quinta-feira, 9 de junho de 2022

PIOTR KROPOTKIN: DOIS PREFÁCIOS DE O APOIO MÚTUO (UM FATOR DE EVOLUÇÃO) E BIOGRAFIA DE KROPOTKIN, POR ASHLEY MONTAGU

 

 O APOIO MÚTUO, UM FATOR DE EVOLUÇÃO: DOIS PREFÁCIOS DE PIOTR KROPOTKIN E SUA BIOGRAFIA, POR ASHLEY MONTAGU.

 Tradução do espanhol, direta do russo, por Luís Orsetti, pela Editorial Projeção, Argentina, Buenos Aires, 1970.

Tradução ao português por Evaldo Amaro Vieira, cotejada com a edição inglesa.


PRÓLOGO À PRIMEIRA EDIÇÃO RUSSA

 

 Enquanto preparava a impressão desta edição russa de meu livro – a primeira traduzida do livro MUTUAL AID: a FACTOR OF EVOLUTION, e não dos artigos publicados na revista inglesa – aproveitei a oportunidade para revisar cuidadosamente todo o texto, corrigir pequenos erros e completar os Apêndices, baseando-me em algumas obras novas, em parte a respeito da ajuda mútua entre os animais (Apêndices III, V, VI e VIII), e em parte a respeito da propriedade comunal na Suíça e na Inglaterra (Apêndices XVI e XVII).

 

Bromley, Kent. Maio 1907.




NOVO PREFÁCIO DE KROPOTKIN


Minha pesquisa sobre ajuda mútua entre animais e entre homens foi impressa pela primeira vez na revista inglesa “Nineteenth Century”. Os dois primeiros capítulos, sobre sociabilidade em animais e sobre a força adquirida por espécies sociáveis na luta pela existência, foram respostas ao artigo do conhecido fisiólogo e darwinista Huxley, aparecido no “Nineteenth Century” em fevereiro de 1888 – “A luta pela existência: um programa” - , onde a vida dos animais foi pintada como uma luta desesperada de um contra todos. Após o aparecimento dos meus dois artigos em que refutei essa opinião, o editor da revista, James Knowles, expressando muita simpatia pelo meu trabalho, pedindo-me para continuar, observou: “Não há dúvida de que você demonstrou sua posição em relação aos animais, mas qual é sua posição em relação ao homem primitivo?”

A respeito da questão do homem, respondi também em dois artigos onde, depois de um cuidadoso estudo da rica literatura moderna sobre as complexas instituições da vida tribal, que os primeiros viajantes e missionários não puderam analisar, descrevi estas instituições entre os selvagens e os chamados “bárbaros”. Esta obra, e especialmente o conhecimento da Comuna rural no início da Idade Média, que desempenhou um papel enorme no desenvolvimento da civilização que renascia novamente, levaram-me ao estudo da etapa seguinte, ainda mais importante, do desenvolvimento da Europa – da cidade medieval livre e suas guildas de artesãos. Apontei o papel corruptor do Estado militar que destruiu o livre desenvolvimento das cidades livres, suas artes, artesanato, ciências e comércio. Mostrei, no último artigo, que, apesar do colapso das federações e dos sindicatos livres devido à centralização estatal, essas federações e sindicatos começam agora a desenvolver-se cada vez mais e a conquistar novos domínios. A ajuda mútua na sociedade moderna constituiu, assim, o último artigo da minha obra sobre a ajuda mútua.

Ao editar esses artigos em livro, introduzi alguns acréscimos essenciais, principalmente da relação de minhas opiniões com a luta darwinista pela existência. Nos Apêndices citei alguns fatos novos e analisei algumas questões que, por causa da brevidade, tive de omitir nos artigos da revista.

Nenhuma das traduções nas línguas da Europa Ocidental, nem as escandinavas e polonesas, foi feita baseada nos artigos, e sim no livro. Por isto, continham as adições expostas no texto e nos Apêndices. Das traduções para o russo, somente uma que apareceu em 1907 no Editorial Conhecimentos (Znania) estava completa. Além disso, introduzi vários apêndices novos, com base em novas obras, parte sobre ajuda mútua entre animais e parte sobre a propriedade comunitária de terras na Inglaterra e na Suíça. As outras edições russas partiram dos artigos da revista inglesa, e não do livro. Portanto, elas não possuem as adições feitas por mim ao texto ou omitiram os Apêndices. A edição oferecida agora contém todas as adições e os Apêndices, todo o texto e a tradução novamente revisados por mim.

