política e social de uma época.

 

Uma análise dessa realidade esclarece o mecanismo das influências filosóficas que uma doutrina econômica sofre. Assim, a visão de mundo da doutrina considerada expressa tanto certos aspectos das teorias filosóficas preexistentes como certos aspectos da uma realidade política e social que também preexiste. Longe de se contradizerem, as duas expressões complementam-se e estendem-se uma à outra.

 

SIGNIFICADO MORAL DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS

 

Se, pelos confrontos que permite, o estudo das visões do mundo nos leva a estabelecer o significado político e social das doutrinas estudadas, num determinado momento nos leva simultaneamente a extrair seu significado moral ou humano.

Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, estamos claramente separados de qualquer metodologia de físico ou cientista. E também nos distanciamos de um marxismo vulgar e mecanicista, que pretenderia reduzir toda doutrina, no campo das ciências humanas, ao seu único significado objetivo. Através de situações históricas, quaisquer que sejam os seus determinismos mais ou menos restritivos, as doutrinas testemunham aspirações humanas que excedem ou transcendem os interesses de uma dada sociedade numa determinada época.

Qualquer visão do mundo implica mais ou menos claramente certas atitudes, certos padrões morais, um certo julgamento sobre o bem e o mal, sobre os direitos e deveres dos homens, sobre os valores morais que se trata de incorporar ou, ao contrário, de inverter. Qualquer visão de mundo implica, em última análise, uma certa opção, uma certa aposta no homem, referindo-se a um ideal humano, a uma utopia.

Neste sentido, há por vezes uma contradição entre a aparência da visão de mundo e a concepção do homem nela implícita. Tal doutrina, que se apresenta como humanismo, que afirma querer alcançar a felicidade de todos os homens, é na verdade baseada no profundo desprezo ao homem concreto, preso na sua vida quotidiana, ou admite implicitamente que a humanidade está dividida em duas frações, cada uma dotada de uma moral diferente. É muitas vezes através do estudo desse significado moral que é possível mostrar as falhas de uma visão de mundo aparentemente harmoniosa. Em última análise, a ambiguidade de uma doutrina econômica ou social reside no fato de que ela atende a três requisitos abertamente contraditórios. Deve tender para a objetividade e esse requisito científico pareceu por muito tempo ser o único que conservava o teórico, mesmo quando obedeceu parcial e obscuramente aos outros requisitos.

Deve ser adaptado à situação histórica. No domínio das ciências humanas, uma doutrina é um guia para a ação. Não se trata de contemplar as leis de um mundo, que de qualquer forma está em processo de se tornar, mas de influenciar a direção desse tornar-se. Uma doutrina só se torna eficaz e, portanto, só mantém validade, se estiver enraizada nas consciências. Por fim, toda doutrina, por ter como objetivo a ação, por ser um projeto de homens, obedece a um requisito moral, refere-se a um certo ideal humano. A harmonização dos três requisitos é característica das grandes doutrinas, neste campo das ciências humanas, daquelas que contribuíram para o desenvolvimento do conhecimento objetivo, influenciaram seu tempo e cujas utopias mantiveram algum poder radiante. Por outro lado, o choque dos três requisitos resulta sempre em algum tipo de bloqueio ou falha. Vamos dar muitas ilustrações disso.

 

O PLANO DA PESQUISA

 

O nosso trabalho é apresentado como uma série de estudos de autores relativamente destacáveis uns dos outros. Estes estudos começam com os Fisiocratas e terminam em Stuart Mill e Bastiat, ou seja, por volta de 1848-1850, datas de publicação de suas grandes obras. Não estudamos todos os autores de Economia do período considerado, é evidente, mas apenas aqueles que nos pareciam os mais importantes, cerca de dez no total. Foi necessário fazer uma escolha, e qualquer escolha é discutível. Mantivemos o que normalmente se encontra nas histórias das doutrinas econômicas. Com certeza, o estudo de Nassau Senior ou Charles Comte, por exemplo, seria tão sugestivo quanto o de Ricardo ou Jean-Baptiste Say sob certo ponto de vista. Correto ou não, pareceu-nos preferível situar nas nossas perspectivas de pesquisa os líderes, antes de nos preocuparmos com os seguidores. Como as doutrinas de Ricardo ou Say são geralmente mais conhecidas pelo homem honesto do que as de Senior ou Charles Comte, será mais fácil para o leitor acompanhar-nos em nossos desenvolvimentos, criticar-nos na ocasião.

Podemos, com razão, ser criticados por nos limitarmos a estudos de autores, e certamente teria sido enriquecedor realizar estudo geral do liberalismo como uma visão de mundo e expressão de uma realidade social. Mas este empreendimento nos parecia ambicioso demais no momento. Teríamos feito julgamentos insuficientemente diversificados ou sintetizados. O liberalismo inglês de 1780 difere do liberalismo inglês de 1815, assim como este últino difere do liberalismo francês da mesma data. Nossas análises das doutrinas de Smith, Ricardo e Say ilustram esta afirmação. Cada um deles encarna um momento de liberalismo. Mas o estudo global do liberalismo, nas perspectivas que indicamos, ainda está por fazer. No máximo, reunimos alguns elementos que uma síntese futura será capaz de conter. Se, por outro lado, tentamos um estudo global dos fisiocratas ou socialistas utópicos, percebemos as insuficiências das análises a seu respeito, análises que têm especialmente um valor indicativo.

