terça-feira, 5 de agosto de 2014

Percurso intelectual, biográfico e literário de Milton José de Almeida

Em torno de uma vida:


Sirvo-me do título da famosa autobiografia de Peter Kropotkine, Em torno de uma vida, a fim de falar um pouco de Milton José de Almeida, por incrível meu testamenteiro durante bom tempo de minha vida. Troquei ideias com Milton sobre todos os assuntos possíveis, éramos confidentes e apoiávamo-nos financeiramente quando precisávamos.

Tenho comigo a memória fraternal do Milton, cuja morte súbita no hospital da Unicamp, em 19 de outubro de 2011, após reunião de Departamento na Faculdade de Educação da Unicamp, aniquilou a obra imensa que amadurecia em seu coração inquieto e verdadeiro.

Reverencio essa memória fraternal com 3 versos do poeta espanhol Miguel Hernández (morto  em 1942, na prisão da ditadura fascista de Francisco Franco na Espanha), versos estes pertencentes à Elegía a Sijé:

“Yo quiero ser lhorando el hortelano
de la tierra que ocupas y estercolas,
compañero del alma, tan temprano”.

1.    Os anos de juventude, de formação e de atuação profissional:


Recentemente li com mais cuidado o “Memorial” escrito por Milton José de Almeida e destinado ao frustrado concurso de professor titular na Faculdade de Educação da Unicamp.

Vejam: quem já possuía em si mesmo a titularidade, deliberou enfrentar burocracia universitária tão sem tradição acadêmica, apoiada ainda por colega do passado e no passado fervorosamente justo, com quem ainda não conversei.

Esta burocracia universitária demorou meses e meses para autorizar meu concurso de titular, realizado muito tempo depois na Faculdade de Educação da Unicamp, então dirigida por um dos meus ex-orientandos. Devido ao tempo decorrido, fui aprovado em concurso público (como sempre aconteceu comigo) em 1990 na Universidade de São Paulo e já exercia lá o cargo de professor titular. A reiterada questão a mim, feita pelos membros da banca examinadora, foi o porquê da titularidade na Unicamp, se exercia de pleno direito o cargo de professor titular na USP. Como explicar à banca examinadora o retardamento silencioso da burocracia da Unicamp, sem desmerece-la? Milton sabia disso de sobra!

Conheci Milton em 1971, na pós-graduação da USP: eu, um doutorando e ele, um mestrando. Em seu “Memorial” alude aos nos nossos estudos de método e teoria do conhecimento. De 10 vagas existentes para ingresso na pós-graduação, ele ficou em 11ª. Colocação, antecedido por 10 moças. O abandono de uma delas, que confundia “linguística com estudo de línguas”, permitiu seu ingresso no mestrado e sua continuidade no doutorado.

Milton não apreciava a vida universitária em geral e em particular, como eu, a arrogância, a impessoalidade e a astúcia da professores intelectuais, quase sempre fictícias, por também quase sempre, no Brasil principalmente, são “especialistas em abrir portas abertas”, como dizia outro falecido amigo.

Mas, ao menos nós éramos recebidos pelos orientadores como em consultório médico do SUS. Marcar entrevista, falar dos problemas, responder o perguntado, em poucas palavras, em pé ou não, discutir texto, dissertação ou tese, às vezes nem lidos pelo professor. Quando doutor, cheguei a ser atacado por pós-graduando (hoje ilustre representante da música popular), que funcionava como cão de guarda de seu orientador, hoje membro da Academia Brasileira de Letras. Felizmente pude identificar-me e dizer-lhe que apenas portava uma carta ao futuro acadêmico, colocando-a em suas mãos.

Milton não buscou ou não gozou de facilidades. Trabalhara em escritório desde cedo, entrou na graduação da USP em Letras, aí se formando em Português e na opção em Alemão. Quando o conheci em 1971, ministrava em torno de 45 horas-aula por semana, de Língua e Literatura Portuguesa e Brasileira, no ensino médio, além de assistir a aulas de pós-graduação. Sobreviveu à teologia da linguística, da semiótica e da semiologia, como eu, graças aos deuses imortais. Sobreviveu ainda à festa dos pedidos de bolsas de estudo, evitando-as ao máximo.

Contratado pela USP e pela PUCSP deixou estas duas universidades para voltar às suas disciplinas do ensino médio. Acompanhou-me, como professor, em seguida no curso de Letras da UNESP, em São José do Rio Preto, onde ouvir o concerto para violino de Felix Mendelsohn Bartholdi significava estar apaixonado por aluna e ele então olhava pela janela da nossa sala na Faculdade e dizia: “Aqui até a natureza é feia”.

Acompanhou-me de novo, em 1977, na Faculdade de Educação da UNICAMP e, quando eu ingressei em 199 no regime de tempo integral na USP, ele não aceitou acompanhar-me outra vez. Chamei-lhe neste caso a atenção: “Lembre-se sempre que a informalidade da UNICAMP é altamente perigosa”.

