quinta-feira, 3 de abril de 2014

A eleição dos “homens bons”?


José de Alencar, o escritor brasileiro do século XIX, escreveu o romance “O tronco do ipê”, contando que o Barão da Espera, grande fazendeiro de café no Vale do Paraíba, exercia a posição de chefe político local, embora não ocupasse cargo nenhum. O Barão favorecia nas urnas seu amigo Conselheiro, a quem estava unido por laços de amizade e de compadrio, porque o Conselheiro era padrinho de sua filha. Em épocas de eleição, seus compadres e seus parentes votavam nos candidatos indicados pelo Barão, que por sua vez indicava os candidatos determinados pelo Conselheiro, seu amigo.
Não era a lógica das ideias, da religião ou da ética, e sim a lógica dos interesses dos grandes proprietários, o que de fato possuía valor. Ainda no romance “O tronco do ipê”, de Alencar, o Barão da Espera tinha um afilhado, destinado por ele a ser seu genro. Mandou-o à Europa para estudar, tornou-o “doutor” e não tardou a ser escolhido pelo Conselheiro como candidato à cadeira de deputado. Casado e deputado à Assembléia Geral, o genro foi viver na Corte, para exercer o cargo e não regressou mais. O Barão da Espera cuidava das propriedades, das lavouras e dos votos do eleitorado do genro, à medida que este representasse seus interesses. As flores do “genrismo”, do “compadrio”, “afilhadismo” mostravam o “homem bom”.
“Homens bons” eram como se chamavam os mandões locais no Brasil tradicional, ao longo da Colônia portuguesa e do Império brasileiro. Neste período, não existia prefeito nem presidente da Câmara, só existiam os “homens bons”. Eles representaram a origem do poder político e a primeira escola de políticos no país, gerando o que teima em funcionar (de modo diferente) até nossos dias: o “mandonismo local”. Convocavam-se todos os “homens bons” para elegerem os funcionários, deslocando para o Brasil a instituição portuguesa da Câmara Municipal, de acordo com as Ordenações Manuelinas.
Naquela época, o “homem bom” consistia no homem da família e do seu grupo familiar, como se diz “chefe de família”, transformado então em verdadeiro chefe de bandos armados, formados de escravos, agregados, afilhados, filhos, genros e mercenários. Eles compareciam às Câmaras Municipais para eleger seus representantes: no início, dois juízes ordinários e três vereadores, que iriam cuidar dos negócios públicos do lugar, por um tempo. A vontade do chefe local (o mandão) é que valia e não as idéias políticas.
Depois, quando a administração brasileira passou a exigir, com a finalidade de ocupar cargos em todo o território, o “mandonismo local” resistiu sob manto sempre elástico do diploma de bacharel em direito. Manto elástico porque ao bacharel em direito se seguiram o padre, o médico, o engenheiro, o farmacêutico, agrimensor, etc., principalmente o etc..
Em conversas amenas e bem intencionadas, em lugares de descanso e relaxamento, digamos com os amigos, perguntam-se às vezes por que o Brasil é tão diferente dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e dos países de tradição anglo-saxã. Melhor dizendo, para não ir longe: por que o Brasil e os países de tradição anglo-saxã são tão diferentes, por exemplo, na prática política e no funcionamento do judiciário.
Um dos motivos dessa diferença é que, nos países anglo-saxões, as localidades produziram do princípio da colonização em diante o direito local ( o “common law”, o direito costumeiro ou dos costumes), ao passo que no Brasil não há direito local, há direito do(s) mandão(ões) local (is). Uma das conseqüências fica por conta de não haver justiça local e sim práticas políticas temerárias e julgamentos demorados, de dez, quinze ou mais anos, chegando, muitas vezes, até os juízes, promotores e advogados dos casos falecerem.
Com a proclamação da República, a única igualdade estabelecida no país,  sempre aos poucos, foi o direito de votar e de ser eleito, menos o analfabeto. Assim mesmo lavrava e lavra a discussão dificílima de saber qual analfabeto: o quase analfabeto, o analfabeto essencial, o analfabeto de alma, o analfabeto funcional. Publicam-se livros e livros sobre analfabetismo. Ouvem-se os tecnoburocratas da educação, conhecidos às vezes como especialistas, que não se cansam de dar cursos e conferências. Como eu dizia a ele: pobre, Paulo Freire!
