sábado, 22 de outubro de 2022

HENRY DAVID THOUREAU Passagens Fundamentais: A DESOBEDIÊNCIA CIVIL

 HENRY DAVID THOUREAU: A desobediência civil 

Nasceu no Estado de Massachusetts, nos Estados Unidos da América, em 12 de junho de 1817, falecendo em 1862. Dedicou-se ao magistério, depois foi conferencista e escritor, na realidade sobrevivendo com pequena fábrica de lápis da família. 

O escritor Henry Miller disse que entre cinco ou seis homens na história dos Estados Unidos, que tinham significação, Thoureau era um deles. 

Aos vinte e oito anos, Thoureau passou a morar sozinho numa cabana, construída por ele à margem do Lago Walden, próximo a Concord, Massachusetts. Ao longo de mais de dois anos me que aí permaneceu, iniciou um pouco de sua pequena obra, com "Walden" ou a "Vida nos Bosques". A título de informação, notem-se certas questões trazidas por Thoureau, conforme sua prefaciadora, Astrid Cabral:

1) "A maioria dos luxos e chamados confortos da vida, não só não dispensáveis como constituem até obstáculos à elevação da humanidade"; 

2) "Por que teríamos de viver com tanta pressa, esbanjando a vida? Decidimos morrer de fome antes de sentir fome".

3) "Todo homem é o senhor de um reino ao lado do qual o império terrestre do Czar é apenas um estado minúsculo, um montículo deixado pelo gelo". 

4) Na "Desobediência Civil": "Ao me deparar com um governo que me diz: "A bolsa ou a vida!, porque haveria de lhe dar logo meu dinheiro? Talvez se encontre em grande aperto e não saiba o que fazer: não posso evitar isso, nem ajudá-lo"


EXCERTOS DO MAIS FAMOSO E DIVULGADO 

ESCRITO DE HENRY DAVID THOREAU


DESOBEDIÊNCIA CIVIL (1849)


De todo o coração aceito o lema: "O melhor governo é o que governa menos", e gostaria de vê-lo posto em execução de modo mais rápido e sistemático. Levado a efeito, há de redundar finalmente noutro, de que também estou convicto: "O melhor governo é o que não governa de maneira nenhuma"; e quando os homens estiverem preparados para essa forma de governo, será a que terão todos eles. Um governo é, se tanto, um expediente; mas muitos governos são sempre, e todos em algumas ocasiões, sem expediente. As objeções que se apresentam contra um exército permanente, muitas e de peso, e merecendo prevalecer, podem afinal ser também apresentadas contra um governo permanente. O governo em si, que é tão só o modo que o povo escolheu para executar sua vontade, é igualmente suscetível de abuso e deturpação antes que o povo possa atuar por seu intermédio. Observai a atual guerra mexicana [guerra entre Estados Unidos e México (1846-1848) que redundou na anexação do Texas e na compra do Novo México e da Califórnia-N.T.], obra de um número proporcionalmente pequeno de indivíduos valendo-se do governo estabelecido como instrumento; pois, para começar, o povo não teria aprovado esta medida. 
Este governo americano, o que é senão uma tradição, embora recente, tentando transmitir-se inalterada às gerações futuras, mas a cada instante perdendo algo de sua integridade? Ele não possui a vitalidade e a força de um único homem vivo, pois este pode dobrá-lo a sua vontade. é uma espécie de arma de madeira para o próprio povo.  
(...) Mas, para falar de modo prático e como cidadão, diferentemente daqueles que se dizem homens de nenhum governo, pleiteio, não a imediata ausência de governo, mas de imediato um governo melhor. Que cada homem expresse o tipo de governo que lhe inspiraria respeito, e será esse o primeiro passo no sentido de conquistá-lo.
Afinal de constas, um vez que o poder está nas mãos do povo, a razão prática pela qual se permite que a maioria governe e continue a governar por longo tempo, não é porque haja mais probabilidade de ela estar com o direito, nem porque assim pareça mais justo à minoria, porém porque é fisicamente mais forte. Mas um governo em que a maioria decide em todos os casos não pode estar baseado na justiça, mesmo na medida em que os homens a concebem. Será impossível um governo em que a maioria não decida por assim dizer sobre o que é certo e errado, mas sia a consciência? Um governo em que as maiorias decidam apenas aquelas questões para as quais o critério da conveniência se aplica? Deve o cidadão por um momento sequer, ou num grau mínimo, renunciar à sua consciência em prol do legislador? Então por que terá cada homem uma consciência? Acho que devemos em primeiro lugar ser homens, e só depois súditos. Não é desejável que se cultive um respeito à lei igual ao que se cultiva pelo que é correto. A única obrigação que tenho direito de assumir é a de fazer a todo momento o que julgo correto. Diz-se, é bem verdade, que uma corporação não possui consciência; mas uma corporação de homens conscienciosos é uma corporação que possui consciência. A lei nunca tornou os homens nem um pouquinho mais justos, e devido ao respeito que têm por ela, mesmo os bem intencionados tornam-se no dia a dia agentes de injustiça. Resultado comum e natural do indevido respeito à lei é a fila que se pode ver de um destacamento militar; coronel,  capitão, cabo, soldados rasos, artilheiros, todos marchando em admirável ordem, morro acima e morro abaixo a caminho das guerras, contra suas vontades, e também contra o bom senso e a consciência de cada um, o que torna aquela marcha uma escalada em verdade muito árdua e causa de palpitação cardíaca. Eles não têm a menor dúvida de que se acham envolvidos numa tarefa condenável, todos inclinados em prol da paz. Ora, o que são eles? Afinal são homens ou minúsculos fortins e depósitos ambulantes de munição a serviço de algum inescrupuloso detentor do poder? Visitai um estaleiro e contemplai um fuzileiro naval, aquilo que o governo americano pode fazer de um homem, o que pôde fazer dele com suas feitiçarias - mera sombra ou reminiscência da humanidade, um ser vivo, de pé, e já, pode-se dizer, enterrado debaixo de armas com acompanhamentos funéreos, ainda que, 

