quinta-feira, 9 de junho de 2022

MICHEL BERNARD, INTRODUÇÃO: SOBRE METODOLOGIA E TEORIA DO CONHECIMENTO

 

 TRATA-SE DE INTRODUÇÃO CONTIDA EM DISSERTAÇÃO DE MESTRADO DE MICHEL BERNARD, ORIENTADO POR LUCIEN GOLDMANN, COM BASE EM GEORGY LUKÁCS, NA ÉCOLE PRACTIQUE DES HAUTES ÉTUDES, PARIS.

 

MICHEL BERNARD, INTRODUÇÃO, in:

 INTRODUÇÃO A UMA SOCIOLOGIA DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS, tradução de Evaldo A Vieira.

 

 

Título original: Introduction à une Sociologie des Doctrines Économiques –Des Physiocrates à Stuart Mill.

Traduzido da edição MOUTON & CO, 1963, E ÉCOLE PRATIQUE DES HAUTES ÉTUDES, PARIS.


 INTRODUÇÃO

 Nas poucas páginas desta introdução, pretendemos indicar as reflexões que nortearam nossa pesquisa e delimitar o âmbito do nosso estudo. Teremos de realizar algumas análises metodológicas e definir alguns termos utilizados com mais frequência.

O título escolhido não nos satisfaz, mas qualquer outro título teria sido tão vago. Nosso principal objetivo é situar as doutrinas econômicas dentro do futuro histórico e confrontá-las com a realidade política, econômica e social dos tempos em que foram concebidas, assim como com as correntes filosóficas que estão passando por esses tempos. Isso nos levará a identificar o significado dessas doutrinas como expressão da realidade política, econômica e social de seu tempo e seu significado como expressão das aspirações humanas e dos valores morais. Se esta dupla abordagem arruína parte do prestígio científico destas doutrinas, talvez permita ao leitor compreender melhor a sua génese, com as intenções e objetivos de seus autores. É evidente que o título escolhido, embora abranja mais ou menos este assunto, tem acima de tudo um valor indicativo.

 

 O PROBLEMA DOS LIMITES DA OBJETIVIDADE CIENTÍFICA

 

Em um primeiro sentido, nosso estudo é uma reflexão sobre o problema dos limites da objetividade científica no campo das ciências humanas Vamos estabelecer alguns marcos sobre esse assunto. Acreditamos que não é possível estudar fatos nas ciências sociais e humanas como coisas de fora. Quer queiramos quer não, o teórico da Economia Política, por exemplo, faz parte de uma totalidade humana em construção, da qual descreve um aspecto.  Todo fato econômico é um fato humano e, portanto, carregado de intenções e significados históricos. Se o teórico pretende descrever esses fatos humanos como coisas de fora, do outro lado do espelho, se negligencia o fato das consciências, ele se expõe aos mal-entendidos mais cruéis, corre o risco de não entender nada sobre os comportamentos que descreve.

Afinal, ele próprio faz parte dessa totalidade humana em construção, toda carregada de intenções. O pesquisador não pode alcançar um conhecimento objetivo e completo dos fatos que ele está tentando explicar. Enfrenta certos limites. Sejamos claros, não é a objetividade em si que é posta em causa, nem a honestidade intelectual do pesquisador. Negar seria rejeitar qualquer ciência do homem, condenar-se a algum moralismo estéril ou a algum pragmatismo irracional. Se existe uma verdade objetiva em relação à qual tendemos, esta verdade não pode ser perfeitamente apreendida, assumida por ninguém. Como o investigador faz parte da totalidade humana, estudada por ele, prenoções, preconceitos, sentimentos, postulados o influenciam, aparecem como telas deturpadoras entre o investigador e a realidade objetiva. Não podemos ignorar esse condicionamento mental, essas categorias básicas que distorcem parcialmente o julgamento do pesquisador desde o início. Além disso, o mundo das ciências humanas é, por excelência, o mundo do complexo e do movimento, de cada autor, na formulação de suas hipóteses, na importância que ele atribui aos vários fatores nos quais está interessado, na escolha de perguntas que ele faz ou deixa de fazer, é influenciado por um viés, por uma mentalidade social preexistente.