                                                                          P.K.

Dmitrof, março de 1920.

 

PREFÁCIO DO PROFESSOR ASHLEY MONTAGU


O APOIO MÚTUO de PIOTR KROPOTKIN é um dos grandes livros da humanidade. Isto evidencia, entre outras coisas, o fato de ser constantemente objeto de reimpressão. É difícil consegui-lo, até nas bibliotecas, pois parece ter permanente procura. Compreende-se assim que recebamos sempre com satisfação toda reedição de tão notável obra.

O autor, o Príncipe Piotr Ayexeyevich Kropotkin, nasceu em Moscou em 1842. A família Kropotkin pertencia à mais alta aristocracia russa e descendia dos Príncipes de Smolensk e de Kiev. O pai de Piotr era militar, proprietário de terras e de servos. A mãe, Ekaterina Sulima, faleceu prematuramente na idade de 35 anos, quando o menino tinha apenas três anos e meio de idade. Ekaterina foi uma criatura muito carinhosa e delicada, e o amor que dedicou a seus quatro filhos – Nicolás, nascido em 1834; Elena, um ano mais jovem; Alexander, nascido em 1841, e Piotr, vindo ao mundo em 1842 – acompanharam-nos por toda a vida. “Bastava conhecê-la para amá-la”, escreveu Piotr em suas MEMÓRIAS. “Em seu nome, Madame Burman cuidou de nós, e em seu nome nos encheu de amor a preceptora russa... Toda nossa infância foi iluminada por suas lembranças. Quantas vezes, em algum canto escuro, acariciava-nos, Alexander ou eu, a mão de um criado. Quantas vezes no campo uma camponesa vinha até nós e nos perguntava: você será tão bom quanto sua mãe? Ela tinha muita compaixão por nós. Certamente será como ela. 'Nós' significava, é claro, os servos. Não sei o que seria de nós se os servos não tivessem criado em nossa casa aquela atmosfera de carinho de que as crianças precisam tanto ...

"Os homens desejam fervorosamente viver após a morte; mas a maioria deixa este mundo sem perceber que, quando uma pessoa é realmente boa, sua memória permanece eternamente viva. Essa lembrança é registrada na próxima geração, que a transmite para a descendência. Não vale a pena obter esta imortalidade?"

Citei tal passagem em detalhe, porque considero que ela explica em parte a personalidade de Kropotkin, além de mostrar sua compreensão e simpatia pelos servos deste mundo. Em seus escritos, Kropotkin lembra repetidamente a bondade e a grandeza de alma dos servos que conheceu em sua infância. Por eles lutou toda sua vida, por eles e por todos quantos viviam servos de seus próprios preconceitos.

Como era costume nas famílias aristocráticas, Piotr foi enviado ao Corpo de Pajem para receber educação militar; esta vida não lhe agradava. Por suas leituras, chegou à conclusão de que a Sibéria seria o lugar ideal para dar livre curso a suas inclinações naturais. A geografia, a zoologia, a botânica e a antropologia da região eram pouco conhecidas. Por isso, Kropotkin decidiu solicitar sua transferência para um regimento siberiano. A ideia horrorizou o pai, que considerou totalmente absurda a escolha do filho. Preferir a Sibéria a uma brilhante carreira na Corte? Finalmente, foi obrigado a ceder e assim, em 24 de julho de 1862, seu filho Piotr partiu para a Sibéria.

Kropotkin realizou notável e original trabalho nos campos da geografia, da geologia e da zoologia. A Sociedade Russa de Geografia publicou suas observações meteorológicas e geográficas, estudos pelos quais lhe outorgou uma medalha de ouro. A teoria de Kropotkin sobre o desenvolvimento da estrutura da Ásia é tão importante que seria suficiente para reservar-lhe um lugar permanente na história da geografia científica. Durante toda sua vida conservou vivo interesse pela geografia, ao qual sempre dedicou alguma atividade. Além de dar palestras sobre o assunto e publicar ensaios em revistas científicas e publicações não especializadas, redigir artigos sobre geografia para a Géographie Universelle de Reclus, para a Chambers Encyclopaedia e para a Encyclopaedia Britannica.

Os trabalhos de Kropotkin em zoologia são produtos da experiência direta. De 1862 até fins de 1866, quando deixou a Sibéria, aproveitou todas as oportunidades para interpretar os segredos da vida natural. Influenciado por A Origem das Espécies de Darwin (1859), como nos diz no primeiro parágrafo da presente obra, pesquisou ansiosamente em busca dessa “rude luta pelos meios de subsistência entre animais pertencentes à mesma espécie, considerada pela maioria dos darwinistas (embora nem sempre pelo próprio Darwin) como a característica fundamental da luta pela vida e o principal fator da evolução”.