"Nenhum tambor, nenhuma nota fúnebre ouvida/ Quando seu cadáver à trincheira levamos;/Nenhum soldado deu o tiro de despedida/Sobre o túmulo onde nosso herói enterramos."
Assim é que a massa de homens serve ao estado, não como homens antes de tudo, mas como máquinas, com seus corpos. Formam o exército permanente, as milícias, os carcereiros, os policiais, o pelotão de guardas civis, etc. Na maioria dos casos não há nenhum exercício livre, seja do juízo ou de sentido moral; mas todos se colocam no mesmo nível do lenho, da terra e das pedras; e quem sabe homens de madeira podem vir a ser manufaturados para servir a tais propósitos igualmente bem. Tais não merecem mais respeito que espantalhos e bonecos de barro. Valem apenas como cavalos e cachorros. Contudo, tipos como esses são comumente estimados como bons cidadãos. Outros - como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, sacerdotes e funcionários - servem ao estado sobretudo com a cabeça; e, como eles raramente fazem distinções de ordem moral, é bem provável que sirvam ao Demônio, como servem a Deus, sem a menor intenção. Muito poucos, como os heróis, os patriotas, os mártires, os reformadores em sentido amplo, e os homens, servem ao estado também com a sua consciência, e assim necessariamente lhe oferecem resistência a maioria das vezes, passando em geral a ser considerados inimigos do estado. Um homem sensato só será útil como homem, e não se submeterá a ser "barro" e "tapar buraco para impedir a passagem do vento", mas há de deixar essa função ao menos para seus restos mortais:
"Sou muito bem-nascido e abastado/ Para um lugar secundário no comando/Ou para serviçal útil e instrumento/De qualquer um estado soberano".
Aquele que se entrega de todo aos seus companheiros é tido por estes como inútil e egoísta; mas quem se dá somente em parte é proclamado por eles como benfeitor e filantropo. 
Como convém a uma pessoa comportar-se em relação a este governo americano de hoje? Respondo que não pode sem desgraça associar-se a ele. Não posso por um instante sequer reconhecer como meu governo essa organização política que é também a do escravo.
Todos os homens reconhecem o direito à revolução, isto é, o direito de recusar sujeição ao governo e de resistir quando sua tirania ou incompetência são em alto grau e insuportáveis. Mas quase todos dizem que tal não é o caso no momento. Mas tal era o caso, julgam, quando da Revolução de 1775.