sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

A "NOVA REPÚBLICA" E OS BRASILEIROS 2015, 2017

Quem pode ser sereno em um país onde
 ambos os governantes e governados são sem princípio?

Henry David Thoreau




1.



Desde o início em 1985, a "Nova República não modificou nada do aparelho de Estado criado pela ditadura militar, exceto as leis, constitucional e ordinária. Porém as leis não criaram a realidade, e sim a realidade é que criou as leis(em seu componente material e formal), incorporando nelas os conflitos e as contradições da sociedade.

Tal sociedade mal compreendeu essa "democracia", pois perduraram os maus-tratos às crianças, aos adolescentes, aos presos comuns, às mulheres e aos desprotegidos de rua. A educação e a saúde, incertas e inconsistentes, carregaram míríade de planos e de reformas custosos. Os graves crimes de desfalque nos fundos da educação, da saúde, da habitação, da previdência social, dos programas de alimentação particularmente infantil e das obras públicas fundamentais à sobrevivência do país, são julgados de modo extremamente moroso e sem agravantes dos prejuízos sociais, gozando de favores do rito jurídico. A desigualdade e a discriminação sociais de cor, sexo, idade, etnia, religião, riqueza, educação, cultura, política etc. persistem.

A conciliação gestada em 1984 e vitoriosa em 1985, com a eleição de Tancredo Neves, por via indireta, foi tramada com os militares. A conciliação, entretanto, acabou encenada pelo PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) e pelo PFL (Partido da Frente Liberal), unidos na Aliança Liberal. A encenação recebeu, em grande parte, o beneplácito dos políticos, dos capitalistas nacionais e estrangeiros, da imprensa escrita, falada e televisionada, com o aplauso afetuoso de muitos da população brasileira (que não tem gostado de verter o próprio sangue, só se importando em verter o sangue alheio).

A conciliação entre os dantes perseguidores e os perseguidos, entre os tiranos e os tiranizados, realizou-se com pompa e circunstância. A morte de Tancredo Neves, a pouco tempo da posse na Presidência da República, foi conduzida com emoção pelo vice-presidente (em seguida, presidente da República) José Sarney. O novo presidente José Sarney se tinha distinguido como oligarca maranhense, apoiador do golpe militar de 1964, governador indicado (interventor) pelos golpistas, senador e presidente do PDS (Partido Democrático Social), base política da ditadura. 

A posse de José Sarney na Presidência da República (Tancredo Neves não sobreviveu para fazer o que prometeu) iniciou na prática a "Nova República". Sarney e os governos posteriores limitaram-se quase tão somente a soluções formais dos conflitos e das contradições de uma sociedade de classes, desigual e injusta, como a brasileira. 

Se o aparelho de Estado sofreu alguma alteração, foi alteração miúda decorrente de circunstâncias de momento. 

O aparelho de Estado da ditadura militar subsistiu com escassa mudança, todavia mais modernizado, preservando o caráter de estamento burocrático petrificado, excessivamente autônomo ante a sociedade e, às vezes, impositivo. Em certas reivindicações, esses estamentos burocráticos do Estado têm produzido crises corporativas dentro do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, desconsiderando a vontade popular.

Os aparelhos ideológicos na educação, nos jornais e revistas, nas rádios e redes de televisão, na propaganda e enfim na cultura massificada, compunham não raro cartéis políticos e empresariais e sobreviveram na "Nova República", com opiniões semelhantes, em outras linguagens e em outros modos. 

O príncipe de Lampedusa, no romance O leopardo, reproduziu aproximadamente a sensação de quem vive no Brasil da "Nova República":


"Se queremos que tudo fique como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?

2.


As reformas constituem costume político, mais ou menos presente no Brasil depois de 1830 durante o Império, convertendo-se em tema obrigatório na República, em especial depois da década de 1920. Aconteceram Reforma Constitucional em 1926, Constituições em 1934, em 1937 (outorgada), em 1946, em 1967, em 1969 (outorgada pelo Ato Institucional n. 5) e em 1988.

Uma classe cada vez mais subordinada, a classe dirigente no Brasil tem oscilado entre a inércia e a modernização imposta de fora, entre a promulgação de Constituição e a imediata proclamação de sua reforma. Dessa maneira, cada novíssima Constituição sempre surge atrasada, porque a classe dirigente exige outras regras diferentes daquelas que lhe eram aceitáveis  ou favoráveis até recentemente, justificando-se com a necessidade de manter a estabilidade ou o crescimento do país.