Existe, por assim dizer, uma dupla verdade científica nas ciências humanas. Uma verdade científica objetiva em relação à qual tendemos e, em um nível inferior, uma verdade ao nível de nosso grupo social, de nossa época. Depois de colocadas as categorias implícitas, escolhidas as perguntas e as hipóteses iniciais, a pesquisa pode ser realizada com um espírito perfeitamente científico e, observando os fatos e as relações entre eles, pode-se chegar a resultados perfeitamente científicos e objetivos. Mas essa verdade científica permanece extremamente parcial, e qualquer síntese baseada na adição dessas verdades parciais dá uma visão distorcida da verdade global.

Este é o caso das principais doutrinas económicas que nos propomos estudar. Elas contêm um grande número de análises científicas perfeitamente válidas. Mas, como os pensadores pertencem a uma dada sociedade, a uma dada classe, a um dado meio, eles não foram capazes de descrever, sem dar uma interpretação distorcida da mesma, a realidade objetiva de seu tempo.

Mas esses limites do conhecimento objetivo não são limites rígidos. A atenção e a lucidez do investigador, se não lhe der a certeza de que será capaz de assumir plenamente a realidade objetiva, poderá permitir que ele escapasse das armadilhas mais grosseiras, para às vezes ir além do horizonte intelectual de sua classe, para reconhecer perspectivas que são as de outras classes. Sem dúvida, esta é uma hipótese extrema, um esforço prodigioso. Se for infantil negar o condicionamento social de uma doutrina econômica, seria igualmente absurdo pretender confinar a abordagem intelectual do pesquisador dentro de um determinismo mecanicista. Seria absurdo negar o papel libertador da consciência.

Acrescentemos para terminar este capítulo a seguinte observação: é impossível no campo das ciências humanas separar absolutamente as noções de verdade e eficiência. Mais uma vez, não queremos de forma alguma louvar o pragmatismo, mas como o mundo humano é o da consciência e da história, o próprio fato de uma doutrina ser expressa desperta alguma ressonância na consciência dos homens, e assim muda a situação objetiva que a doutrina procura analisar. Uma doutrina que não dá um relato objetivo dos fatos no início, pode tender a ser baseada nos fatos, quando se encontra com um grande eco nas consciências. Os homens projetam em atos as imagens do seu universo mental. Em contrapartida, uma análise conduzida com extrema lucidez por um pensador solitário pode expressar uma realidade objetiva com mais verdade do que outra doutrina. Se essa análise do pensador solitário encontra poucos ecos, se não está adaptada ao estado de espírito dos contemporâneos, permanece ineficaz e, portanto, é dominada pela realidade objetiva. Damos muitos exemplos disso no decorrer do nosso estudo.

 

VISÃO DE MUNDO E IDEOLOGIA

 

Como um ensaio sobre os limites da objetividade científica das doutrinas econômicas, nosso trabalho procura compreender e descrever as filosofias ou, melhor dizendo, as visões de mundo destas doutrinas. O termo "visão de mundo" tem a vantagem sobre o termo "filosofia" de ser mais concreto, mais maleável e capaz de maior extensão. Uma tradução francesa aproximada da expressão alemã "Weltanschauung", a visão de mundo é uma imagem global da natureza do homem, da comunidade e do devir e, se necessário, da divindade, uma imagem global das relações entre estas realidades.

Aos poucos veremos a riqueza metodológica deste termo.

Digamos desde o início que estamos cavando, e as várias pesquisas realizadas reforçaram nossa convicção de que, no centro de qualquer sistema, de qualquer doutrina econômica, social ou política, está uma visão do mundo. Esta visão de mundo pode ser implícita ou explícita. Em muitas doutrinas, na verdade, a visão do mundo não está claramente formulada e exposta, ela permanece na sombra. Mas há casos em que uma visão explícita do mundo, exposta completamente pelo teórico, parece estar em desacordo com o resto de seu sistema, parece ser contrariada por várias análises, de pretensões científicas, que ele faz em outros lugares. Através dessas análises, pode-se perceber uma forte visão de mundo implícita, diferente da visão de mundo explícita. Neste caso, é a visão de mundo implícita que o autor expressa mais profundamente. Isso não significa tirar nenhum valor da visão explícita do mundo. Ela desempenha o papel de uma tela. Serve para esconder as falhas do sistema apenas para o público quando o autor está ciente deste papel de tela. Mas acontece que o próprio autor é enganado, quando não está ciente das contradições internas do seu sistema. O conceito de visão de mundo está ligado ao conceito de ideologia. Nenhum conceito é mais ambíguo que este, para o qual Gurvitch [1] descobre pelo menos catorze significados diferentes ou complementares. Achamos perigoso tentar restringir o significado desse termo de forma abusiva desde o início. Que ideologias são a expressão conceitual dos valores em que um grupo de indivíduos acredita, que traduzem posições sociais ou políticas que defendem e procuram justificar, enquanto a ciência observa ou explica, e absolve uma classe social com apologética ou mistificação, não contestamos isso, e a consciência de tais mistificações pode guiar hipóteses de trabalho, levando a muitas descobertas. Mas nos recusamo-nos a admitir desde o início que ideologias são apenas isso. Como em qualquer doutrina econômica ou social, os elementos científicos propriamente ditos são misturados aos elementos de auto justificação, preferimos tomar o termo ideologia no seu sentido mais amplo. Por ideologia, entendemos qualquer sistema de conceitos que expresse, de forma racional, uma doutrina das ciências humanas. Esta definição não nos permite julgar a priori o valor.