Desejo de servir à sociedade, espírito público, solidariedade social? São raríssimos como os diamantes negros, meros privatismos, meros interesses particulares, sobretudo num Brasil onde quase todos os empresários vivem de dinheiro público desde o início da industrialização no século XIX, havendo poucos empresários com capital próprio, cuja acumulação nasceu do trabalho deles. Se o possuem, não o utilizam, preferindo o dinheiro público, por isso muitos empresários adotam a especialidade de percorrer os corredores dos prédios municipais, estaduais ou federais. Um capitalismo sem risco!
Com o crescimento populacional, a custosa industrialização e a globalização econômica e cultural, a sociedade brasileira mudou um bocado. A desindustrialização, a massificação cultural, a alta natalidade da população pobre ou miserável, aumentaram as necessidades de emprego, saúde, educação e assistência social. Saúde e educação invariavelmente são as palavras de ordem, apesar de seculares: quando não se sabe o que fazer, basta dizer que vai lutar pela saúde, pela educação e pela habitação (às vezes pela natureza). No entanto, tudo ficou como antes, não se pode afirmar que ocorreu mudança de estrutura, porque, a cada melhoria num setor, aconteceram inúmeras pioras em outros setores. O emprego e assistência em geral (é suficiente olhar as rodoviárias e os prontos-socorros ou prontos-atendimentos) constituem as principais moedas eleitorais, dentre outras, nas campanhas. Dominam largamente o empreguismo e o assistencialismo. Como reclamava há muito tempo uma aluna, esposa de deputado federal: “Ele (o deputado) reclama de fazer serviço de despachante e não de deputado, mas paciência!
 Porém os antiquados mandões locais sumiram em alguns Estados, surgiram os dirigentes partidários, novos mandões locais. No caso dos partidos políticos, altamente burocratizados, mandões querem dizer direção partidária. Inexistindo na prática programa partidário a ser obedecido e existindo mesmo em algumas circunstâncias os partidos fantasmas, dentro de sua hierarquia os variados líderes realizam a gestão política e econômica, financeira, etc., etc.
Habitualmente a indicação de candidatos às eleições representa uma das tarefas da alta burocracia dos partidos políticos, que se orienta, aqui e lá fora, pela “lei de ferro da burocracia partidária”, ou seja: “quem está em cima não desce e quem está embaixo não sobe”. Tal qual na burocracia de outras atividades, no aparelho burocrático dos partidos políticos, aquele que atinge algum poder diretivo é sempre candidato a algum posto, se desejar, ou pode consagrar outro candidato qualquer, usurpando as vontades e os interesses da população. A maioria dos candidatos, como um antigo reitor de grande universidade, fala unicamente o que os ouvintes querem ouvir, conforme observa as vontades e as carências deles: segurança, educação, saúde, habitação, maternal, empregos, desempregos, mais indústrias, e daí para frente.
Entre os brasileiros, a participação política foi e é por demais reduzida. A indicação de candidatos pela hierarquia dos partidos, reais ou fantasmas, é mesmo muito mansa, com programa de eleição ou não, a exemplo do ‘confisco de boi no pasto”, no repetido cansativamente pelo candidato vitorioso a governador no passado. Há pouca preocupação com a vontade popular e seus interesses. Há muita preocupação com os interesses dos dirigentes partidários e dos eleitos. O ex-presidente Jânio Quadros, numa formidável confissão, disse certa vez que se elegia de uma forma e governava de outra.
A generosa confissão de Jânio preceitua que as pessoas mais valem pelo que fazem e menos pelo que dizem. É evidente que os brasileiros viverão melhor e mais felizes, aliás um direito fundamental, se votarem em quem na prática dos anos demonstrou de maneira clara e indiscutível ter posições políticas definidas, com espírito público, desejo de mudar essencialmente as condições de vida da maioria da população, repelindo comportamentos antiéticos e ilegais perante a lei.
O espírito da República significa votar em candidato que não seja escravo de suas ambições. Como se vê com facilidade, o eleitor que vota mal corre o sério risco de ser punido pelo seu candidato eleito. O caminho deve ser por aí, até que se estabeleça no Brasil o mandato revogável para o legislativo, ou coisa parecida, afinal o legislativo é o sustentáculo da República.

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