Nunca no Brasil a política social foi tão acolhida como ocorreu na Constituição de 1988. Seus artigos 6o., 7o., 8o., 9o., 10o. e 11 aludem à Educação (pré-escolar, fundamental, nacional, ambiental etc.), Saúde, Assistência, Previdência Social, Trabalho, Lazer, Maternidade, Infância, Segurança. A Constituição Federal de 1988 define direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, de associação profissional ou sindical, de greve, de participação dos trabalhadores e empregadores em colegiados dos órgãos públicos, da atuação de representante dos trabalhadores no entendimento direto com empregadores. Seu Capítulo II, Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), descreve os direitos sociais.

Porém, não foram muitos os direitos sociais postos em prática ou ao menos regulamentados, quando exigem regulamentação. Relativamente a eles, o mais grave é que em poucos momentos da República brasileira os direitos sociais sofreram tão clara e sistematicamente ataques da classe dirigente do Estado e dos donos do capital como depois de 1995, com o governo de Fernando Henrique Cardoso. 

Tais ataques aos direitos sociais, a pretexto de algo que se pode pôr o nome de "neoliberalismo tardio", de "modernização" etc., se basearam em frágeis esquemas sobre o desenvolvimento do capitalismo. Estes esquemas dividiam o capitalismo e seu componentes, tipificando-o em capitalismo liberal (racionalidade, modernidade, Estado mínimo, Estado protetor), capitalismo organizado (racionalismo, modernismo, Estado-providência) e capitalismo desorganizado (racionalização, modernização, desregulação, convencionalidade e flexibilidade etc.).

Os esquemas do capitalismo expõem seus traços organizativos e não o seu elemento fundamental, que é o processo de acumulação do excedente de capital. Esses esquemas desprezam a história e ignoram que o capitalismo está em nova fase de acumulação, derivada da revolução tecnológica e de outro tipo de industrialização, dos anos 1970 em diante. 

Esta revolução tecnológica tem causado implacável crise estrutural no capitalismo, de caráter  fortemente depressivo, com elevada monetarização  (moedas, câmbio, títulos etc.) do capital e seu mais flagrante resultado: o aumento do desemprego. Muitos desses esquemas do capitalismo em vigor se restringem a ideologias pretensamente legitimadoras da baixa taxa global de acumulação do capital, manifestada no fim dos anos 1960 e princípio dos anos 1970.

Nos últimos anos da década de 1980, ao longo da década de 1990 e no começo da década de 2000, na política social e na política econômica debateu-se a falsa contraposição entre neoliberalismo e social-democracia, fazendo a diferença entre política social neoliberal e política social de cunho social-democrata. Não deixa de ser excêntrico ter dado o nome de política social neoliberal a aquela política que negava os direitos sociais, garantia o mínimo de sobrevivência aos indigentes, exigia contrapartida para gozo de benefícios e vinculava o padrão de vida ao mercado, transformando-o em mercadoria. 

O financiamento de políticas sociais virou desde a parte final da década de 1970 um tema de máxima glória e importância, devido à crise fiscal do Estado, às baixas taxas de crescimento da economia mundial e à comuníssima estagnação com inflação ("estagflação"). Naturalmente, as políticas sociais devem sempre passar por avaliação, em qualquer lugar e época, por constituir exigência obrigatória quando custeadas com recursos das sociedades. No Brasil, dos fins da década de 1980 em diante, a febre avaliatória ganhou dimensão de epidemia, e os avaliadores transfiguraram-se em demiurgos, com a justificativa de preservar o bem e o patrimônio públicos, como se antes tal obrigação não existisse, nem se colocasse como irrevogável. 

As consequências políticas da supressão dos direitos sociais foram ao menos catastróficas. Tornou-se convicção mais ou menos extensa que as leis da economia seriam naturais e independentes das sociedades, sobrepunham-se a elas, concretizando-se teologicamente nos mercados e nos grupos deles originados. 

Como efeitos da "teologia do mercado", arruinaram-se as classes sociais e os movimentos sociais, as teorias e as reflexões, transformados em "coisas" de todo desnecessárias. O capitalismo financeiro submeteu o processo produtivo, realizando mais lucro com a especulação do que com a produção. Os intitulados "ajustes estruturais" e/ou a "livre circulação dos capitais" debilitaram a produção em geral, sujeitando-a às aventuras do capitalismo financeiro e à "americanização" da cultura.