Existe uma ligação lógica entre a visão de mundo e a ideologia, pois é sempre através de uma ideologia que uma visão de mundo é expressa. Uma visão de mundo é, de certa forma, o núcleo de uma ideologia ou, em outras palavras, a ideologia é o desenvolvimento de uma visão de mundo. A ideologia é, por definição, até consciente, enquanto a visão de mundo pode ser imagem implícita, obscura ou confusa na consciência. Mas, neste caso, a clareza ou a coerência da ideologia pode ser sentida.

Imagem mais ou menos implícita na consciência do sujeito, a visão do mundo, em um segundo sentido, também é a imagem ideal, a imagem arquetípica, que nunca é totalmente assumida, explicada, desenvolvida, nos conceitos de ideologia. É o que a ideologia tende a expressar sem jamais alcançá-la completamente. Esta imagem ideal só pode ser desenhada após o fato, referindo-se às mentalidades coletivas de um período, como aparecem nas obras dos pensadores daquele período. Assim, pode-se dar, por exemplo, após o fato, uma visão de mundo ideal do liberalismo econômico. É então um artifício, mas o essencial é tomá-lo como tal. As visões de mundo implícitas ou explícitas dos pensadores de uma época aparecem então como "aproximações" dessas visões de mundo ideais.

 

VISÃO MUNDIAL E CLASSE SOCIAL

 

 É no nível do conceito de visão de mundo que operam as conexões entre as correntes filosóficas de uma época e a doutrina econômica estudada. Mas ainda é este nível que é possível compreender as relações entre esta doutrina e a realidade política e social da época. Concordamos com Goldmann[2] e Georg Lukács que uma classe social ou, mais precisamente, um determinado grupo social corresponde a uma visão de mundo. Cada grupo social, assim que toma consciência de sua originalidade, autonomia, interesses e aspirações, tende a formar uma visão de mundo correspondente a suas aspirações e interesses. Qualquer teórico que pertença ou pretenda pertencer a este grupo, e defenda os interesses deste grupo, adota a visão de mundo deste grupo, ou trabalha para formular uma visão de mundo mais alinhada com seus interesses.

Admitir tal afirmação não é necessariamente adotar o ponto de vista marxista, desde que com Maquet[3] e, mais ainda, Gurvitch, sejam feitas as seguintes correções.

Em primeiro lugar, a relação estabelecida entre a classe social e a visão do mundo é assumida como válida apenas para a era moderna, no Ocidente, dentro de certas estruturas globais.

Em segundo lugar, admitir esta relação não significa recusar a priori a existência de outras relações declaradas por outras sociologias do conhecimento (por exemplo, as relações socioculturais de Sorokin. Com isso, queremos dizer que o determinismo da visão de mundo da classe social não é um determinismo mecanicista. Acreditamos numa verdadeira dialética de inter-ação entre a realidade humana e as doutrinas que a querem expressar.

Finalmente, se podemos legitimamente formular hipóteses que atribuem importância primordial ao fator do grupo social, não podemos reduzir a complexidade da realidade e, em particular, de um trabalho humano, de uma doutrina amadurecida durante um longo período de tempo, ao único determinismo do grupo social, nem dar a nossas hipóteses de correlação o valor das leis científicas do mundo físico. Só podemos dar seu valor explicativo e reconhecer que eles representam aproximadamente a maioria dos fatos.