Mas sua experiência direta, o que ele viu com seus próprios olhos, despertou em Kropotkin sérias dúvidas sobre a teoria darwiniana, dúvidas que não encontraram plena expressão a não ser quando surgiu ocasião para isto no famoso “Struggle for Existence Manifesto”. (“Manifesto da luta pela vida” de T. H. Huxley, intitulado “The Struggle For Existence: A Programme” (“A luta pela vida: um programa”).[1]

A vida na Sibéria produziu outra grande mudança nas ideias de Kropotkin. Compreendeu a “absoluta impossibilidade de fazer algo realmente útil para a massa do povo por meio da mecanismo administrativo”. E acrescenta em suas MEMÓRIAS: “Abandonei essa ilusão para todo o sempre... Na Sibéria perdi toda fé na disciplina estatal. Estava preparado para entrar no caminho do anarquismo.” Ele fez isto e, nesse caminho, continuou até o fim de seus dias.

A convivência com os siberianos que viviam à margens do Amur mostrou-lhe o importante papel desempenhado pelas massas anônimas em todos os eventos históricos, comprovação que o impressionou profundamente.

“Dos 19 aos 25 anos”, escreve, “tive de elaborar importantes planos de reforma, lidar com centenas de habitantes do Amur, preparar e realizar perigosas expedições com meios ridiculamente escassos, etc.; e se tudo isso terminou de modo mais ou menos feliz, deveu-se unicamente ao fato de que logo descobri que um trabalho sério é pouco útil para comandar e disciplinar. Em todas atividades, são necessários homens de iniciativa, mas uma vez dado o impulso, a empresa deve seguir em frente, especialmente na Rússia, não de maneira militar, porém por um tipo de acordo comum, através do entendimento mútuo. Seria bom que todos aqueles que baseiam seus planos na disciplina estatal, estudassem a escola da vida real, antes de criarem suas utopias estatais. Nesse caso, não se ouviria falar tanto, como agora, em planos para organizar a sociedade em uma pirâmide sobre base militar.”

Essa passagem nos dá a chave da filosofia anarquista de Kropotkin. Quando se diz anarquista, as pessoas imaginam um sujeito de pele pálida e grandes bigodes pretos esgueirando-se furtivamente, carregando uma granada ou uma bomba caseira em cada mão. É verdade que tais anarquistas militantes existiam, mas Kropotkin desaprovava-os totalmente e lamentava tal conduta. Em seu conceito, o anarquismo fazia parte da filosofia que deveria ser tratada da mesma maneira que as ciências naturais; era o meio de estabelecer a justiça (isto é, a igualdade e a reciprocidade) em todas as relações humanas e em todo o mundo. A melhor maneira de alcançar o domínio da justiça consistia em eliminar por completo o Estado e qualquer forma de governo, substituindo-os pela cooperação livre e espontânea entre indivíduos, grupos, regiões e nações.

Kropotkin repudiava toda forma de violência, embora, chegado o momento, tenha apoiado a causa dos aliados em sua guerra defensiva de 1914-1918, contra os alemães, uma posição que indignou muitos de seus companheiros anarquistas. Ele era um homem singularmente afável e encantador, que conquistou o respeito de quantos o conheciam e ainda é lembrado com carinho por aqueles que com ele trataram pessoalmente. Disse Bernard Shaw acerca dele: “Kropotkin era uma pessoa gentil a ponto da santidade; com sua grande barba avermelhada e expressão agradável, ele poderia muito bem ter sido um pastor da Montanha das Delícias”. Assim ele sintetizou a opinião geral sobre o grande anarquista.

Em 1874, Kropotkin fui detido e aprisionado na Fortaleza de São Pedro e São Paulo, durante dois anos, pelo crime de difundir propaganda revolucionária. Após uma fuga espetacular, ele fugiu disfarçado para a Suécia, de onde se transferiu para a Inglaterra, pais em que desembarcou em agosto de 1876. Lá, se estabeleceu como jornalista, depois de vencer certas dificuldades e logo conquistou amplo circulo de amigos.