Milton tornou-se o contrário de mim, com relação à universidade. No início eu via a universidade como um lugar de profissionalização, de liberdade de opinião (pouca, embora maior do que no resto da sociedade submetida à ditadura militar) e de alguma possibilidade de atuação intelectual. Milton negava tudo isto, mas, com o passar dos anos, ousou ser criativo e amoroso com a universidade, descobrindo nela um meio de diálogo com seus alunos, do qual não se poderia separar.

2.    Nossa união em torno da música e da literatura, um convívio simultaneamente distinto e igual:


Nos anos de pós-graduação, que foram poucos, trocamos opinião sobre música clássica e literatura em geral e esta troca de opinião durou sua vida inteira. Em música cultuamos, com profissionalismo, nossas preferências de compositores, regentes, solistas, coros, de espetáculos, indo das canções medievais e Pierluigi da Palestrina a Sergei Prokofiev e Alban Berg. Nossa unanimidade estava com Johann Sebastian Bach, de modo preferencial “A missa em si menor” e “A paixão segundo são Mateus”. Devo-lhe a primeira audição do “Dixit” de Antônio Vivaldi.

Acredito que, de literatura, se eu lhe proporcionei, dentre outras, a indicação da obra de Leon Tolstoi e de William Faulkner, ao Milton devo inúmeras consultas decisivas, como sobre a obra de Roger Martin Du Gard e presentes, como a obra de Samuel Joseph Agnon, presente que me chegou um dia depois de seu sepultamento.

3.    A força do desenho e da pintura na personalidade do Milton José de Almeida, suas barreiras à divulgação, experiências e crescimento pessoal nas artes plásticas:


Conheci Milton desenhando, o que fez pelo resto da vida. Houve ocasiões de reviravolta em sua vida, como em todas as vidas, e ele esticava seu talento para outras atividades artísticas. Insisti sempre que ele desenhasse e pintasse, porque aí ele era o Milton, mesmo no momento de sua vida em que se entusiasmou pela poesia, pela imagem e pelo cinema.

Possuo pinturas de todas as fases do Milton, por elas vejo-o nas suas diversas expressões ao longo da vida. Foi sobretudo um pintor, de enorme erudição, que muito ensinou com honestidade, segurança e coragem. Um pintor quase autodidata, experimentalista fundamentado, que não sabia e não queria ter visibilidade, discreto, desprezando o comércio com a arte e envergonhado dos disparates alheios, incapaz, como eu, de comportar-se como um autor de autoajuda.

4.    A educação pela arte e o martírio do ambiente mesquinho e pobre:


Milton condenou-se a um ambiente mesquinho, pobre de ideias e de baixa secularização, e um verdadeiro intelectual não existe sem meio intelectual. Poucas pessoas sabem disto, ele não fazia confissões integrais, mesmo no “Memorial”. O pior para o intelectual é a solidão da autoreferência. Respirou e sobreviveu com os carinhos e os cuidados recebidos de alguns amigos e amigas, sendo mais fácil morrer, era um “profeta desarmado”. Na última visita feita a ele, por mim e por Godiva, visita rápida, estranha (despedimo-nos na porta de seu apartamento, o que nunca aconteceu antes) e tensa, Milton achava-se indignado com grosserias sofridas na Faculdade de Educação.
Contou-nos, por exemplo, que um dos alunos em classe cortava as unhas do pé durante a aula à noite, etc.. Insisti em sua aposentadoria e questionado por nós sobre sua presença em reuniões de Departamento e em outras reuniões, respondeu-nos que era a forma de não ficar na solidão em casa. Ainda assim, quando percorri seus livros na sua biblioteca, lembrou que nós dois devíamos o mais rapidamente possível aprender o hebraico para sermos recebidos, após a morte, já falando a língua lá utilizada.
Falei-lhe sempre de meu conhecimento de um pouco da cultura judaica, aos poucos não só se dedicou bastante à literatura e aos livros sagrados dos judeus. Sobrou-me dele um excelente volume do Talmude.

5.            Palavras finais:


Quero recordar umas poucas frases do Milton, contidas em duas páginas escritas por ele para Godiva Accioly, na orientação de mestrado:

“Lembrando do Evaldo e parafraseando Tolstoi, todos leem o mesmo texto, mas o entendem a sua maneira”.

“Na neutralidade não há responsabilidade política do pesquisador.”

“Enquanto eu não morrer, ninguém poderá garantir me conhecer, ou seja, poder dar um sentido às minhas ações, que por isso permanecem mal decifrável. É, assim, absolutamente necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a linguagem da nossa vida, com que nos expressamos, permanece intraduzível: um caos de possibilidades, uma busca de relações e de significados sem solução de continuidade”.

Por isto, dizia o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958), em seu poema La muerte:

“Quiero dormir esta noche
que tu estás muerto; dormir,
dormir, dormir, paralela-
mente a tu sueño completo;
a ver si te alcanzo así!”


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