 Vamos resumir nossa abordagem metodológica:

 1) existem limites à objetividade científica no campo das ciências humanas;

2) O teórico é influenciado pela mentalidade coletiva, preconceitos e paixões de seu grupo social;

3) inerente a sua doutrina, sua visão de mundo implícita ou explícita pode ser compreendida por essa doutrina;

4) sua visão do mundo é, na grande maioria dos casos, aproximadamente, a visão de mundo do grupo social de seu interesse.

 

O conceito de visão de mundo parece-nos, em última análise, singularmente rico e fecundo de um ponto de vista metodológico, pois só em seu nível as diversas ligações entre os múltiplos aspectos da totalidade humana operam. Somente em seu nível, é possível identificar os múltiplos significados das doutrinas consideradas. As visões do mundo são, por assim dizer, as nebulosas do pensamento.

 

ESQUEMAS DE INTERPRETAÇÃO

 

 Essa apresentação necessariamente resumida e sem dúvida enfadonha, pareceu-nos necessária para entender nosso propósito e os processos pelos quais queremos alcançá-lo.

Para cada uma das doutrinas econômicas estudadas, teremos de descrever a visão de mundo que lhe é inerente.

Com isto, será possível desenhar esquemas de interpretação, criar redes significativas.

Por um lado, trata-se de confrontar a visão de mundo descrita com a realidade social e política da época, de marcar as correspondências e discordâncias entre essas visões de mundo e essas realidades, e de explicá-las.

Isso nos leva a considerar a situação do autor estudado, a situação do grupo social ao qual ele pertence. Até que ponto o autor expressa os interesses deste grupo? Até que ponto ele continua prisioneiro de seus preconceitos e paixões? Em sua luta pela objetividade científica, ele consegue ir além do horizonte, da mentalidade desse grupo ou não? Qual é o papel e o valor da ascese intelectual, da tomada de consciência?

Para realizar esta pesquisa na perspectiva indicada, teremos de desmontar os mecanismos da ideologia econômica e social do autor, para mostrar até que ponto ela expressa, reflete ou amplia a visão de mundo. E mais: até que ponto ela pode contradizer a visão de mundo explícita e prever uma visão de mundo implícita muito diferente do mundo.

Para desmontar os mecanismos da ideologia ainda é necessário estudar as máscaras, artifícios e processos pelos quais o autor de uma doutrina, consciente ou inconscientemente, tenta conciliar a verdade científica com os interesses de um grupo social. Busca-se descrever as ilusões e armadilhas dos métodos que são, ou afirmam ser, científicos.

É dentro desse conjunto de análises que localizaremos as principais correntes filosóficas que permeiam as doutrinas econômicas estudadas. É um projeto instrutivo, mas em última análise superficial, o de examinar os sistemas como puros palácios de ideias, calculando a dosagem de racionalismo, naturalismo, idealismo da doutrina, independentemente do estudo do condicionamento objetivo. É alcançar uma satisfação de pura retórica. As influências filosóficas só nos interessam se conseguirmos explicar o porquê delas. As teorias filosóficas como doutrinas econômicas dependem pelo menos parcialmente da realidade política e social de uma época.

 

Uma análise dessa realidade esclarece o mecanismo das influências filosóficas que uma doutrina econômica sofre. Assim, a visão de mundo da doutrina considerada expressa tanto certos aspectos das teorias filosóficas preexistentes como certos aspectos da uma realidade política e social que também preexiste. Longe de se contradizerem, as duas expressões complementam-se e estendem-se uma à outra.

 

SIGNIFICADO MORAL DAS DOUTRINAS ECONÔMICAS

 

Se, pelos confrontos que permite, o estudo das visões do mundo nos leva a estabelecer o significado político e social das doutrinas estudadas, num determinado momento nos leva simultaneamente a extrair seu significado moral ou humano.

Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, estamos claramente separados de qualquer metodologia de físico ou cientista. E também nos distanciamos de um marxismo vulgar e mecanicista, que pretenderia reduzir toda doutrina, no campo das ciências humanas, ao seu único significado objetivo. Através de situações históricas, quaisquer que sejam os seus determinismos mais ou menos restritivos, as doutrinas testemunham aspirações humanas que excedem ou transcendem os interesses de uma dada sociedade numa determinada época.

Qualquer visão do mundo implica mais ou menos claramente certas atitudes, certos padrões morais, um certo julgamento sobre o bem e o mal, sobre os direitos e deveres dos homens, sobre os valores morais que se trata de incorporar ou, ao contrário, de inverter. Qualquer visão de mundo implica, em última análise, uma certa opção, uma certa aposta no homem, referindo-se a um ideal humano, a uma utopia.