Em 8 de outubro de 1878 casou-se com Sofia Ananiev, nascida em Kiev em 1856, de pais judeus. Aos 17 anos, indignada com as condições de vida dos homens que trabalhavam na mina de ouro de Tomsk, Sibéria, administrada por seu pai, Sofia recusou-se a viver com o dinheiro obtido com a exploração e deixou a casa de seu pai para ganhar a vida por si mesma. É fácil ver o vínculo de simpatia que uniu estes dois seres. Na época em que se casaram, Sofia estudava biologia em Berna, enquanto seu marido foi obrigado a permanecer em Genebra por motivo de trabalho. Durante um tempo eles levaram vida de “ciganos”, como ele mesmo dizia. A mútua devoção manteve-se inalterada pelo tempo em que viveram. Depois de 9 anos de casamento, nasceu sua primeira e única filha, a quem deram o nome de Alexandra, em memória do irmão de Kropotkin, falecido recentemente. Expulso da Suíça como sujeito perigoso, Kropotkin retornou a Londres, cidade onde Alexandra nasceu em abril de 1887.

Deixo de mencionar a prisão e o encarceramento de Kropotkin, na França em dezembro de 1882, sua posterior liberação e seus inúmeros obstáculos com os espiões e com a polícia de meia dúzia de governos de países europeus. Nas Prisões da Rússia e da França (1887), ele nos relata pormenorizadamente estes episódios. Nem exporei sua participação ativa na promoção do movimento anarquista. Só direi de passagem que ele organizou e participou de vários congressos, criou jornais e manteve prodigiosa correspondência internacional, durante o tempo em que trabalhava como jornalista freelance para sustentar sua família. Chegamos assim a 1888, ano que marca o começo do período de O APOIO MÚTUO.

Uma vez que na Introdução à obra, o próprio Kropotkin nos conta o que o levou a escrevê-la, será supérfluo historiar os fatos que o fizeram redigir os artigos depois reunidos em um livro. Aqui me limitarei a esboçar a história de O APOIO MÚTUO desde sua publicação, com uma avaliação da obra, em particular de acordo com os conhecimentos acumulados posteriormente.

Entre os fatos relacionados com a publicação de O APOIO MÚTUO, cabe destacar um muito notável: a série de artigos, que como tal apareceu originalmente em “The Nineteenth Century”, foi escrita com intenção de refutar o ponto de vista apresentado por T. H. Huxley, mas este jamais replicou publicamente, nem mostrou ter conhecimento da existência destes escritos, apesar de sem dúvida os tenha lido, pois era assíduo leitor da referida publicação. Os primeiros ensaios de Kropotkin sobre a ajuda mútua apareceram em 1890. Porém sete anos antes, em 1883, estando Kropotkin preso na França, seus amigos ingleses prepararam uma petição enfatizando a importância de suas contribuições científicas e solicitavam sua imediata libertação. Foram convidados homens de ciência e escritores a assinar a petição. Disseram que T. H. Huxley recusou a pôr seu nome, atitude que muitos tomaram como “grosseria” de sua parte. Quem assim pensa está equivocado. Nesse mesmo ano tinha sido nomeado Presidente da Sociedade Real e considerou que tal cargo lhe proibia certas coisas, conforme evidencia numa carta: “Enquanto eu for Presidente da Sociedade Real, me sentirei obrigado a não participar de movimentos públicos que os membros da sociedade possam desprovar”. Com relação ao silêncio de Huxley, pode-se supor que ele desejasse esperar até que Kropotkin terminasse de expor seus argumentos e reunisse seus ensaios em um volume, como era conhecido por ele. O último dos artigos apareceu em 1896 e o livro, em 1902... Sete anos depois da morte de Huxley.

Num artigo publicado pelo “The Nineteenth Century” em 1888, Kropotkin expressou juízos críticos referentes a certos conceitos de subsistência e de população expostos por Huxley em seu “Struggle for Existence Manifesto” (“Manifesto da luta pela vida”). Este último enviou ao editor James Knowles uma carta pessoal em que assinalava que Kropotkin não o havia compreendido bem, acrescentando: “Não obstante isto, considero seu artigo muito interessante e importante”. Quando Knowles o convidou a publicar uma réplica nas páginas da publicação, o biólogo respondeu-lhe que estava doente, confessando: “não me acho em estado mental ou nervoso para fazê-lo, e só a ideia de entrar em controvérsia me leva a preocupar”.

