Em torno de uma vida:
Sirvo-me do título da famosa autobiografia de
Peter Kropotkine, Em torno de uma
vida, a fim de falar um pouco de Milton José de Almeida, por incrível
meu testamenteiro durante bom tempo de minha vida. Troquei ideias com Milton
sobre todos os assuntos possíveis, éramos confidentes e apoiávamo-nos
financeiramente quando precisávamos.
Tenho comigo a memória fraternal do Milton,
cuja morte súbita no hospital da Unicamp, em 19 de outubro de 2011, após
reunião de Departamento na Faculdade de Educação da Unicamp, aniquilou a obra
imensa que amadurecia em seu coração inquieto e verdadeiro.
Reverencio essa memória fraternal com 3
versos do poeta espanhol Miguel Hernández (morto em 1942, na prisão da ditadura fascista de
Francisco Franco na Espanha), versos estes pertencentes à Elegía a Sijé:
“Yo
quiero ser lhorando el hortelano
de
la tierra que ocupas y estercolas,
compañero
del alma, tan temprano”.
1.
Os
anos de juventude, de formação e de atuação profissional:
Recentemente
li com mais cuidado o “Memorial” escrito por Milton José de Almeida e destinado
ao frustrado concurso de professor titular na Faculdade de Educação da Unicamp.
Vejam:
quem já possuía em si mesmo a titularidade, deliberou enfrentar burocracia
universitária tão sem tradição acadêmica, apoiada ainda por colega do passado e
no passado fervorosamente justo, com quem ainda não conversei.
Esta
burocracia universitária demorou meses e meses para autorizar meu concurso de
titular, realizado muito tempo depois na Faculdade de Educação da Unicamp,
então dirigida por um dos meus ex-orientandos. Devido ao tempo decorrido, fui
aprovado em concurso público (como sempre aconteceu comigo) em 1990 na
Universidade de São Paulo e já exercia lá o cargo de professor titular. A
reiterada questão a mim, feita pelos membros da banca examinadora, foi o porquê
da titularidade na Unicamp, se exercia de pleno direito o cargo de professor
titular na USP. Como explicar à banca examinadora o retardamento silencioso da
burocracia da Unicamp, sem desmerece-la? Milton sabia disso de sobra!
Conheci
Milton em 1971, na pós-graduação da USP: eu, um doutorando e ele, um mestrando.
Em seu “Memorial” alude aos nos nossos estudos de método e teoria do
conhecimento. De 10 vagas existentes para ingresso na pós-graduação, ele ficou
em 11ª. Colocação, antecedido por 10 moças. O abandono de uma delas, que
confundia “linguística com estudo de línguas”, permitiu seu ingresso no
mestrado e sua continuidade no doutorado.
Milton
não apreciava a vida universitária em geral e em particular, como eu, a
arrogância, a impessoalidade e a astúcia da professores intelectuais, quase
sempre fictícias, por também quase sempre, no Brasil principalmente, são
“especialistas em abrir portas abertas”, como dizia outro falecido amigo.
Mas,
ao menos nós éramos recebidos pelos orientadores como em consultório médico do
SUS. Marcar entrevista, falar dos problemas, responder o perguntado, em poucas
palavras, em pé ou não, discutir texto, dissertação ou tese, às vezes nem lidos
pelo professor. Quando doutor, cheguei a ser atacado por pós-graduando (hoje
ilustre representante da música popular), que funcionava como cão de guarda de
seu orientador, hoje membro da Academia Brasileira de Letras. Felizmente pude
identificar-me e dizer-lhe que apenas portava uma carta ao futuro acadêmico,
colocando-a em suas mãos.
Milton
não buscou ou não gozou de facilidades. Trabalhara em escritório desde cedo,
entrou na graduação da USP em Letras, aí se formando em Português e na opção em
Alemão. Quando o conheci em 1971, ministrava em torno de 45 horas-aula por
semana, de Língua e Literatura Portuguesa e Brasileira, no ensino médio, além
de assistir a aulas de pós-graduação. Sobreviveu à teologia da linguística, da
semiótica e da semiologia, como eu, graças aos deuses imortais. Sobreviveu
ainda à festa dos pedidos de bolsas de estudo, evitando-as ao máximo.
Contratado
pela USP e pela PUCSP deixou estas duas universidades para voltar às suas
disciplinas do ensino médio. Acompanhou-me, como professor, em seguida no curso
de Letras da UNESP, em São José do Rio Preto, onde ouvir o concerto para
violino de Felix Mendelsohn Bartholdi significava estar apaixonado por aluna e
ele então olhava pela janela da nossa sala na Faculdade e dizia: “Aqui até a
natureza é feia”.
Acompanhou-me de novo, em
1977, na Faculdade de Educação da UNICAMP e, quando eu ingressei em 199 no
regime de tempo integral na USP, ele não aceitou acompanhar-me outra vez.
Chamei-lhe neste caso a atenção: “Lembre-se sempre que a informalidade da
UNICAMP é altamente perigosa”.