Eric Hobsbawm colocou o Brasil na posição de "candidato a campeão mundial de desigualdade econômica", de "monumento de injustiça social" e de "monumento à negligência social", por razões conhecidas. A política econômica brasileira foi e é exemplar: mesmo em ocasiões de negação explícita de sua presença na economia, o Estado funcionou e funciona como salvaguarda e como propulsor do capital e dos capitalistas. Em condições de desemprego em massa, de privações ilimitadas, a intervenção estatal desviou-se e desvia-se da concretização dos direitos sociais contidos na Constituição Federal de 1988. 



3.


O governo trabalhista de Tony Blair, de 1997 a 2007 na Inglaterra, difundiu o que chamava "terceira via" (nem direita, nem esquerda), como se fosse novidade, inovação digna dos últimos anos do século XX e dos primeiros anos do século XXI.  Efetivamente, a "terceira via" resumiu-se à reunião de princípios liberais e conservadores, desligada da tradição social-democrata, a que se dizia pertencer. A "terceira via" foi e é expressão da penosa acumulação do capital, em meio à devastadora competição capitalista internacional, da qual são exemplos a crise principiada na década de 1970 e a recente crise de 2008 em diante. 

Constantemente recolonizado pelos países capitalistas centrais, tanto na política e na economia quanto na cultura, o Brasil não deixou e não deixa de ter seus partidários da "terceira via".

O economista inglês John Williamson, que trabalhou no Instituto de Economia Internacional, em Washington, foi considerado por certa gente o "pai do Consenso de Washington", no final da década de 1980. Tal "Consenso" deles consistiu num conjunto de reformas liberalizantes proposto como fórmula de desenvolvimento para os países "emergentes", especialmente da América Latina, a qual aqui virou símbolo da visão neoliberal na economia. 

Em 1996, quando John Williamson tratou do tal "Consenso de Washington", o famoso conjunto de medidas de ajustamento e estabilização das economias dependentes, julgados recomendáveis pelos principais agentes políticos do capital internacional, inclusive Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional (FMI), Williamson se distinguiu mais por aquilo que negou e menos por aquilo que afirmou. Consoante noticiário da Folha de S. Paulo, ele negou então:

Williamson nega que tenha proposto "grandes mudanças" no receituário do Consenso de Washington em sua conferência. Mas admite ter "adicionado alguns passos" e "esclarecido alguns pontos" em relação ao Consenso. As alterações basicamente introduzem a necessidade de se agir com mais decisão no setor social, em particular na educação.  Para o ministro Paulo Renato de Souza, um dos representantes do Brasil no seminário, as declarações de Williamson devem ter soado como boa música. 

Perguntado, John Williamson se explicou, primeiro, em 1996:

Não. Eu não acho que o que eu disse seja uma grande mudança em relação ao Consenso. Nove das dez recomendações do Consenso continuam lá, e a décima (abolição das barreiras que impediam a entrada de empresas estrangeiras nas economias latino-americanas) saiu por já ter sido cumprida. 

Porém, em suas próprias palavras, em outro seminário no centro de convenções Expominas, no Brasil, em 2006 - note-se: em 2006 -, ele de novo explica e critica:

...o Brasil foi longe demais em seguir tudo o que fazem os países do Norte (países ricos), o que talvez não faça sentido nem para os países do Norte. 

(...) Eles [a área econômica do governo brasileiro] querem pertencer àquele clube [o pensamento econômico oficial dos países ricos], e então não dizem nada que acham que pode pegar mal no clube. 

Oportunismo?
É como se diz, a colonização e a recolonização mental podem acabar gerando "o mais realista que o rei", em nome da inovação. O Brasil tem pago secularmente preço hercúleo e desumano em história e em vítimas, por seu "prazer" de recolonizar-se.

Desde 1990, no país se tornaram usuais, até de bom-tom, a confusão entre política social e política pública e também o emprego de diretrizes e de programas socioeconômicos criados pelas agências internacionais de financiamento, do tipo do Banco Mundial etc. 