Huxley pode realmente ter admirado Kropotkin, como muitas outras pessoas, mas sua situação física já não lhe permitia empreender a difícil tarefa de discutir seus argumentos, como eles mereciam. De qualquer forma, mesmo que Huxley pretendesse refutar Kropotkin, no devido momento, a morte, que ocorreu a ele antes de terminar a exposição, impediu-o de executar seus planos. Acho necessário esclarecer esses fatos para fazer justiça à memória de um grande homem, apaixonado pela verdade, mesmo quando essa verdade mostrava que ele estava enganado.

Embora O APOIO MÚTUO tivesse sempre enorme quantidade de admiradores e tenha influído sobre o pensamento e a conduta de muitos, também é verdade que ele foi mal interpretado por quem conheceu o livro por segundos ou terceiros, ou o leram em sua juventude e guardaram confusa lembrança de seus conceitos.

É erro geral acreditar que Kropotkin se propôs a demonstrar que é a ajuda mútua, e não a seleção ou a competição natural, o principal ou único fator a atuar no processo evolutivo. Num livro de genética publicado recentemente por uma grande autoridade na matéria, lemos: “O reconhecimento da importância da cooperação e da ajuda mútua na adaptação não desmente de modo algum a teoria da seleção natural, segundo interpretaram Kropotkin e outros”.

Os leitores de O APOIO MÚTUO perceberão logo até que ponto é injusto este comentário. Kropotkin não considera que a ajuda mútua contradiz a teoria da seleção natural. Uma e outra vez chama a atenção para o fato de que existe competição na luta pela vida (uma expressão que ele critica acertadamente com motivos sem dúvida aceitáveis para a maior parte dos darwinistas modernos). Uma e outra vez destaca a importância da teoria da seleção natural, que aponta como a mais significativa do século XIX. O que acha inaceitável e contraditório é o extremismo representado por Huxley em seu ensaio “Struggle for Existence Manifesto”, e assim o demonstra ao qualificá-lo de “atroz” em sua MEMÓRIAS. Por justo que seja o juízo de Kropotkin, e por execrável, violento e danoso o artigo de Huxley possa ter sido,devemos reconhecer que ele o escreveu com profunda sinceridade e com o brilho habitual . além disso, se encaixava perfeitamente na filosofia do laisser-faire que dominava naqueles dias, ideologia que Kropotkin considerava repudiável por suas consequências tanto no campo da política quanto na teoria da evolução. Seus longos anos de análise do assunto decidiram sua resposta exaustiva a Huxley.

As únicas duas pessoas que apoiaram Kropotkin em sua aventura foram James Knowles, editor de “The Nineteenth Century”, e H. W. Bates, autor notável do livro extraordinário “The Naturalist on the Amazons” (1863) e secretário da Sociedade Geográfica Real.

Pela atitude dos outros, Kropotkin pôde verificar que a interpretação da “luta pela vida”, como um grito de guerra de “frio dos fracos!, elevado à categoria de mandamento da natureza revelado pela ciência, estava tão profundamente enraizado na Inglaterra que se tornou dogma quese religioso. Seria difícil para ele se fazer ouvir.

Hoje em dia O APOIO MÚTUO é a mais famosa das muitas obras escritas por Kropotkin. A rigor, é já um clássico. O ponto de vista está avançando, lenta mas firmemente, e seguramente se tornará parte das formas de agir da biologia evolucionária aceitas em breve.

Se analisarmos os dados apresentados por Kropotkin, bem como os argumentos baseados neles, e os considerarmos à luz do conhecimento científico reunido nos vários campos adotados pelo O APOIO MÚTUO, veremos que, em termos gerais, ele os confirmam. As obras de Allee e discípulos, Whieler, Emerson e outros em ecologia, os estudos de grande número de antropólogos (muitos para citar), sobre povos primitivos e analfabetos, e as descobertas de naturalistas empíricos, confirmaram cada um deles, de maneira categórica, as principais teses de Kropotkin.[2] O APOIO MÚTUO nunca perderá sua validade, como a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América. A ciência continuará contribuindo com novos conhecimentos, porém com certeza servirá apenas para confirmar a conclusão de Kropotkine. “O fator fundamental do progresso ético do homem tem sido a ajuda mútua, não a luta mútua. O fato de continuar sendo praticada em larga escala também é a melhor garantia de que a raça humana prosseguirá uma evolução cada vez maior.”