Neste sentido, há por vezes uma contradição entre a aparência da visão de mundo e a concepção do homem nela implícita. Tal doutrina, que se apresenta como humanismo, que afirma querer alcançar a felicidade de todos os homens, é na verdade baseada no profundo desprezo ao homem concreto, preso na sua vida quotidiana, ou admite implicitamente que a humanidade está dividida em duas frações, cada uma dotada de uma moral diferente. É muitas vezes através do estudo desse significado moral que é possível mostrar as falhas de uma visão de mundo aparentemente harmoniosa. Em última análise, a ambiguidade de uma doutrina econômica ou social reside no fato de que ela atende a três requisitos abertamente contraditórios. Deve tender para a objetividade e esse requisito científico pareceu por muito tempo ser o único que conservava o teórico, mesmo quando obedeceu parcial e obscuramente aos outros requisitos.

Deve ser adaptado à situação histórica. No domínio das ciências humanas, uma doutrina é um guia para a ação. Não se trata de contemplar as leis de um mundo, que de qualquer forma está em processo de se tornar, mas de influenciar a direção desse tornar-se. Uma doutrina só se torna eficaz e, portanto, só mantém validade, se estiver enraizada nas consciências. Por fim, toda doutrina, por ter como objetivo a ação, por ser um projeto de homens, obedece a um requisito moral, refere-se a um certo ideal humano. A harmonização dos três requisitos é característica das grandes doutrinas, neste campo das ciências humanas, daquelas que contribuíram para o desenvolvimento do conhecimento objetivo, influenciaram seu tempo e cujas utopias mantiveram algum poder radiante. Por outro lado, o choque dos três requisitos resulta sempre em algum tipo de bloqueio ou falha. Vamos dar muitas ilustrações disso.

 

O PLANO DA PESQUISA

 

O nosso trabalho é apresentado como uma série de estudos de autores relativamente destacáveis uns dos outros. Estes estudos começam com os Fisiocratas e terminam em Stuart Mill e Bastiat, ou seja, por volta de 1848-1850, datas de publicação de suas grandes obras. Não estudamos todos os autores de Economia do período considerado, é evidente, mas apenas aqueles que nos pareciam os mais importantes, cerca de dez no total. Foi necessário fazer uma escolha, e qualquer escolha é discutível. Mantivemos o que normalmente se encontra nas histórias das doutrinas econômicas. Com certeza, o estudo de Nassau Senior ou Charles Comte, por exemplo, seria tão sugestivo quanto o de Ricardo ou Jean-Baptiste Say sob certo ponto de vista. Correto ou não, pareceu-nos preferível situar nas nossas perspectivas de pesquisa os líderes, antes de nos preocuparmos com os seguidores. Como as doutrinas de Ricardo ou Say são geralmente mais conhecidas pelo homem honesto do que as de Senior ou Charles Comte, será mais fácil para o leitor acompanhar-nos em nossos desenvolvimentos, criticar-nos na ocasião.

Podemos, com razão, ser criticados por nos limitarmos a estudos de autores, e certamente teria sido enriquecedor realizar estudo geral do liberalismo como uma visão de mundo e expressão de uma realidade social. Mas este empreendimento nos parecia ambicioso demais no momento. Teríamos feito julgamentos insuficientemente diversificados ou sintetizados. O liberalismo inglês de 1780 difere do liberalismo inglês de 1815, assim como este últino difere do liberalismo francês da mesma data. Nossas análises das doutrinas de Smith, Ricardo e Say ilustram esta afirmação. Cada um deles encarna um momento de liberalismo. Mas o estudo global do liberalismo, nas perspectivas que indicamos, ainda está por fazer. No máximo, reunimos alguns elementos que uma síntese futura será capaz de conter. Se, por outro lado, tentamos um estudo global dos fisiocratas ou socialistas utópicos, percebemos as insuficiências das análises a seu respeito, análises que têm especialmente um valor indicativo.

Ainda, os estudos dedicados aos autores não são exaustivos. Baseamo-nos principalmente em suas grandes obras, nos grandes textos, lidos e relidos com espírito de simpatia e adesão à abordagem do autor, assim como com espírito de lucidez crítica. Nosso objetivo não é tanto fazer descobertas, mas lançar nova luz.