No caso da política social, fez-se uso da privatização, da parceria do público com privado, da descentralização, da renda mínima ( ou da renda básica, renda de existência, renda social etc.), do segundo cheque, do auxílio-gás, da bolsa-escola, da bolsa-alimentação, da bolsa-família, do programa de erradicação do trabalho infantil, do programa gente jovem e outros programas relacionados com a mulher, a maternidade, a criança, o adolescente, o velho, o negro, o homossexual. 

Conhecidas teorias da administração de empresa do passado (como a "administração por objetivos") foram apresentadas no âmbito da política social como renovadoras e eficacíssimas. A essas teorias da administração de empresa adicionou-se a substituição, sempre que possível, do contrato de trabalho (baseado na legislação social) pelo contrato de prestação de serviço (fundado na legislação civil, com direito apenas a receber pagamento por tarefa realizada).

Na política social particularmente, difundiram-se os institutos, núcleos, fundações etc. no formato de Organizações Não Governamentais (ONGs), convertendo o custo/benefício e o mercado em bases insubstituíveis daquela política. Com isso, se alterou a essência da política social, à medida que os direitos sociais, inscritos na Constituição de 1988 como direitos da sociedade brasileira, foram trocados pela ação focalizada nos miseráveis, eliminando qualquer universalidade de direitos e qualquer planejamento. 

A política social passou a ser refém do "terceiro setor", que afirmava e afirma, para os ingênuos, ser "fenômeno" nem público, nem privado, mas ao final pago pelo setor público (Tesouro Nacional), pois o capital privado aplicado no "terceiro setor" gozou e goza de isenção de Imposto de Renda etc.

No Brasil, a renda mínima e outras rendas, por exemplo, revelaram a possibilidade de seus beneficiários ficarem fora do mercado de trabalho, por longo tempo ou sempre. Revelaram igualmente a separação entre trabalhadores com emprego fixo de um lado e desempregados ou subempregados de outro lado. 



4.


Em pelo século XXI, não pode possuir futuro promissor para seu habitantes um país possuidor de Código Penal contendo crime de desacato, nos termos abaixo:

Artigo 331: Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa.

Como se o tempo não tivesse transcorrido e não pontificasse a Constituição Federal de 1988, tal artigo 331 do Código Penal Brasileiro entende, falsamente, que o brasileiro não pode reclamar ou até desacatar (desobedecer) o funcionário público descumpridor de seu dever. 



5.


A análise baseada especialmente em documentos confiáveis, demonstra completamente e brada pela urgência de inúmeras providências com a finalidade de respeitar a população brasileira:

A) Substituição imediata de "presidencialismo de coalizão" por um sistema político fiel à vontade popular;

B) Imposição de mandato revogável e indenizável para os membros dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, aqui compreendidos presidente da República, vice-presidente da República, respectivos ministros, governador, vice-governador, respectivos secretários, prefeito, respectivos secretários, deputados federais, senadores, deputados estaduais, vereadores, juízes, desembargadores, procuradores, promotores e delegados de qualquer nível;

C) Forças Armadas e qualquer Polícia, organizadas nos termos do artigo 5 da Constituição Federal de 1988, o qual, por si só, simboliza toda a Constituição Brasileira;

D) Extinção pura e simples de qualquer "foro privilegiado", em qualquer esfera de poder público.



"...E sobretudo não te iludas, alegando 

que tudo foi um sonho, que teu ouvido te enganou.
Como se pronto há muito tempo, corajoso,
como cumpre a quem mereceu uma cidade assim,
acerca-te com firmeza da janela
e ouve com emoção, mas ouve sem
as lamentações ou as súplicas dos fracos, 
num derradeiro prazer, os sons que passam,..."

KONSTANTINOS KAVÁFIS


NOTAS:

1. THOREAU, HENRY DAVID. A escravidão em Massachusetts, , anotado por Anthony Burns, www,thoreausociety.org.
2. LAMPEDUSA, PRÍNCIPE. O Leopardo.
3. SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. Pela mão de Alice.
4. LAURELL, ASA CRISTINA. Avançando em direção ao passado.
5. HOBSBAWM, ERIC. Era dos extremos.
6. VIEIRA, EVALDO. Os direitos e a política social.
7. KAVÁFIS, KONSTANTINOS. O deus abandona Antônio.


(Cf. Vieira, Evaldo - A República Brasileira - 1951-2010, de Getúlio a Lula, 2015-2017, Conclusão da Segunda Parte)






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