Faltou-me desde logo o dote da efusão. Não tive o privilégio de ser
acumulador de capital humano, sem muitas simpatias para gastar, sem abraços
para envolver, sem variadas promessas de felicidade, ventura, contentamento,
boa fortuna, sorte ou emprego. Nunca prometi o que não posso fazer nem oferecer,
um defeito grave e mortal na prática política do país e do estrangeiro.
Em decorrência disso, não consegui tornar real um dos sonhos de meu pai
com o filho sobrevivente: surgir como um novo Roberto Carlos, “quero que você
me aqueça neste inverno e tudo o mais vá para o inferno”. Devia ser mais ou
menos assim, transcorridos tantos e tantos anos desde que percorri a Rua São
Bento, ouvindo continuamente o “vá para o inferno”, em cada loja, alto a não
mais poder. Com efeito, no ano seguinte o país foi mesmo para o inferno com o
golpe e a ditadura de 1964, de que só saiu com muito sangue, suor e
pouquíssimas lágrimas. Como ser novo Roberto Carlos e ficar famoso e rico, se
nunca passei perto de guitarra elétrica, não sei balançar o corpo de um lado
para outro segurando o microfone, e meu cabelo nunca me tapou as orelhas. Nem
sou capaz de mostrar alegria, alegria, alegria, convencê-las, quando as pessoas
estão tristes e preocupadas.
Saí por aí em busca de trabalho. Anos e anos se passaram. Um dia, um
antigo professor da Faculdade elegeu-se governador do Estado e me queria junto
do filho dele, bom rapaz e meu colega nas aulas e na mesma família de nomes
“E”. Naquela época eu fumava um bom cachimbo, cujo prazer de misturar os fumos
perfumados se somava à virtude de colocá-lo na boca e não falar para ele não
apagar. Não falando ou pouco falando se erra pouco! Parei de fumá-lo a fim de
sobreviver. Guardei-o de lembrança.
No dia em que tomei posse e fui até a minha futura mesa de trabalho, tive
uma surpresa: sobre a indigitada mesa: me deparei com inúmeros pacotes de fumo
holandês genuíno, com o qual fazia a mistura com o fumo de Cisneros, gerando um
perfume agradável. Estou até hoje à procura do gentil presenteador! Porém
entendi o seu recado.
Das mais dolorosas experiências sofridas por mim durante a curtíssima
passagem na “administração pública”, sem dúvida uma delas esteve na “oratória
política, parlamentar ou coisa que o valha”. Na maioria das vezes ela consiste
em obedecer fielmente ao largo princípio: “Vamo aprender ingleis porque
portugueis nós já sabe”. Numa das missões a serem cumpridas na “administração
pública”, das missões imperdíveis, tive de acompanhar meu amigo, filho do
governador, à inauguração do escritório novo de deputado federal, em grande
cidade do interior paulista, deputado famoso na ocasião por ter dado o voto da
vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral da ditadura, elegendo o hábil
Tancredo à presidência da República. Como é sabido, ele não a exerceu, devido à sua
doença e morte.
Viajamos em avião da falecida Vasp, tudo o que era burocrata estadual,
desde office boys, apadrinhados como eu, cabos eleitorais e famílias, altos
funcionários com os terninhos característicos, secretários e representante do
governador. Transcorridos os ritos de comes e bebes, os prefeitos da região,
com os rostos corados e os olhos não digo injetados, tomaram da palavra para
saudar o “nobre deputado”. Inicialmente, a oratória municipal agradeceu as
inúmeras obras públicas (por sinal, realizadas com dinheiro público e não por
ele), consistentes em construções que iam do jardim ao esgoto, do dar emprego
aos necessitados (eufemismo de empreguismo) à colocação de macadames em 100
metros de rua, com esgoto funcionando, vejam só. Ao final, não mais existia
algum benefício a ser agradecido pelos prefeitos presentes; também já se falara
do bom pai de família, da esposa alegre, dos filhos garbosos e bem vestidos, do
amor dos concidadãos satisfeitos com as ruas limpas. Ansioso por responder aos
elogios e às manifestações de amizade finalizar a solenidade, o deputado
tolerou um último prefeito que se não falasse algo passaria mal. Disse ele,
inteiramente sem assunto: “Exmo. Sr. Deputado, Exma. Família, senhores e
senhoras presentes, não, não poderia deixar de dizer algumas palavras, e como
os demais prefeitos mostraram todas as suas bondades, sobrou para mim saudar a
bendita hora em que o Sr. seu pai o concebeu com sua querida mãe, que estão
aqui neste momento de homenagem, em lugar apropriado e macio, numa relação no
mínimo satisfatória. Obrigado.” Nada mais acrescentou.
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