Poderíamos finalmente pensar em limitar o assunto no espaço e no tempo. Também poderíamos restringir o uso do método de pesquisa ao estudo de um único autor, um Ricardo, um Jean-Baptiste Say ou um Sismondi, por exemplo, pois eles nos parecem autores centrais no início do século XIX. Porém o que nossa pesquisa teria ganho em precisão, teria perdido em poder sugestivo.

 

REFERÊNCIAS PESSOAIS E DESCULPAS PREVENTIVAS

 

 Nosso trabalho desafia a objetividade científica das doutrinas econômicas estudadas. É óbvio que nós mesmos nos referimos a certas opções filosóficas e a um certo ideal político e social. Qualquer que seja o nosso esforço de objetividade, as referências certamente guiaram a pesquisa. Melhor que o leitor seja avisado. A coisa mais honesta é indicá-los claramente. Portanto, digamos que, filosoficamente, estamos nos referindo ao personalismo cristão de Emmanuel Mounier e que, politicamente, estamos nos referindo ao ideal de um socialismo democrático que, ao mesmo tempo, são lições de Marx e Proudhon. Os juízos de valor que seremos levados a fazer no decorrer do trabalho esclarecerão essas indicações.

Pedimos desculpas pela aridez dos desenvolvimentos metodológicos. Há o risco de que possam dar origem a mal-entendidos e confusões devido à maneira de exprimir. Contudo, esta introdução mesmo demasiado longa, não nos permitiu formular tudo o que tínhamos em mente. Só os comentários fornecidos pelo estudo dos autores poderão esclarecer alguns pontos. Além disso, acreditamos que esse esforço de sistematização, com suas insuficiências, que nos serviu no início, pode revelar alguma fecundidade em longo prazo, abrindo alguns horizontes para outros pesquisadores.

Esses são sistemas em funcionamento que queríamos surpreender, não sistemas fixos. Aqui termina nossa ambição. Depois disso, parece-nos que o projeto pecou por excesso de ambição. Da grande quantidade de documentação, fizemos escolha necessariamente muito limitada.[4] Algumas de nossas conclusões parecerão insuficientemente fundamentadas e pelo menos questionáveis. Por outro lado, algumas das análises podem ser julgadas insuficientes. No entanto, a falta de dados suficientemente confiáveis, em muitos casos, obrigou-nos a uma prudência talvez lamentável. Poderemos ser criticados por timidez ou exagero nos julgamentos.

No final, apresentamos visão geral muito incompleta e muito desigual. Pelo menos esperamos que ela mereça provocar discussão. Isso significa que aceitamos com gratidão a crítica construtiva. Aplicando e adaptando alguns dos métodos que a Sociologia do Conhecimento já aplicou em outros lugares, tentamos abordar as doutrinas econômicas de maneira incomum. Ao fazê-lo, quaisquer que sejam as nossas deficiências pessoais, esperamos ter preparado as bases para futuras pesquisas. Mais do que o estudo exaustivo dos autores fixados, nosso trabalho é apresentado como uma introdução a este estudo. Outros podem retomar nossa investigação, autor após autor, tendo em conta nossos procedimentos metodológicos, como as perguntas que fizemos e as respostas (provisórias) que lhes demos.

 

 



[1] George Gurvitch, Déterminismes Sociaux et Liberté Humaine. P.U.F., 1955.

[2] Lucien Goldmann, Sciences Humaines et Philosophie. P.U.F., 1952; La Communauté Humaine et l´Univers chez Kant. P.U.F., 1948.

[3] Maquet, Méthode Scientifique et Science Economique, T.I et II. Librairie Médicis, 1952.

[4] No final do livro, damos referências das principais obras metodológicos em que se baseia a nossa pesquisa e dos quais indicamos alguns temas nessa introdução.

Por razões de conveniência, a fim de não alongar demais este trabalho e dar mais profundidade às nossas propostas originais, muitas vezes nos limitamos a resumir brevemente essa ou aquela teoria econômica que será encontrada em outros lugares longamente. Também, se nos esforçarmos a escrever uma obra acessível ao público cultivado, pouco familiarizado com as doutrinas econômicas, é óbvio que deveria ser mais útil tanto para especialistas como para todos aqueles que já se dedicaram a uma ou outra destas Histórias de Doutrinas Económicas, bem conhecidas dos estudantes.

 

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