Desde o final do século XIX até o início da guerra de 1914, Kropotkin trabalhou intensamente em um número incrível de atividades, além de produzir sete livros. Quando ele se declarou a favor dos aliados, muitos de seus seguidores ficaram surpresos, sem saber o que pensar. No entanto, Kropotkin estava certo de que sua posição era justa. A Revolução Russa de 1917 pareceu-lhe justificar duplamente sua atitude. Assim que as condições permitiram os Kropotkin se despediram de seus amigos ingleses e partiram para a Rússia, onde chegaram em meados de 1917, sendo muito bem recebidos em todos os lugares. Quando Kerensky lhe ofereceu um posto no novo governo, Kropotkin se recusou a aceita-lo. Ele argumentou que a Rússia deveria continuar lutando contra a Alemanha e recomendou o estabelecimento de uma república moderada (para desgosto de seus amigos anarquistas), mas ninguém ouviu. Suas conversas com Lenin foram inúteis. Os últimos anos de Kropotkin foram tragicamente infelizes. Seu coração inocente não havia contado com os Lenin deste mundo. Vendo o que ele sonhara para o futuro da Rússia sendo destruído pelos bolcheviques, principalmente Lenin, escreveu-lhe para apontar os fatos criticáveis, o que sempre fazia se considerasse oportuno, como já o tinha avisado. No outono de 1920, Kropotkin se indignou quando os bolcheviques começaram a tomar reféns para se proteger de possíveis violências de seus adversários. Sem demora, ele escreveu a Lenin estas palavras veementes e proféticas:

 “Acabei de ler no Pravda desta data uma declaração oficial do Conselho dos Comissários do Povo, segundo a qual foi decidido tomar vários oficiais como reféns para proteger-se contra o exército de Wrangel. Não posso acreditar que não tenha ao seu lado alguma pessoa para dizer que tais decisões lembram os momentos mais sombrios da Idade Média, o período das Cruzadas. Vladimir Ilitch, suas ações distorcem completamente as ideias que você pretende aprovar.

Você não sabe o que é um refém em verdade? Não sabe que é um homem mantido prisioneiro, por não haver cometido um crime, mas simplemente porque ele serve a seus inimigos para extorquir seus companheiros? Um refém deve se sentir como um condenado à morte, cujos carrascos anunciam a cada meio-dia-o adiamento da execução para o dia seguinte. Se você aceita tais métodos, é de prever-se que um dia você use tortura, como se fazia na Idade Média.

Espero que ele não tenha argumentado que o poder é um dever profissional do político e que qualquer ataque ao poder deve ser considerado ameaça contra a qual é necessário defender-se a qualquer custo. Até os reis não continuam mantendo essa ideía. Os governantes de países onde a monarquia continua há muito tempo deixaram de lado os meios de defesa que agora surgem na Rússia com a tomada de reféns.

Como você, Vladimir Ilitch, você que quer ser apóstolo de novas verdades e arquiteto de novo Estado, consente com o uso desses meios repulsivos, de métodos tão inaceitáveis? Tomar essas medidas significa confessar publicamente que você adere às ideias do passado.

Mas, talvez, ao tomar esses reféns, não estará você meramente tratando salva der sua própria vida e não de sua obra?

Está tão cego, tão aprisionado em seu autoritarismo. Não consegue entender que, por ser o líder do comunismo europeu, não possui o direito de sujar suas ideias com métodos tão vergonhosos. Métodos que não são apenas provas de um erro monstruoso e também prova de um medo injustificável por sua própria vida?

Que futuro aguarda o comunismo se um de seus campeões mais importantes pisoteia todos os sentimentos honestos dessa maneira?”

Acho que todos sabemos a resposta.

Kropotkin estava desesperado. Ele tentou consolar-se iniciando um trabalho sobre ética que representava a continuação do O APOIO MUTUO[3]. Com sua morte ocorrida em 8 de fevereiro de 1921, a obra ficou inacabado. Como ele mesmo disse: “Quando uma pessoa é verdadeiramente boa, sua memória permanece eternamente viva. Esta memória é gravada na geração seguinte, que a transmite aos seus descendentes. Não é uma imortalidade que vale a pena obter? E Kropotkin obteve.

                                                               Ashley Montagu

                                                                    Princeton, N.J.

[1] Trabalho aparecido em The Nineteenth Century (Londres), v. 23, fevereiro de 1888, pp. 161-180. Em O APOIO MÚTUO, Kropotkin intitula-o equivocadamente “A luta pela vida com relação ao homem”. Se bem que este seja o tema do artigo, não é seu título correto.

[2] The Direction of Human Development de M.F.Ashley Montagu, Harperrx and Bros. New York, 1955, detalha os estudos que apoiam a teoria de Kropotkine.

[3] Piotr Kropotkin, Ethics: Origin and Development, Dial Press, New York, 1925.

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