Milton tornou-se o contrário
de mim, com relação à universidade. No início eu via a universidade como um
lugar de profissionalização, de liberdade de opinião (pouca, embora maior do
que no resto da sociedade submetida à ditadura militar) e de alguma
possibilidade de atuação intelectual. Milton negava tudo isto, mas, com o
passar dos anos, ousou ser criativo e amoroso com a universidade, descobrindo
nela um meio de diálogo com seus alunos, do qual não se poderia separar.
2. Nossa união em torno da
música e da literatura, um convívio simultaneamente distinto e igual:
Nos anos de pós-graduação,
que foram poucos, trocamos opinião sobre música clássica e literatura em geral
e esta troca de opinião durou sua vida inteira. Em música cultuamos, com
profissionalismo, nossas preferências de compositores, regentes, solistas,
coros, de espetáculos, indo das canções medievais e Pierluigi da Palestrina a
Sergei Prokofiev e Alban Berg. Nossa unanimidade estava com Johann Sebastian
Bach, de modo preferencial “A missa em si menor” e “A paixão segundo são
Mateus”. Devo-lhe a primeira audição do “Dixit” de Antônio Vivaldi.
Acredito que, de literatura,
se eu lhe proporcionei, dentre outras, a indicação da obra de Leon Tolstoi e de
William Faulkner, ao Milton devo inúmeras consultas decisivas, como sobre a
obra de Roger Martin Du Gard e presentes, como a obra de Samuel Joseph Agnon,
presente que me chegou um dia depois de seu sepultamento.
3. A força do desenho e da
pintura na personalidade do Milton José de Almeida, suas barreiras à
divulgação, experiências e crescimento pessoal nas artes plásticas:
Conheci Milton desenhando, o
que fez pelo resto da vida. Houve ocasiões de reviravolta em sua vida, como em
todas as vidas, e ele esticava seu talento para outras atividades artísticas.
Insisti sempre que ele desenhasse e pintasse, porque aí ele era o Milton, mesmo
no momento de sua vida em que se entusiasmou pela poesia, pela imagem e pelo
cinema.
Possuo pinturas de todas as
fases do Milton, por elas vejo-o nas suas diversas expressões ao longo da vida.
Foi sobretudo um pintor, de enorme erudição, que muito ensinou com honestidade,
segurança e coragem. Um pintor quase autodidata, experimentalista fundamentado,
que não sabia e não queria ter visibilidade, discreto, desprezando o comércio
com a arte e envergonhado dos disparates alheios, incapaz, como eu, de
comportar-se como um autor de autoajuda.
4. A educação pela arte e o
martírio do ambiente mesquinho e pobre:
Milton condenou-se a um ambiente
mesquinho, pobre de ideias e de baixa secularização, e um verdadeiro
intelectual não existe sem meio intelectual. Poucas pessoas sabem disto, ele
não fazia confissões integrais, mesmo no “Memorial”. O pior para o intelectual
é a solidão da autoreferência. Respirou e sobreviveu com os carinhos e os
cuidados recebidos de alguns amigos e amigas, sendo mais fácil morrer, era um
“profeta desarmado”. Na última visita feita a ele, por mim e por Godiva, visita
rápida, estranha (despedimo-nos na porta de seu apartamento, o que nunca
aconteceu antes) e tensa, Milton achava-se indignado com grosserias sofridas na
Faculdade de Educação.
Contou-nos, por exemplo, que
um dos alunos em classe cortava as unhas do pé durante a aula à noite, etc..
Insisti em sua aposentadoria e questionado por nós sobre sua presença em
reuniões de Departamento e em outras reuniões, respondeu-nos que era a forma de
não ficar na solidão em casa. Ainda assim, quando percorri seus livros na sua
biblioteca, lembrou que nós dois devíamos o mais rapidamente possível aprender
o hebraico para sermos recebidos, após a morte, já falando a língua lá
utilizada.
Falei-lhe sempre de meu
conhecimento de um pouco da cultura judaica, aos poucos não só se dedicou
bastante à literatura e aos livros sagrados dos judeus. Sobrou-me dele um
excelente volume do Talmude.
5.
Palavras finais:
Quero recordar umas
poucas frases do Milton, contidas em
duas páginas escritas por ele para Godiva Accioly, na orientação de mestrado:
“Lembrando do Evaldo
e parafraseando Tolstoi, todos leem o mesmo texto, mas o entendem a sua
maneira”.
“Na neutralidade não
há responsabilidade política do pesquisador.”
“Enquanto eu não
morrer, ninguém poderá garantir me conhecer, ou seja, poder dar um sentido às
minhas ações, que por isso permanecem mal decifrável. É, assim, absolutamente
necessário morrer, porque, enquanto estamos vivos, falta-nos sentido, e a
linguagem da nossa vida, com que nos expressamos, permanece intraduzível: um
caos de possibilidades, uma busca de relações e de significados sem solução de
continuidade”.
Por isto, dizia o
poeta espanhol Juan Ramón Jiménez (1881-1958), em seu poema La muerte:
“Quiero dormir esta noche
que tu estás muerto; dormir,
dormir, dormir, paralela-
mente a tu sueño completo;
a ver si te alcanzo así!”
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