Ainda, os estudos dedicados aos autores não são exaustivos. Baseamo-nos principalmente em suas grandes obras, nos grandes textos, lidos e relidos com espírito de simpatia e adesão à abordagem do autor, assim como com espírito de lucidez crítica. Nosso objetivo não é tanto fazer descobertas, mas lançar nova luz.

Poderíamos finalmente pensar em limitar o assunto no espaço e no tempo. Também poderíamos restringir o uso do método de pesquisa ao estudo de um único autor, um Ricardo, um Jean-Baptiste Say ou um Sismondi, por exemplo, pois eles nos parecem autores centrais no início do século XIX. Porém o que nossa pesquisa teria ganho em precisão, teria perdido em poder sugestivo.

 

REFERÊNCIAS PESSOAIS E DESCULPAS PREVENTIVAS

 

 Nosso trabalho desafia a objetividade científica das doutrinas econômicas estudadas. É óbvio que nós mesmos nos referimos a certas opções filosóficas e a um certo ideal político e social. Qualquer que seja o nosso esforço de objetividade, as referências certamente guiaram a pesquisa. Melhor que o leitor seja avisado. A coisa mais honesta é indicá-los claramente. Portanto, digamos que, filosoficamente, estamos nos referindo ao personalismo cristão de Emmanuel Mounier e que, politicamente, estamos nos referindo ao ideal de um socialismo democrático que, ao mesmo tempo, são lições de Marx e Proudhon. Os juízos de valor que seremos levados a fazer no decorrer do trabalho esclarecerão essas indicações.

Pedimos desculpas pela aridez dos desenvolvimentos metodológicos. Há o risco de que possam dar origem a mal-entendidos e confusões devido à maneira de exprimir. Contudo, esta introdução mesmo demasiado longa, não nos permitiu formular tudo o que tínhamos em mente. Só os comentários fornecidos pelo estudo dos autores poderão esclarecer alguns pontos. Além disso, acreditamos que esse esforço de sistematização, com suas insuficiências, que nos serviu no início, pode revelar alguma fecundidade em longo prazo, abrindo alguns horizontes para outros pesquisadores.

Esses são sistemas em funcionamento que queríamos surpreender, não sistemas fixos. Aqui termina nossa ambição. Depois disso, parece-nos que o projeto pecou por excesso de ambição. Da grande quantidade de documentação, fizemos escolha necessariamente muito limitada.[4] Algumas de nossas conclusões parecerão insuficientemente fundamentadas e pelo menos questionáveis. Por outro lado, algumas das análises podem ser julgadas insuficientes. No entanto, a falta de dados suficientemente confiáveis, em muitos casos, obrigou-nos a uma prudência talvez lamentável. Poderemos ser criticados por timidez ou exagero nos julgamentos.

No final, apresentamos visão geral muito incompleta e muito desigual. Pelo menos esperamos que ela mereça provocar discussão. Isso significa que aceitamos com gratidão a crítica construtiva. Aplicando e adaptando alguns dos métodos que a Sociologia do Conhecimento já aplicou em outros lugares, tentamos abordar as doutrinas econômicas de maneira incomum. Ao fazê-lo, quaisquer que sejam as nossas deficiências pessoais, esperamos ter preparado as bases para futuras pesquisas. Mais do que o estudo exaustivo dos autores fixados, nosso trabalho é apresentado como uma introdução a este estudo. Outros podem retomar nossa investigação, autor após autor, tendo em conta nossos procedimentos metodológicos, como as perguntas que fizemos e as respostas (provisórias) que lhes demos.

 

 



[1] George Gurvitch, Déterminismes Sociaux et Liberté Humaine. P.U.F., 1955.

[2] Lucien Goldmann, Sciences Humaines et Philosophie. P.U.F., 1952; La Communauté Humaine et l´Univers chez Kant. P.U.F., 1948.

[3] Maquet, Méthode Scientifique et Science Economique, T.I et II. Librairie Médicis, 1952.

[4] No final do livro, damos referências das principais obras metodológicos em que se baseia a nossa pesquisa e dos quais indicamos alguns temas nessa introdução.

Por razões de conveniência, a fim de não alongar demais este trabalho e dar mais profundidade às nossas propostas originais, muitas vezes nos limitamos a resumir brevemente essa ou aquela teoria econômica que será encontrada em outros lugares longamente. Também, se nos esforçarmos a escrever uma obra acessível ao público cultivado, pouco familiarizado com as doutrinas econômicas, é óbvio que deveria ser mais útil tanto para especialistas como para todos aqueles que já se dedicaram a uma ou outra destas Histórias de Doutrinas Económicas, bem conhecidas dos estudantes.